Blog do escritor Ferréz

Mutações do apocalipse - Ferréz

Mutações do apocalipse 

A caixa de Pandora não é pra qualquer um, desse lado do mapa, onde o céu é mais iluminado pelas luzes dos barracos que pelo sol, só temos uma chance de ver além do que olhamos.
Meu encontro com o inusitado se deu em 1990. Foi quando cheguei em uma banca de jornal na Cohab Adventista, onde prédios se encontram mais que inimigos, e vendo uma capa com uma suposta esposa do Papai Noel, decidi levar a revista.
O dono da banca ficou meio assim de me vender, aquele menino de óculos com quinze anos talvez não pudesse ler aquilo, mas puxei as notas e  fui logo pegando a revista.
Eu tinha passado por várias revistas como a Mega, a Chiclete com Banana, a Circo, mas a revista Porrada me trouxe uma surpresa: a página 32 e 33 era diferente de tudo, foi ali que vi o traço e a história de Lourenço Mutarelli, o nome me marcou, a história de João e João (e eles não têm o mesmo nome) me intrigou demais, e foi em 1991 que me deparei com a Graphic Dealer 1, a maldita: Transubstanciação.
Comprei na mesma banca em frente ao córrego, sob o mesmo olhar do dono e fui correndo para casa, na última capa um homem jogado no trilho de um trem, aparentemente morto. Subi pro meu quarto e comecei a ler e desvendar as figuras de algo que parecia proibido para uma criança, e anos depois percebi que desde que entrei naquelas páginas nunca mais voltei.
Do barraco de madeira que morava, dos abraços do meu pai que entrava de madrugada, enquanto minha mãe trazia pão e leite. Os dias corriam rápido como o virar de páginas da Transubstanciação.
A noite chegava implacável, me debruçava sobre outras obras de quadrinhos, mas nunca deixei de procurar pelas obras de Lourenço, embora parecesse tudo em vão. Toda vez que recebia o salário da padaria onde trabalhava, minhas caminhadas ficavam mais longas, e nada de mais HQs do Mutarelli, pois nas bancas da periferia não chegava nada de muito interessante, e eu já estava achando que o autor estava morto ou tinha parado de fazer gibis.
Algo na sombra do meu ser me incomodava, queria voltar àquele universo, do branco e preto, do inusitado. Em 1994, consegui emprego numa firma como arquivista em um arquivo morto. Então comecei a procurar as obras de Lourenço novamente, e sempre ia ao centro da cidade numa livraria chamada Muito Prazer. Duas horas de ônibus para chegar, e pegar um fanzine de divulgação da editora Devir, o famoso Recado, pois não tinha dinheiro para comprar as revistas de fato. 
Na Muito Prazer, não encontrei os trabalhos do autor, mas nesse dia me deparei com um fanzine chamado Sociedade HQ News, e esse fanzine assim como aqueles panfletos de igrejas evangélicas tinha me trazido a revelação: a capa era um desenho do próprio Lourenço, e tinha uma entrevista com ele, aprendi sobre seu trabalho, e, por informação da própria livraria, fui atrás de uma editora e loja que vendiam seus trabalhos.
Do Jardim Comercial pro terminal Santo Amaro, meia hora e mais 40 minutos pra praça da Bandeira, de lá a pé pra Praça da Sé e de lá o ônibus elétrico Gentil de Moura, ou, como diz o Lourenço, "Gentil demora". Lembro de olhar os cabos de dentro do busão e ficar com medo, perguntei pro cobrador do endereço da editora, ele não sabia, fiquei olhando todas as casas e após algum tempo, em uma curva, vi uma placa tombada com o nome Devir. Desci, olhei as escadas e subi rapidamente, me deparei com várias HQs em prateleiras, então toquei nela, tive vontade de abraçar, me contive e comprei Desgraçados, lançada em 1993. 
Eu não queria ler no ônibus para não gastar o gibi antes de chegar, para aproveitar cada página na minha casa.
Em 1998, mesmo brigando com meu pai para que deixasse eu ir sozinho, consegui chegar numa palestra, não lembro mais do lugar, mas lembro bem das pessoas ansiosas.
Lourenço sentou numa simples cadeira, cabisbaixo, começou a falar sobre a arte de desenhar, do empenho e dedicação, falava quase sussurrando e tinha um ar professoral e estava visivelmente abatido. Desceu e sentou na plateia ao lado de sua esposa, me aproximei e lhe dei Transubstanciação para autografar, ele o fez e entreguei o meu primeiro livro, Fortaleza da desilusão, que naquela época vendia nas ruas. Ele pareceu gostar, mas ficou espantado quando eu lhe dei Desgraçados para autografar também, e nesse ultimo escreveu: "Ferréz, cuidado ao seguir os meus passos”.
Não tive coragem de falar com ele, recolhi as obras. Por sorte ainda não tinha lido Eu te amo Lucimar, lançada em 1994, senão não teria coragem de falar com ela também.
Lucimar Mutarelli é tida pelos fãs antigos do Lourenço como alguém essencial em sua vida. À sua persistência, companheirismo e amor, devemos a continuidade da arte e escrita de Muta.
Voltei à Devir, seis meses depois, e ai pude pegar: Eu te amo Lucimar. Não acreditei quando folheei a revista. Paguei rapidamente e voltei pra onde morava. Só 20 anos depois descobri que, enquanto eu morava numa favela no extremo sul da zona sul, no Capão Redondo, o autor da obra  construía uma edícula com as próprias mãos no último distrito da zona leste de São Paulo, o Itaim Paulista.
Alguns anos depois lancei o Capão pecado, e tinha um agradecimento a ele. O desenhista Paulo Stocker vivia por aqui e fez a ponte para nos falarmos. Foi daí que tivemos uma conversa por telefone, marcamos e nos encontramos no centro, onde sugeri: na "Verdadeira casa da mortadela", na esquina da São João com a Ipiranga, um lugar pequeno, onde comemos no balcão pão com mortadela Ceratti e suco de uva, e nos tornamos amigos.
Talvez eu só procurasse nas obras de Lourenço um mundo mais feio que o meu, mas ainda não foi dessa vez.
Com o tempo aprendi que Lourenço foi um sonho há muito esquecido,  um quadro repintado, um apartamento não-decorado, um carro abandonado numa esquina, um prêmio jogado no lixo, um litro de whisky vazio, um filho revoltado, um irmão bondoso, um frasco de Rivotril, um neto que não tinha futuro, um marido tempestuosamente doce, um tiozinho bêbado na calçada, um motorista chamado de aidético num cruzamento, um primo distante que toma remédios, um amante que nunca cumpriu a promessa, um amigo problemático, uma porra de um gênio num país de não-visionários. Um autor escondido na escuridão onde todos estão se vendendo pra encontrar a luz. 
Sobre essas histórias em quadrinhos, ele tem orgulho do material. “Eu não tenho vergonha de nada desse material e nada não, mas é uma época difícil, né?"
Se você olhar no material original, é uma coisa impressionante. Têm palavras da cabeça do texto que ele tirou xerox porque não tinha dinheiro pra comprar a Letraset toda.
Então ele tirou xerox e montou a palavra. Os textos são escritos a mão, ele não tinha computador.
Têm trabalhos que ele pintou com remédio, só sobrou uma página, que depois perderam, mas foi publicada na quarta capa do Sequelas, em que ele usou Colubiazol, Merthiolate, iodo e cola branca, além da tinta para tecido que era da sua mãe.
“Nessa página aqui, eu não tinha esse nanquim, então eu não tinha mais como fazer". 
Num rolê, ao passarmos por uma passarela, ele parou e pediu para eu ler a placa: Rua Confluência da Forquilha. Fiquei uns 10 minutos olhando e lembrando da história...
Transubstanciação teve 25 mil de tiragem, a Confluência da Forquilha teve mil cópias, Muta tem controle total sobre a produção de suas histórias: ele mesmo escreve, desenha, arte-finaliza e coloca as letras. Nunca teve controle do tempo, ele antecipou tudo. E até hoje paga o preço por isso. 
Lourenço sempre foi movido a erro, e nunca um autor acertou tantas vezes. 
O estranhamento que as obras de Mutarelli traziam, além de um conturbado momento pessoal de depressão, numa época da vida dele em que não ganhou dinheiro, que foi muito jogado mesmo, que era humilhante ir nas editoras tentar ser recebido e, só quando lançado, receber alguma coisa.
"Os editores diziam que não divulgariam meus quadrinhos porque os consideravam muito diferentes do que o que era publicado”.
Quantos acidentes têm que acontecer para um autor não morrer sufocado ou ficar invisível?
Quantos retornos ao grande nada, quantas vezes discutindo com outros no pequeno apartamento, tentando provar pra alguém mais velho que nada vai mudar?
Minha mente é um subúrbio inóspito, sou escritor também, meu corpo é grande porque tem um cemitério dentro, e, desde a primeira vez que vi  Lourenço, soube que ele tinha um vazio na sua presença, e algo sombrio que lhe sustenta.
Toda vez que pega no nanquim, ou na caneta, joga as chances de vida nenhuma, chama as trevas como testemunha, sabe que vivemos dias onde boas intenções não confortam os mortos.
Os traços nestes trabalhos são uma resposta a uma pergunta jamais feita, suas frases são iguais sua mente, um livro fechado numa língua morta há muito tempo. 
Lourenço parece ter sobrevivido a tudo. Sabe aquele fim do mundo que escrevem nas HQs, ou você vê em filmes e séries?
Após o apocalipse, ele estará sozinho e não viveremos para ver outro igual.
Lourenço, 30 anos depois, é mais nosso tempo. Não vou falar dos prêmios, pois ele jogou fora, diz que são medalhas que coloca na carne do corpo porque não tem a camiseta.
Ah! Voltando ao apocalipse, Mutarelli não passou pelo fim dos tempos. Ele o fez. 
Quando Lourenço está sozinho ele é arte.



Ferréz
Itapecerica da Serra 
Verão de 2019























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