Blog do escritor Ferréz

Coluna de Eleilson Leite.

Literatura dos Arrabaldes: Buzo, Ferréz e Sacolinha

Em contos de três autores emblemáticos, reflexões sobre a morte e a juventude periférica. Da educação formal, como loteria de glória e fracasso, à fugaz trajetória dos “sem camisa”. E o fim da vida como solução: para a culpa ou o fardo existencial
Imagem: João Pinheiro
Por Antonio Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes
Apresento neste texto uma análise de livros de três autores contemporâneos, cujo surgimento se deu no contexto da cultura Hip Hop com a qual os três mantém vínculos, porém de modo distinto. Publicam seus primeiros livros no início dos anos 2000, sendo que Ferréz teve uma experiência literária ainda no final da década de 1990. Buzo e Ferréz estão na mesma faixa etária, 46 e 45 anos, respectivamente. Com 37 anos, Sacolinha é o caçula do trio. Juntos somam mais de 30 livros e formam um acervo fundamental da literatura periférica. Os livros aqui analisados foram publicados entre os anos de 2015 e 2017, uma época de muita agitação política, mas aquele contexto de polarização acirrada pouco aparece nos textos. A leitura das obras segue o método da estrutura de sentimento1 por meio do qual observei dois temas recorrentes nos três autores: as trajetórias juvenis e a morte.

Alessandro Buzo

O Filho da Empregada, (Edicon) publicado em 2017, foi o 13º livro em 17 anos de carreira do autor. Buzo enfatiza a coincidência do número 13 e chega a dedicar a obra ao técnico Zagalo: “ninguém é mais 13 do que ele”. Nos textos, o autor retrata o cotidiano da periferia e seus personagens que já se tornaram clássicos em sua literatura: bandidos, nóias, mães trabalhadoras, pais bêbados, meninas que estudam, meninos que morrem na mão da Polícia. Um ou outro personagem mais pitoresco aparece nas histórias, como o Pulga que dá título a um dos contos, um empresário do futebol de várzea, figura muito presente nos arrabaldes. A escrita de Buzo tem um charme narrativo despretensioso que faz de sua leitura uma experiência interessante, especialmente naqueles textos em que não há muita fabulação. Quando ele conta uma história, ainda que de ficção, mas inspirada na realidade que ele tanto conhece, Buzo se dá muito bem e a maioria dos contos do livro é assim.
Depois de ter publicado seu romance Guerreira, pela Global Editora, em 2007, Buzo avistou um futuro promissor como escritor. Mas a profecia não se cumpriu como previsto. Embora publique quase que um livro por ano, ele não emplacou seu nome na literatura de modo mais geral, mas conquistou um lugar de destaque na literatura periférica para a qual os parâmetros do cânone literário nem sempre servem como legitimação. Mas o reconhecimento do Buzo vai além de seus livros. Ele foi apresentador de TV por cinco anos (TV Cultura e Globo), realizou dois filmes; teve uma livraria; criou um sarau, organizou quase uma dezena de coletâneas e um festival. Eliane Brum, há muito tempo atrás, disse que o Buzo era sozinho um movimento cultural. Não poderia ter uma definição melhor. Há cinco anos morando no Litoral Norte de São Paulo, ele já faz vários agitos em São Sebastião e mantém o Sarau Suburbano na Livraria Giostri no Bixiga em São Paulo.
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Ferréz

Os ricos também morrem ( Planeta) foi o décimo livro do Ferréz e seu segundo de contos. Na literatura, ele já publicou todos os gêneros: romance, poesia, contos e crônicas. E neste livro, há inúmeros contos com estrutura de dramaturgia, ao estilo de Marcelino Freire, cujas obras são constantemente transpostas para o teatro, sem muitas adaptações2. Acrescente aqui outra habilidade do autor que é a História em Quadrinho, forma estética utilizada para dois de seus livros: Inimigos não mandam flores e Desterro. Nos últimos cinco anos, porém, Ferréz deu um tempo e vem se dedicando mais ao ofício de editor. Ele tem dois empreendimentos editoriais: Selo Povo que já tem há mais de 10 anos e o mais recente Comix Zone! dedicado ao HQ. Tudo isso, mantendo seu comércio que é a marca e loja 1DaSul e a ONG Interferência ambos no Capão Redondo, bairro do qual ele se mudou recentemente, indo morar e trabalhar em Itapecerica da Serra, cidade que faz divisa com aquele bairro do extremo da Zona Sul.
O livro consolida o lugar de Ferréz na literatura brasileira contemporânea. Ele é o autor periférico que mais extrapolou as fronteiras dos arrabaldes e é assim há 20 anos, desde que publicou o romance Capão Pecado, o marco fundador da própria literatura periférica ou marginal, como ele prefere. Mas é novamente um livro de homem como são suas obras anteriores. As mulheres que aparecem em apenas cinco histórias, não chegam a constituir um personagem. O que mais há no livro de Ferréz são histórias de tipos estranhos em situações igualmente surreais, revelando facetas de uma periferia onde em cada favelado há um universo em crise, como diz o RAP dos Racionais. É possível que Os ricos também morrem, seja um rescaldo do seu romance anterior Deus foi almoçar, publicado três anos antes no qual o autor foge de sua tradição da literatura hip hop que marca seus três primeiros livros3. Mas também é uma sinalização do gosto do escritor por uma linha de HQ que requer personagens atípicos, viscerais, taciturnos, psicologicamente densos e bizarros.

Sacolinha

O livro do Sacolinha, lançado em 2016 pela Patuá Editora, contém 11 contos, a maior parte deles escritos no contexto do projeto “Comunidade do Conto” criado pelo próprio autor na cidade de Suzano onde ele mora e que é um espaço de formação e encontro de aficionados por esse gênero literário. Reúne histórias de pessoas comuns, cuja a vida suburbana pode se enquadrar em qualquer cidade de região metropolitana. O título lembra o clássico do João Antonio (um mestre do conto) Malagueta, Perus e Bacanaço, por citar três homens no título com seus respectivos apelidos. João Anzanello Carrascoza, autor do prefácio, indica um “fraterno diálogo entre os dois”. Os contos de Sacolinha tratam de morte e perturbações de cunho moral e transes depressivos. Narram trajetórias de superação, de saudosismo da infância e brinca com o bloqueio criativo de um autor na iminência de apresentar seu texto para os pares do clube do conto.
Sacolinha se esmerou no gênero do conto e no movimento literário periférico é dos mais talentosos e também está entre os que mais publicam narrativas curtas de ficção. Depois de estrear em 2005 com o romance Graduado em Marginalidade (Scortecci), ele lançou logo no ano seguinte sua primeira coletânea de contos 85 Letras e um Disparo (Global Editora). Publicou mais três livros com traços autobiográficos antes de voltar ao conto com o livro Manteiga de Cacau (Editora Ilustra) em 2012. De lá para cá só publicou livros de contos sendo que seu último lançamento é de 2019: Dente de Leão. Com apenas 37 anos, Sacolinha já tem uma bibliografia de veterano: 8 livros em 15 anos de uma carreira bem-sucedida.

O filho da empregada

O tema da juventude e da adolescência tem lugar de destaque na maioria das treze histórias contadas por Alessandro Buzo. Diferente do que a obra sugere no título e pelo anúncio do próprio escritor na apresentação, reforçado pelos textos do prefácio e orelha, não temos aqui histórias de empregadas domésticas. Essas profissionais permeiam a trama de poucos dos contos, inclusive no texto que dá título ao livro: O filho da empregada. Neste conto, o foco da narrativa é a história de amor entre Lucas (o filho da empregada) e Paula (a filha da patroa). Com enredo novelesco, um traço da literatura do Buzo, os dois se encontram casualmente, começam a namorar as escondidas até que a relação é descoberta pelo irmão da garota que denuncia o caso para a mãe. A Patroa não vê outra solução senão demitir a empregada. Os jovens nunca mais se viram. Nesse conto, o único em que há efetivamente uma personagem empregada doméstica, a profissional começa com destaque, mas torna-se coadjuvante a partir do momento em que o jovem casal inicia o relacionamento proibido.
Já o tema da morte não tem a mesma centralidade; aparece apenas duas vezes, ambas na forma de assassinato. As duas mortes são patrocinadas pela Polícia Militar, ou seja, pelo braço armado do Estado. Dois jovens de favela, presumidamente negros. Em Favela não tem heliporto, Lucas, o protagonista sai de casa para procurar emprego numa manhã de um dia comum. Passava das 9h; sua companheira já havia saído para o trabalho. Um helicóptero da PM sobrevoa a Favela a procura de bandidos que para lá se dirigiram depois de um assalto. Alheio à perseguição, o rapaz segue no rumo do ponto de ônibus. A certa altura, temendo pela ação dos meganhas, resolve correr para buscar abrigo. Por instinto racista, a PM atira no inocente julgando que se tratasse de um dos ladrões. Lucas cai e não resiste aos tiros4.
Em Desestrutura familiar, Jailson, um adolescente de quatorze anos convive com uma situação muito revoltante, porém, comum na quebrada. Seu pai alcoólatra agredia sua mãe constantemente. Certa vez o velho tentou abusar de sua irmã de dez anos. O garoto bateu no pedófilo com um pedaço de pau. O patriarcado se desfez naquela casa. Jailson matinha uma boa conduta, mas passou a usar drogas. Familiarizou-se com o comércio de entorpecente e seguiu carreira no tráfico, galgando postos até chegar a se tornar patrão. No comando do negócio, ele não aceitava pagar arrego para a Polícia. Era bandido respeitado pelos moradores a quem ajudava de diversas formas. Uma cumplicidade se estabeleceu e ninguém entregava o bandido protetor. Mas um dia, por vacilo dele, deu brecha para os gambés. Numa emboscada, Jailson não teve como fugir e foi fuzilado.
Trajetórias juvenis não interrompidas pela morte, são retratadas em histórias pouco atrativas, pois são como relatos lineares de superação das dificuldades de jovens pobres por meio do trabalho e do estudo. Em Advogada, o texto traça o percurso de Mayara, menina que nasceu no Interior de São Paulo, mas que migra para a Capital depois que sua mãe descobre que o marido tinha uma vida paralela com outra família. A mãe passa a ser doméstica e Mayara por vezes dividia a cama de solteiro do quartinho da empregada com a mãe. Mayara conseguiu estudar e cursou faculdade com a ajuda da patroa que custeou metade dos custos dos estudos. A cerimônia de formatura é descrita como um momento mágico onde a superação é celebrada com glamour5.
Outro caso de ponto fora da curva é João Kleber, protagonista do conto Vida de Trabalhador. João Kleber morava numa favela bem precária com barracos de madeira na beira do córrego. Cresceu ali e viu seus amigos de infância se embrenharem no crime já na adolescência. Ele se tornou trabalhador, como sugere o título e por meio de sua labuta melhorou aos poucos sua casa até conseguir sair da Favela, mas não do bairro. Mas ele deixou de ver os amigos até que reencontrou um deles. O encontro, porém, foi num velório, pois o parceiro de infância havia sido morto. Mais uma morte consumada pela PM.
Um caso de superação mais instigante é de Paulo, o Baianinho que dá título ao conto. Ele chegou já adolescente para o bairro e passou a frequentar o “escritório” que é o ponto de encontro da juventude numa determinada rua do Itaim Paulista, extremo da Zona Leste de São Paulo, local onde viveu o autor, uma das muitas referências autobiográficas de Buzo neste e em vários outros livros que publicou. Baianinho mudou-se para o bairro quando era adolescente se enturmou rápido com a rapaziada. Assim como Jailson, passou a usar drogas, a se envolver com os traficantes e acabou seguindo carreira no crime. Sumiu por um tempo. Dois anos depois foi encontrado por Everton, um dos rapazes do “escritório” e alter ego do escritor. Estavam no trem de volta para casa. Bem trajado, Baianinho chamou a atenção do amigo num reencontro caloroso. No trajeto para a Zona Leste, o rapaz contou que largou o crime depois que se deu conta que estava se tornando um matador. Ele executou três pessoas, todas jovens, entre elas uma mulher viciada que pagou a droga com dinheiro falso. Baianinho, curiosamente não precisou de uma ajuda da Igreja, ou de uma esposa de hábitos conservadores para mudar a chave. Foi um clique, claque bum….
Mulher periférica independente tem uma mulher como protagonista como indica o título e também descreve uma trajetória juvenil. O nome dela é Jaqueline. Moradora do bairro, era cobiçada pelos rapazes do “escritório”. Mas a garota, seletiva, saía só com os playboys da quebrada. Um desses a conquistou a ponto de ela perder a virgindade numa intensa noite de sexo em um motel da Zona Leste. Ela tinha 17 anos. O cara sumiu. Queria o troféu para exibir aos amigos. Ela seguiu a vida, cada vez mais dona de si. Concluiu o ensino médio, passou a trabalhar. Colecionava relacionamentos com homens de grana, mas acalentava o sonho de encontrar o “príncipe encantado” (palavras do autor). Com a ajuda do patrão (mais uma recorrência), entrou na Faculdade, na Uninove da Rua Vergueiro, mais especificamente.
Certo dia, ela escorrega no piso molhado em um dos corredores da Faculdade e é socorrida por Júlio, um auxiliar de manutenção que fazia um reparo bem no local onde a moça caiu. Ele a carrega nos braços até a enfermaria. O gesto do rapaz encanta jovem. Os dois marcam um papo depois da aula e engatam um namoro sexualmente tórrido. Ela, porém, não sabe se Júlio seria o homem que procurava, pois, o cara era peão, ganhava pouco e morava na periferia numa casa de dois cômodos em cima da residência dos pais. Mas o destino já estava traçado e num almoço oferecido aos pais da noiva, Júlio pede a benção do sogro. O velho exigiu casamento de papel passado. A exigência foi aceita pelo casal e os dois “viveram felizes para sempre” (palavras do autor). Ao que parece, o aspecto independente da garota anunciado no título derrapou no machismo.

Os ricos também morrem

Assim como Buzo, o livro de Ferréz trai a expectativa do leitor com o título. Nenhum rico morre nos quarenta textos do livro, nem todos contos. Aliás só há quatro histórias com morte. Uma é um suicídio, outra é anunciada sem que as circunstâncias sejam descritas; uma terceira é a morte de um pintinho e a última é o assassinato de políticos em Brasília por serial killers. Nos contos, Ferréz demonstra a elevada habilidade que tem de elaborar ficções. São textos curtos, alguns em prosa poética, outros na forma de poema mesmo, além daqueles estruturados em diálogos próximos da dramaturgia, como já foi dito.
As histórias têm forte conteúdo reflexivo, abstração e elaborações enigmáticas. Personagens complexos, de comportamento muito fora do padrão seja no contexto periférico ou mais amplo. O livro é de 2015, mas Ferréz pouco incide sobre fatos da época, logo depois das manifestações de 2013 e da tensa eleição presidencial de 2014 que polarizou o País. Apenas um conto cita sutilmente algo que remete àquele conturbado passado recente. Em Admiração de Adamastor, um homem comum estabelece um diálogo com um vereador que se queixa da incompreensão do povo por não aceitar os R$0,20 se referindo ao aumento da tarifa do transporte público em 2013, fato que desencadeou os protestos que depois tomaram proporções gigantescas.
Há uma melancolia na obra, um rancor que o próprio autor há muito declara ser um dos seus motivadores para a escrita6. Talvez o sentido do título esteja no prefácio escrito por ele mesmo na forma de manifesto que sintetiza no final assim: “Uma introdução para representar todos os amigos que morreram travando a guerra, aos que não puderam ver mais o sol de cada dia, aos que nunca souberam o valor de uma vida, e até aos que sorriem pouco. Que eu escreva com responsabilidade em nome dessa verdade de hoje (…) arranco dúvidas, planto sorrisos, e faço estralar a caneta na estrada para construir uma nova caminhada, onde o futuro não seja só uma simples palavra. Que se torne, sim, uma arma”. A literatura para Ferréz, tem um forte sentido de missão, traço herdado do RAP dos anos 1990.
Apenas cinco, dentre as quarenta histórias do livro não são protagonizadas por um sujeito do gênero masculino. Mesmo as que trazem crianças no papel central, é um menino que define a cena. Em dois contos em que não há homens no comando da ação e que o ponto de vista é de uma mulher, se estruturam na relação direta e conflituosa com o parceiro. Em um deles, a mulher é apenas narradora (Odeio Amar ele) e no outro, com estrutura dramática, traz uma discussão tensa de um casal em que a mulher esbraveja com o marido passivo revelando ser adúltera (Clovis). A mulher quando aparece no livro é abandonada e histérica como nessas duas histórias mencionadas. E, como veremos adiante, são mães a beira de um ataque de nervos com seus filhos e como uma prostituta. Mas há também uma senhora idosa que se compadece com as crianças de um orfanato. O universo feminino na literatura de Ferréz, mesmo depois de quinze anos de carreira, continua muito limitado.
Nesse exercício de observar recorrências de personagens e pontos de vista narrativos, agrupei o livro de Ferréz em seis blocos. Um é esse das mulheres que de tão raras, se sobressaem quando aparecem. Outro é das crianças e adolescentes com quatro textos. A ação, sempre violenta da PM é tema de outros 5 e nesse bloco aparece com destaque o tema da juventude, um dos que rastreio nas obras. A conjuntura política da época está em apenas três histórias. Situações vividas pelo próprio autor são argumento para 5 capítulos, todos em forma de crônica. O cotidiano da periferia tem 8 contos e é vice-campeão, perdendo apenas para um grupo de histórias que tem no foco narrativo pessoas bizarras e enigmáticas, dramas psicológicos e situações surreais, histórias nas quais o tema da morte aparece com mais frequência. São 10 capítulos nesse grupo que se vale também do cotidiano periférico como contexto em boa parte deles.
Nos quatro textos que retratam situações com crianças, dois guardam uma conexão pelo objeto do argumento, a estrutura em diálogos e o comportamento das crianças e das mães. Em Assassinato, um garoto provavelmente de 8 anos, tenta convencer sua mãe a autorizá-lo a criar o pintinho que acabou de adquirir trocando-o por uma panela velha de casa. Irritada com a insistência do filho, a mãe atira a pequena ave no chão justificando o título do conto. Logo na sequência vem o capítulo A história do ovo no qual, novamente um menino, talvez um pouco mais velho, tenta insistentemente fazer com que sua mãe lhe frite um ovo. A mãe, no entanto, está ocupada com o ensaio de um hino da Igreja. Assim como a mãe do conto anterior, esta é muito ríspida com o filho a quem ela responde com insultos em nome de Deus até apelar para os infernos para que aquele moleque pare de lhe perturbar com seu reiterado pedido.
A fase juvenil está presente em contos dos diversos blocos. Destaco dois que agrupei nas histórias da PM e um do cotidiano da periferia. Círculo é uma história em espiral em que uma nota de R$ 100,00 recebida por uma jovem como pagamento por sexo, chega nas mãos de sua mãe como contribuição da garota para as despesas casa. A mãe, por sua vez, entrega a grana para o Pastor de sua Igreja. O Pastor já bem abastecido pelo dízimo dos fiéis, repassa essa mesma nota para uma pequena filial de sua Igreja. O pastor novato da franquia religiosa, resolve embolsar o dinheiro e gastá-lo com a mesma jovem prostituta do início da história, completando o giro de 360 graus daquela abençoada nota de R$ 100,00. O conto, que também tem uma estrutura formal em drama e, portanto, não tem narrador, aponta um círculo vicioso, onde o pivô da promiscuidade é uma jovem.
Em Bananas, um rapaz, aparentemente com idade de 18 anos, sai de casa para comprar bananas a pedido de sua mãe. No caminho leva um enquadro da Polícia que fazia uma blitz no local. Apanha dos gambés e é humilhado na frente dos transeuntes. A crueldade se completa com o soldado jogando suas bananas no córrego. O garoto volta para casa sem a encomenda. Questionado pela mãe ele faz um gesto com o dedo em riste para a coroa. No conto Cinza e branco, um dos mais bem elaborados e densos do livro, o autor expõe em paralelo duas trajetórias diferentes de jovens de origem social semelhante (o menino de cinza e o menino sem camisa) que se encontram, um como vítima e o outro como algoz.
O menino de cinza é um policial e o outro, sem camisa, é um jovem marginalizado. Seguiram rumos diferentes, um contra a lei e o outro a favor. Frequentaram o mesmo tipo de escola. O de cinza aprendeu o sentido da uniformização que o ensino prega, o sem camisa foi expulso dela. A escola preparou o de cinza para servir ao Estado e hoje se vira para pagar a escola particular de seus filhos. O menino sem camisa aprendeu na escola que o abandonou que a “prosperidade é boa, mas não é para todos”. Ao menino de cinza é ensinado que tendo um revólver na cintura, não precisa de educação. O menino sem camisa não entendeu ou não quis aceitar que cadeia é, primeiro, para assustar os que lá ainda não estão. O menino sem camisa usa a gramática da rua, enquanto o de cinza usa a linguagem formal para se impor. Os dois enfim, se encontram no mesmo espaço quando o de cinza captura o sem camisa. Duas trajetórias de jovens tão parecidos dentro do pequeno espaço de uma viatura. Ao sem camisa resta os sonhos que não se aprisionam, ao de cinza, aparar os bigodes diante do espelho.
O tema da morte está quase todo concentrado naquele grupo maior de contos de tipos e situações estranhas com enredos enigmáticos e forte conteúdo ficcional. Em Sebastião é contada a história de um homem presumidamente gay que foi morto em circunstâncias não reveladas. Ele chamou a atenção dos moradores da Favela por ter feito uma bela casa na comunidade com projeto arquitetônico, sacada, ladrilhos e outros adereços. Os moradores se perguntavam do porquê de tanto capricho do rapaz que era cozinheiro de restaurante chique. Após o desaparecimento de Sebastião, a bonita casa hoje está cheia de livros e crianças e aberta a todos. Provavelmente é a sede da ONG mantida pelo autor em uma favela do Capão Redondo. A outra morte está no conto A natureza de Nêgo Jaime, um homem de comportamento estranho e solitário, embora tivesse mulher e filho. Vivia no bar. Era pedreiro, mas gostava de plantar. Plantou árvores no entorno da Favela e era bem quisto na comunidade. Parecia ter distúrbio bipolar, uma hora estava alegre e noutra se fechava. Num desses transes entrou em depressão e foi encontrado morto no Parque Santo Dias. Havia se enforcado em meio às árvores que tanto amava.
O livro termina com um conto chamado Pequeno Pássaro, onde uma narradora que parece ser uma senhora bem idosa fala a partir de um lugar indefinido, aparentemente uma instância do além, onde habitam os mortos. Desse ponto de observação ela discorre sobre os seres humanos, a natureza, os pássaros. “A gente nasce e depois é só ficar morrendo”, diz a voz numa narrativa de forte apelo poético. Ela termina a história encontrando seu companheiro que chegou velhinho ainda mancando e diz: “é mentira essa coisa de dizer que quando morre a pessoa libera o espírito e volta perfeita”. A morte assim, encerra esse livro com 40 histórias, número correspondente ao da idade do autor no ano da publicação da obra.

Brechó, Meia – Noite e Fantasia

Dos onze contos do livro de Sacolinha, em seis a morte é um dado relevante ou central. Em um deles, ela não se consuma, mas sinaliza um suicídio. Trata-se de Valsa dos 15 anos, história na qual um pai vive o tormento decorrente da atração sexual por sua filha, desejo acentuado quando a menina alcançou a adolescência. Mas ele resistiu à tentação. Quando chegou o dia do baile debutante, sumiu e deixou a filha que lhe amava sem o par para a tradicional valsa. Saiu de carro, a caminho de um lugar onde a culpa não o puna. Já no conto Vitor Regis, a morte se consuma duplamente. Numa noite de luar, um casal apaixonado vai se banhar numa lagoa. De repente a moça é tragada pelas águas e reaparece morta agarrada à vegetação como se fosse um buquê. Pretenso poeta, o jovem viúvo se perde em devaneios de saudade pela noiva e se dedica a escrever versos em sua memória. Um dia resolve voltar ao local da tragédia e a história tem um final shakespeariano.
Em Jovens Anseios, três jovens garotas de perfil socioeconômicos distintos, em diferentes situações se vêm diante de um problema comum: uma gravidez indesejada. A rica aborta numa clínica em Londres; a de classe média, se informa sobre métodos naturais e consegue se livrar do feto. Uma terceira, mais pobre, busca uma clínica clandestina e seu trágico destino é traçado a partir dali. Outros dois homens morrem em circunstâncias de certo modo previsíveis. O pedreiro João Maria no conto Muro de Arrimo, sofre um acidente de trabalho e é levado junto com os escombros da construção morro abaixo depois desmoronamento. Em Medo do Medo, um homem vive perturbado pelo sentimento generalizado de medo. Chega a vida adulta sem se livrar da neurose. Tem desejos por meninas bem mais jovens. Envolve-se com uma garota de 15 anos. A vizinhança revoltada faz justiça com as próprias mãos. Já no conto Rainha de Mim, quem morre é a mãe da personagem central da história e se torna um divisor de águas na trajetória dessa jovem da qual falaremos mais adiante.
O tema da juventude e da adolescência é outra recorrência no livro. E a dimensão juvenil da vida se apresenta de diversas formas. O casal da lagoa é jovem. Assim como são jovens as três garotas que abortam. Quinze anos tinha a garota, cujo pai some por não suportar mais o desejo que nutria pela filha. No conto Meninos da Minha Rua, três jovens adultos, aparentemente próximos dos 30 anos (o marco da faixa etária juvenil é 29 anos) relembram com saudade das brincadeiras de criança. Mas o conto onde a questão da juventude é mais central é no já referido Rainha de Mim.
Neste conto, Naloana, uma jovem de subúrbio carioca se vê perturbada (esse transtorno é recorrente nas histórias) pela iminente perda do posto de rainha da bateria na escola de samba que frequenta desde criança. Ela é destronada por uma atriz famosa, tática adotada pela agremiação carnavalesca como marketing para atrair patrocínio. O castelo da garota caiu. Entrou em depressão. Assistiu ao desfile da arquibancada. A mãe, morta nesse contexto, acaba servindo de inspiração para Naloana dar uma virada na vida. Faz faculdade, pós-graduação, muda de emprego e alcança um padrão de renda elevado. Empoderada, supostamente perto de seus 30 anos, ela volta para a quadra da escola e esnoba um convite para reocupar o trono perdido. Naloana, que um dia brincou de majestade, não se acostumou com a fantasia, mas virou, como o título sugere, rainha de si mesma.
A etapa de formação para a vida adulta marca também o último conto que dá título ao livro. Fazendo uso da mesma estratégia narrativa do conto Jovens Anseios, em Brechó, Meia-Noite e Fantasia, os personagens têm histórias distintas, mas que se cruzam, diferente das meninas grávidas cujo aspecto comum reside somente na condição de gestante. São três histórias que se encontram num buraco de viaduto, desses que, infelizmente se tornaram abrigo para moradores de rua nas grandes cidades. Brechó era pedófilo (o terceiro caso de atração por criança/adolescente no livro) que passa um tempo na cadeia, assim como Meia Noite, um porteiro de hospital metido a médico que ficou tão famoso por suas receitas a ponto de se candidatar e se eleger prefeito. Enrolou-se em corrupção, foi julgado e massacrado pela opinião pública até ir para no xilindró. Fantasia, como o nome sugere, nada fez de relevante, vivia perdido e se encontrou consigo mesmo quando veio parar no buraco onde os três encontraram guarida depois de perambularem juntos por praças do Rio de Janeiro.
A juventude aqui é uma ausência. Brechó foi jovem para a cadeia em decorrência de assédio a uma criança na escola em que fazia um serviço de pintor; Meia Noite migrou do Ceará para o Rio e sua juventude ficou na poeira da estrada. Fantasia renunciou sua juventude: “enquanto os parentes e amigos estudavam e trabalhavam para garantir uma vaga no futuro, ele ficava a imaginar a vida através de livros e novelas”. Não teve profissão e renda. Acabou na rua onde encontrou os dois egressos do sistema prisional, outra máquina de destruir futuro.

Estruturas de sentimento: trajetórias juvenis e o sentido da morte

Como vimos, os três livros oferecem histórias muito ricas para pensar o percurso da adolescência à vida adulta. Em quase todas elas a educação formal é o vetor de sucesso e também o motivo do fracasso. As meninas se dedicam aos estudos conseguem algum futuro promissor e os meninos, quase todos eles em conflito com a escola, viram “sem camisa”, mas alguns constroem trajetórias de sucesso no campo das práticas ilícitas, contexto que, invariavelmente faz da conquista, uma experiência fugaz. Os meninos se confrontam com a polícia. As meninas esbarram no machismo e suas realizações se dão em carreira solo. Buzo tem um tom meritocrático, Sacolinha enfatiza o poder da superação, embora, diferente de Buzo, nem sempre resolve a vida de seus personagens nesses termos. Já Ferréz é cético. A escola não é redenção para seus personagens, exceto para aqueles que se enquadram na sua uniformização. Nos contos de Ferréz, os jovens não concluem suas trajetórias com conquistas edificantes. Para ele, o triunfo da juventude é uma profecia carregada de rancor e ódio.
Em relação à morte, o posicionamento das histórias de cada escritor converge para um plano simbólico onde o fim da vida é uma resposta a dilemas pessoais das vítimas. Os defuntos de Sacolinha carregam a culpa; os de Buzo, o arrependimento. Ferréz, por sua vez, se utiliza do recurso narrativo da morte para resolver uma vida insuportável, no caso do Nego Jaime que se suicidou e aquela que é inaceitável para quem matou o Sebastião supostamente vítima de homofobia. A morte dos ricos anunciada no título do livro de Ferréz parece ser um anúncio, uma virada de mesa, pois ele manteve vivo todos os jovens que são vítimas de uma sociedade que os oprime e favorece os ricos. A senha ele deu no prefácio: “o futuro é uma arma”.
1 O exercício consiste em mapear as recorrências de abordagens que estabelecem aproximações entre as obras. Para se chegar a essa compreensão procuro perceber o pensamento como é sentido e o sentimento como é pensado. Tal percepção é possível de se alcançar observando o movimento da consciência prática que é o impulso, contenção e tom na fala dos personagens e dos narradores. Este procedimento foi criado pelo sociólogo britânico Raymond Williams (1920 – 1989) autor dedicado aos estudos da cultura, do teatro e da literatura, fundador dos Estudos Culturais e expoente do movimento New Left que renovou o marxismo na metade do século passado. Sua obra mais conhecida no Brasil é Cultura e Sociedade, publicada pela Editora Vozes.
2 Um dos principais exemplos para não nos estendermos aqui com um escritor que está fora da pauta, é a adaptação de seus textos feitas pelo Grupo Clariô de Teatro no espetáculo Hospital da Gente, de 2008.
3 Capão Pecado (2000); Manual Prático do Ódio (2003); Ninguém é inocente em São Paulo ( 2006)
4 O autor não cita, mas esse conto foi publicado em 2009 no volume III da Coletânea Pelas Periferias do Brasil, organizada pelo próprio autor. Na versão original, os personagens têm nomes diferentes e o rapaz sobrevive aos tiros.
5 A história dessa personagem corresponde à trajetória da advogada Mayara Silva de Souza que assina o prefácio do livro
6 No Ato I da Caros Amigos – Literatura Marginal que o autor publicou em parceria com a Revista Caros Amigos, em 2001 ele usou como epígrafe um trecho do livro de João Antonio Abraçado ao Meu Rancor, epígrafe que ele citou em outras situações para enfatizar um dos principais sentimentos que o motiva a escrever
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