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Deus foi almoçar - Ferréz (Livro Completo)


DEUS foi almoçar


Copyright © Ferréz, 2012

Ferréz, 1975‐
Deus foi almoçar / Ferréz. 

Para PaPus, aquele que me imPulsionou a atravessar o Portal.






Capítulo 1
AprendA com o AbAndono
É dia, alguém leva outra pessoa para juntos não chegarem. Alguém leva toda a culpa para outro inocentar.
Alguém descobre que tudo que tem é nada.
É dia, alguém atravessa uma linha tênue.

Estou sozinho agora, em algum lugar minha pequena dor- me, e finalmente estou sozinho agora.
Meu nome não é o mesmo, e nem foi antes, mas eu tenho alguns motivos para não querer ser chamado.
Cruza a sala, ao banheiro ele chega.
Mais atenção às coisas que geralmente já viraram rotina. Barbear.
Em algum lugar uma letra de amor é escrita, e uma poesia

é rasgada.
Em alguma casa, um pequeno espelho reflete um nariz que

podia ser mudado.
A descarga foi dada; a porta, fechada; o zíper, puxado; o

chinelo, recolocado; o botão, abotoado; a descarga, terminada; o ralo, lotado; o rosto, parado; o calor, acumulado no assoalho; a vida, passada; o futuro, usado.
Saiu.
A estrada, o caminho, as luzes, tudo à sua volta era algo pintado, uma cidade cenográfica.
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Quando saio para caminhar, sempre nos primeiros minutos recrio tudo à minha volta, e não sou eu mais o que já fui, e não sou eu mais o que todos querem que seja. Em alguns minutos, nos primeiros passos, eu sou simplesmente alguém andando, usufruindo do grande nada.
Como nada daquilo parecia real, era prisioneiro de um pre- tenso e não conseguido conforto.
Lembrou-se da época de férias, tentava sentir a liberdade. Na praia em um ano, no sítio em outro, longe da casa, do con- forto que seu pai passou a vida toda construindo.
Agora era só um corpo indo comprar SL em algum dos 1.127 minimercados do governo espalhados pela cidade, depois voltaria cheio de caixas e comeria, comeria rápido para ir ao trabalho, ar- quivar, arquivar documentos que não podiam ficar ao tempo, ten- tava potencializar seu trabalho, achar alguma importância para que fizesse sentido ir lá todos os dias, na maioria das vezes não encon- trava nenhum motivo, mas mesmo assim ele ia.
O ônibus demoraria uma eternidade para passar, não se ar- rependeu de ter ido a pé, mas ter que pegar ônibus para voltar o angustiava, queria mudar a rotina, sempre o mesmo farol, o mesmo posto de gasolina, ao menos no ônibus daria para ir len- do, claro que ele pensou que iria sentado, pensou errado.
Chegou no serviço com dez minutos de atraso, na porta do arquivo a secretária da central esperava para recolher alguns documentos, disse um leve bom-dia e abriu a porta, ela entrou e viu os documentos na mesa, perguntou se podia levar.
Calixto balançou a cabeça afirmativamente depois resolveu explicar.
Esperou muito? Acabei me atrasando um pouco.
Não, senhor, acabei de chegar, por falar em atraso, já lhe fala- ram, Senhor Calixto, que o Feng Shui ajuda na vida da pessoa?
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Hã?
Que, por exemplo, ioga dá mais vivacidade?
Não.
O senhor é muito reservado, não que isso seja um defeito, mas,

por exemplo, no seu caso, até uma religião como a Assembleia de Deus seria bom, tira dor, a solidão e até a amargura da pessoa.
Calixto olhou para ela, um olhar gelado, não entendia o que estava acontecendo, quem ela pensava que era, não sabia nada dele, nunca tinham trocado nem sequer três palavras durante esses anos todos, aquela era a conversa mais longa que já tinha tido com alguém em toda a empresa, continuou olhando e disse um obrigado forçado. Ela então disse de quais documentos pre- cisava e o nome do segurança, o caso era insólito, segurança do hospital Pinel, João Luar Saxies ficava todo o tempo de serviço olhando os internos, quando num dia perdeu a razão, os amigos diziam que de tanto vigiar louco acabou se tornando um deles.
Calixto foi até a terceira prateleira, começou a procurar e a localizar os papéis, pegou um envelope e entregou para ela.
Ela tentou voltar ao assunto da religião, Calixto virou as cos- tas e foi para a outra sala, quando voltou ela não estava mais lá.
Sentou junto à máquina de escrever, a mesa toda cheia de papéis, notas fiscais que deveriam ter sido preenchidas, ele pensa naquela estranha conversa, religião, de repente ele poderia ir a algum culto ou reza, pra ver se melhorava mesmo seu astral, na cidade do Valdomiro, ou numa das fazendas dos dissidentes, mas se eles tiram amargura, dor, solidão, o que restaria dentro dele?
Prepara-se para o relatório, põe três folhas de papel na má- quina, ajeita entre elas duas folhas de papel-carbono.
Bate quinze teclas seguidas e na décima sexta erra, assusta- -se, levanta, vai ao arquivo, tira algumas pastas, consulta o ter- mo do antigo relatório, a mesma palavra que ele usava de seis
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em seis meses, mas que nunca lembrava, senta e começa a dati- lografar novamente.
Abre a gaveta, pega o líquido que faz ele ter nova chance, muda de ideia, abre a gaveta, de dentro retira uma borracha dura. Já pela metade, apaga o pequeno erro, repete nas duas cópias, dá uma soprada para afastar os inoportunos farelos da borracha.
Bate mais vinte e seis teclas, erra no acento, volta para a gaveta, faz a mesma merda novamente, retira a borracha, volta a borracha, assopra, morre aos poucos.
Anda pelos corredores e verifica as janelas, todas fechadas, tranca a casa, sai.
Resolveu descer dois pontos antes e continuar andando, para num pequeno bar e compra uma lata de cerveja, quando foi abrir, o anel da lata deu um pequeno beliscão em seu dedo. Bebia a cerveja, andava e dava uma chupada na ponta do dedo que estava ardendo.
A casa se aproximou, bateu a mão no bolso e enfiou, pegou na colher, deixou-a lá e foi para o outro bolso, retirou a chave, entrou e, tirando os sapatos, colocou a lata no braço do sofá.
Notou o canto da estante nesse dia, tentou se apegar a alguma coisa para não olhar novamente para o que podia ser o portal que sempre o atraía, mas ele não teria coragem de olhar, não naquele dia.
Começou a perceber os discos, olhar calmamente para as fitas de vídeo, via o excesso de coisas, tomou a decisão de não adquirir mais nada.
Sentimentos que se transformavam em produtos, tempos passados que refletiam alguma desculpa de lembrança.
Sabia que o entulho dentro da sua cabeça já o afetara muito durante a madrugada passada, não precisava começar a revirar tudo novamente.
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Passaram-se alguns segundos, tudo voltou ao normal, pe- gou a foto na estante, limpou a poeira, estava da mesma forma, os poucos cabelos raspados, os óculos, o ralo cavanhaque sem- pre torto, a camiseta azul já desbotada, olhou para si, levantou o braço esquerdo e tocou no queixo, o mesmo cavanhaque, pas- sou a mão pela cabeça, o mesmo corte, há quanto tempo ele era ele mesmo já não sabia.
Pensou em sair, mas já andara demais, estava na hora de ficar em casa, só assim não seria um transeunte passando rapidamente, esbarrando, incomodando, não seria a maquiagem da mulher vaidosa, o menino apontando e rindo de algo que ainda não entendia.
Prometeu não sair tão desprotegido, afinal eles acham sem- pre que sabem algo, mas a profundidade do que mostra só ele controla.
Não que isso funcione, afinal com a idade tinha certeza de que já tinha várias personalidades.
Quando passo em frente a uma casa de relaxamento, sou puto, quando ando em frente a uma igreja sou santo, faço o si- nal da cruz, quando visito minha mãe deito no sofá, sou criança esperando o café com leite e o pão com manteiga esquentado de uma forma que só ela sabe fazer, quando vou na casa de algum amigo, se for do tempo da escola, até os apelidos da época são usados, se for à casa de vizinhos, as brincadeiras do bairro.
Não é por consideração que visitamos alguém, é por querer sentir algo que valha a pena.
Se a felicidade é um ponto de vista, Calixto estava cego.
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Capítulo 2
cArol sempre foi mAis sensAtA
Através da floresta vemos o mundo.
A frase estava em sua cabeça pela manhã, levantou e antes de ver a esposa olhou a janela.
Os raios que passavam pelo vão da veneziana o faziam ter certeza de que o dia seria lindo.
Alguns passos e estava no berço da filha, um grande beijo molhou a bochecha da pequena, que nem sequer sentiu.
Foi em direção ao banheiro, colocou água dentro da boca e expeliu, olhou no espelho e viu cabelos longos, e um brinco do lado direito.
Juntou as mãos e pegou água, molhou o rosto e dessa vez viu a calvície e uma orelha furada. Sentou no vaso, alarme fal- so, odiava perder tempo, fechou a revista, subiu as calças novamente e foi pôr a água no fogo, sua esposa adorava acordar já com algo adiantado.
A empregada devia estar de ressaca hoje, todo domingo era assim, sabia que folgava e no sábado enchia a cara de cer- veja, talvez tivesse saído com alguém, talvez alguém tenha co- locado algo grande e firme naquele belo traseiro. Não! Era melhor pensar em outra coisa, tantos traseiros por aí e o da empregada vivia tumultuando sua mente.
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A água ferveu, ele pegou o pó, despejou e depois foi atrás do açúcar; sua mulher sempre brigava.
Que que é isso Calixto? Fazendo café à moda primitiva?
Mas ele adorava fazer igual ao que tinha aprendido no pe- queno comércio do tio, hoje uma franquia muito respeitada, cujo nome ele sempre achou ruim, afinal parecia o de um cara e não de uma franquia.
Ligar empresas às pessoas, humanizar a escravidão, essas coisas ele sabia, mas toda vez que pensava no assunto sentia que o nome ainda era ruim.
Através da floresta vemos o mundo.
Hoje passaria o dia todo com isso na cabeça, quem sabe deveria escrever de vez em quando, embora soubesse que não compensava ser escritor, certeza adquirida pelo tanto de entrevistas que havia lido, a parte financeira sempre pesava para todos, estranho, ele achava, um ator ganhar tanto, para falar algo que outro escreveu, e o que criou tudo aquilo vi- via tendo uma vida medíocre e totalmente falida, mas quem disse que a vida era justa? E talvez fosse verdade que eles só criassem na adversidade, ou talvez ainda só reclamassem por osmose, ou ainda quem tem que ganhar bem somente por mentir? De qualquer forma, era um trabalho muito cansa- tivo, arquivar sem pensar, catalogar sem decidir, era muito melhor, pondo na balança Calixto não arriscaria sua vida de classe média.
Passou o café e depois despejou num pequeno copo um pouco, experimentou e gostou: forte e quase sem açúcar, algo como a fórmula da criação do mundo.
Carol levantou, o rosto um pouco inchado, mas que em nada impedia sua beleza de se manifestar, os cabelos assanha- dos sempre traziam lembranças para Calixto.
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Da época que chegava na casa dos pais de Carol, pela ma- nhã, e depois subia no seu quarto silenciosamente, sentava ao pé da cama e ficava olhando para ela durante vários, mas não longos, minutos. Ela abria o olho delicadamente e soltava um sorriso, antes de dizer a mesma frase de sempre.
Por que você fica me olhando assim? Mas Calixto nunca pôde responder, nunca teve coragem para isso. Não falaria de amor, do que sentia, nem do medo daquilo acabar.
A pequena despertou, a casa não teria mais aquela paz.
Troca de roupa, pega o brinquedo, corre para abraçar a cachorra.
Sentados na sala, eles desistiam todas as manhãs de ver TV, programação repetida da noite passada, então pegavam um grande quebra-cabeça e começavam.
Tranquilidade, o domingo era assim denominado, pois, na segunda-feira, começaria tudo de novo, natação para a peque- na, trabalho para ele, estudo e trabalho para Carol, uma infi- nidade de obrigações para não deixar ninguém ter tempo de ver a realidade.
Fora há muito a data em que tinham saído, antes passea- vam pela praça que ficava a alguns minutos dali. Um sorvete de limão para ele, um de uva para ela, sempre de uva, suco de uva, salada de fruta com uva, e os lábios ficavam lindos, com um batom feito pela natureza, uma boca provocante, que ele vivia experimentando, mas não se saciava.
Já a pequena gostava de morango, tudo tinha que ser de morango, os lábios, as bochechas, o vestido, em poucos minutos ela estava toda vermelha, o sorvete derretia mais rápido do que as pequenas lambidas, ele ria muito, ela também, a pequena tentava lamber mais rápido e não entendia por que riam tanto.
Foram à loja de brinquedos, andaram pelos corredores,
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vendo os pedaços de plástico para os adultos e as maravilhas coloridas para as crianças, vendo os preços para os adultos, e o que era mágico para as crianças.
Oi, linda!
Oi, papai, você vai pegar o Coringa? Vou, sim, o papai é quem?
Olha, você é o Batman.
Por que eu sou o Batman, meu amor? Você é super-herói.
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Capítulo 3
A vidA não é um ensAio
O minimercado estava vazio, os últimos atentados a pessoas que compravam SL (Sem Logo): alimentação fa- bricada pelo governo vigente, tinha feito os consumidores sumirem. Nem as recentes campanhas do governo conse- guiram influenciar a população.
Pegou o item da prateleira e, antes de chegar no caixa, parou outra vez para ver alguns livros, muita coisa realmente tinha acabado, mas eles continuavam ali, firmes e fortes, foi escolhido por um, pagou com seu cartão regimental e foi para casa tentando ler enquanto andava: “Simples de usar e pronto em minutos”. Entretenimento de massas, o velho ciclo dos ta- bloides ingleses cheios de ilustrações feitas com xilografia que tratava de fofocas da época para um público analfabeto.
Em casa, antes de começar a preparar o líquido negro, pe- gou o manual de instruções.
“Coloque a água no recipiente, aconselhamos não ultra- passar a válvula de segurança.” Hoje as poucas revistas que sobraram têm fotos gigantes, ninguém quer ler, as pessoas querem é passar, virar página. “Colocar o pó de café no fu- nil e pressionar levemente, não recomendamos usos de outras substâncias que podem obstruir o orifício do filtro.” E depois de tempos surgiram os terríveis de um centavo, com seu baixo
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custo de qualidade editorial, em 1830. “Limpe em círculo o anel de borracha e lados de funil, pois qualquer partícula de café pode privar de fechar hermeticamente e deixar escapar o vapor.” Tinham oito páginas e eram vendidos pra um público operário. “Mantenha a cafeteira em posição vertical e gire ao contrário as duas partes, isto evitará de umedecer o café. A gravura mostra a melhor posição da mão.” A origem de Doc Savage foi popular na década de 1930 e ressurgiu na década de 1960 com uma série de reimpressões. “Leve a cafeteira ao fogo. Assim que você conferir que o líquido subiu totalmente para a parte superior, estará pronto seu delicioso café.” Enquanto o ocultismo se infiltrava pela cultura popular, o progresso na tecnologia de impressão criava novos tipos de entretenimento de massas. “Deve limpar a parte superior e o tubo para o qual o café sobe. Simples de usar e pronto em minutos.”
Calixto desligou o livro, fechou a cafeteira, jogou o manual de instruções fora e saiu para a rua. Foi confirmar se ainda existia o sol.
As coisas se mexiam, balançavam interminavelmente, foi quando percebeu seu cadarço desamarrado, ia se abaixar, mas as coisas a sua volta não paravam de balançar. Tudo se mo- vimentava, o leve inclinar do queixo já lhe dava outra visão, o ato de andar era pela primeira vez percebido dessa forma, tudo ganhava outro ritmo.
Começou a reparar nos sacos de lixos em cada esquina, próximos aos postes. Postes que eram as árvores modernas ro- deados por sacos de lixos, que podiam tomar o lugar das flores na nova paisagem, flores estas levemente beijadas por pássaros não orgânicos, feitos de folhas de jornais, que já serviram para vender apartamentos, escapamentos, mesas, fogões, verdades e candidaturas.
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O homem criou a cidade, modelou seus jardins, fez da sua forma o tudo de novo, e também foi criado de outra forma por essa cidade.
Datas, dias, minutos e segundos, atrasos, interesses, ganhos e perdas, a vida era assim agora. Ele sorriu levemente, o homem é o único ser capaz de fazer uma armadilha para si mesmo.
Carros, apartamentos, pequenos bares, shoppings, tudo con- gestionado, tudo limitado, emparedado, fechado. A sensação de sair dessas coisas era indescritível, se tivesse uma pena por assalto ou homicídio, tanto fazia. Prisão ou shopping center? Não preci- sava olhar tudo para saber o que existia realmente, mas por mais que olhasse não saberia dizer o que era a verdade.
No olho a olho, os curiosos não passariam de três centíme- tros da primeira camada. O resto está protegido, muito bem guardado, controlado como sempre deveria ter sido.
O sorriso acabou, os lábios secos desabaram quando a man- díbula deixou a gravidade exercer sua força. Não era alegre, era triste, tudo muito triste, parecido com a fortaleza da solidão, onde até o homem mais forte do mundo procurava abrigo.
Quanto tempo tinha sido prisioneiro já não sabia mais, pagar apartamento, condomínio, IPVA, seguro, mensalidade da escola, ração do cachorro, trinta e cinco segundos para entrar na gara- gem do prédio, dois minutos para chegar o elevador, um mês de férias, de cinco a sete dias para o ciclo menstrual de Carol, janei- ro é época de comprar material, julho é férias, dezembro, Natal, compromissos, compras, comprar compromissos.
Calixto decidiu entrar no ônibus, ia para o frio como se vai para um templo de almas perdidas.
As coisas se mexiam, ele sabia que ultimamente em sua vida estava tudo parado, mas quando andava as coisas se mexiam. As ruas inclinavam, os carros tremiam e as pessoas balançavam.
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Sempre pensou no álcool e sempre conseguiu entender o jeito que se dá na realidade, tanto faz o tipo de escape, de bebidas ao famoso tarja preta, a solução era só uma, quem sair por último apague o sol.
Pensou em puxar a corda, talvez uma corda imaginária do lado esquerdo do seu corpo, na altura de sua cabeça.
Talvez até um pouco mais alta, assim subindo uns dez cen- tímetros, para que seu braço alcançasse, uma corda que dispa- rasse um sinal, o motorista diria: “alguém vai descer?” E ele responderia que sim.
Talvez estivesse cansado dessa vida, talvez descesse: era isso.
Ele responderia: “Motorista, pare a vida que eu quero des- cer do mundo!”.
Não percebeu quem entrou no ônibus, via as outras pessoas como vultos. Nunca as olhava diretamente, talvez isso fosse um erro numa cidade grande, já que aquele vulto chegou à sua frente e anunciou o assalto.
Nunca passei por isso antes.
Olhava agora para a ponta do revólver.
Os passageiros se sacudiam mesmo com o ônibus parado, o ho-

mem mirava ora em um, ora em outro, para tentar manter o controle. O cobrador já estava abrindo a caixa de dinheiro e pegan- do as notas menores para tentar enganar o ladrão, que olhava agora para todos os passageiros, tentando achar algum com o corte reco ou de camisa social solta na parte da cintura. Esses
eram os sinais de um policial à paisana.
Não achou, sorte dos passageiros. O cobrador agora pas-

sava o dinheiro para o ladrão, que demonstrava tranquilida- de até que Calixto se levantou, a arma foi mirada para sua cabeça e ele levantou as mãos.
Não atire, por favor!
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Então senta logo, tiozinho, que porra, gritou o assaltante.
Mas eu quero te pedir uma coisa e... Antes de terminar a frase o assaltante chegou mais a frente e gritou cuspindo.
Ninguém vai descer dessa porra!
Todos os passageiros tinham vontade de sair correndo e, com aquela ação de Calixto, ficaram mais agitados ainda, mas, vendo que ele não sentava, o assaltante perguntou o que ele queria.
Calixto deu um passo para frente e abaixou as mãos vaga- rosamente.
Eu queria que você me desse um tiro.
O assaltante não entendeu. Ninguém entendeu. Nem o rapaz sentado ao lado de Calixto, que estava muito mais pró- ximo, entendeu.
A verdade era que todos escutaram, mas não quiseram acreditar.
Você quer o quê?
Poxa! Eu sei que é meio embaraçoso, mas eu queria que você me desse um tiro, pode ser só um, aqui bem no peito.
Calixto levantou a mão esquerda na altura do peito e apon- tou para onde achava estar seu coração.
Você é maluco, caralho? Senta logo aí nessa porra, seu en- graçadinho.
Não!
Calixto tenta argumentar, com as mãos agora para frente. O senhor não entendeu, eu tenho cinquenta dinheiros na

carteira, eu pago pela bala.
O assaltante voltou a olhar para todo mundo, no rosto de

cada passageiro a mesma expressão de curiosidade, aonde será que aquele velho queria chegar com isso? Talvez ganhar tem- po? Foi quando o assaltante olhou para o cobrador, e este ba- lançou os ombros querendo dizer: eu num conheço esse malu-
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co nem imagino o que ele quer com isso, e o assaltante já com o dinheiro das passagens no bolso falou que ia descer e que todos ficassem calmos.
Calixto lhe dirigiu a palavra mais uma vez e insistiu.
Mas senhor, com todo respeito, me dá um tiro, pode ser só um, é minha chance, nada é por acaso, o senhor tem que me balear, um tiro poderia resolver tudo.
O assaltante, antes de descer, olhou com piedade para Ca- lixto e falou:
Tenho meus problemas, velho. Resolve o seu.
O ônibus ficou parado por mais cinco minutos depois que o assaltante desceu, e ninguém quando saiu falou com Calixto, que permaneceu sentado com cara de quem perdeu algo valio- so, algo que nunca poderá recuperar novamente.
Eu perdi algo nesse dia, não sei bem o que, mas sinto isso muito forte, vou caminhando agora para casa, minha fuga, meu espaço.
Logo que viro a esquina a passos lentos, vejo ela dando ração para uma cadela, ela chama o animal com carinho, Sa- mira, Samira.
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Capítulo 4
cuidAdo com o lAbirinto
Vem com força, beijando a ponta dos postes, a cabeça do beija-flor, a pelagem do cachorro, os fios de prata, energizan- do, fortalecendo, brilhando o alumínio jogado no chão, relu- zindo nos sacos pretos cheios de coisas descartáveis, clareando as costas do menino, iluminando a pipa, brilhando o cerol, o sol vem com força.
Foi comprar pão, as moedas balançavam no bolso e isso o irritava, tentava pensar em outra coisa, talvez a última música que tinha ouvido.
Ao passar pela frente da casa, notou a calçada molhada e ouviu o barulho de água.
A vizinha que a alguns dias alimentava uma cadela agora estava lavando o quintal. Meias finas até o joelho, uns cinquen- ta anos de vida e um cabelo seco coberto por uma grossa touca de lã, feita por ela mesma.
Continuou a andar, agora na outra calçada, um barulho de vassoura, não de piaçava, mas dessas modernas, de material sintético, coloridas e mais duras.
O que seria aquilo? Parecia que todo mudo estava lavando a calçada.
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Resolveu parar, voltou alguns passos e olhou para a vizi- nha, atrás dela dois cachorros presos, com tapetes por baixo das patas, para não molhar. Do outro lado, dois anões de jar- dim o olhavam como se estivessem zangados, ele não tinha coragem de olhar direto em seus olhos de gesso.
Olhei dentro dos olhos parados das estátuas de gesso da- quele quintal arrumado e sem vida, a mulher continuava a la- var, lavava o que já estava limpo.
Passou a mão pelos bolsos, num deles uma colher, no outro certi- ficou-se de que as chaves estavam lá, tocou em mais metais, moedas. Enveredou pela esquina, foi pouco o esforço, avistou as fe- zes de algum cachorro, pensou em pisar, talvez até escorregar nela, seria legal, uma vez escorregou numa chapa de raios X, caiu e levantou rapidamente, a vergonha de alguém ter visto era pior do que o tombo em si, mas se divertiu, em casa não conseguia parar de rir, ainda mais quando olhou a chapa e viu
duas costelas quebradas, pobre diabo.
Calixto não conseguia parar de andar, andar fazia com que

não pensasse.
Parou em frente à padaria, olhou por alguns segundos e

continuou a caminhar, o livro em sua mão agora pesava uns dois quilos.
A rua tinha uma subida, alguns matos cresciam vencendo o concreto, talvez até algum cocô de cachorro, no fundo um bom fertilizante, os tivesse nutrido, ou a urina de jovens que voltavam dos bailes a noite.
Algum jovem que urinou forte demais naquele dia, pois acabara de gozar nas pernas de uma menina que conheceu dentro do salão.
Morena, cabelos longos, pernas torneadas como a de um jogador de futebol, aulas de axé.
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A porra corria pelos músculos, descendo rapidamente, onde encontraria nada mais do que o chão frio e minutos de- pois a morte dos espermatozoides, essas coisas acontecem pen- sou ele, talvez só com os outros, mas acontecem.
Já caminhava por mais de quarenta minutos quando che- gou a uma rua conhecida.
Estava se aproximando do serviço, pensou em continuar andando, não queria que as coisas parassem de novo, mas as pernas doíam, as solas dos pés se faziam notar, afinal só perce- bemos certas coisas quando nos incomodam.
Não podia continuar por muito tempo. Foi quando viu aquele senhor, carregando a carroça cheia de papelão, parou em frente a ele e lhe deu o livro, o homem estranhou, mas logo em seguida agradeceu, Calixto continuou a caminhar, o homem jogou o livro na carroça, devia pesar pouco, mas, junto com o papelão, seria molhado e daria alguns centavos.
O portão chegou e quase bateu no seu peito, os vizinhos daquela velha casa o olhavam, sempre olharam e para sempre olhariam.
Sempre me senti invisível, talvez fosse meu superpoder, cada ano que ganhava eu era menos notado, e hoje ninguém nem sequer sabe que existo, essa é a impressão que tenho.
Mãos nos dois bolsos, tentando lembrar onde estava a mal- dita chave, achou, enfiou na fechadura e destrancou, deu o primeiro passo, o pensamento na ligação, na quantidade de créditos que ainda tinha naquele cartão, tinha que ligar, não podia deixar.
Entrou na casa, atirou as chaves na mesa, nela um livro, olhou a capa e, por mais que tivesse raiva, não conseguia largar o amor pela literatura daquele que menosprezava seu sentimento de amizade, no fim não devia ter se aproximado
Deus Foi almoçar
daquele autor, já fora advertido que as obras são o que há de melhor nos autores, quem lhe disse isso acertou.
Havia falado com o autor algumas vezes, em alguns momentos de angústia chegava a discar os primeiros nú- meros, mas logo desistia, tinha noção de que não era seu amigo, de que não era nada dele, e sempre lia mais algumas páginas para se acalmar. Quando se lembrava do assunto, lhe vinha o labirinto, sempre teve medo dessa palavra, as palavras na sua ideia das coisas são perigosas, ainda mais uma que não demonstrasse saída, labirinto, era algo que realmente temia.
Uma vez se pegou olhando para o espelho, encarando seus próprios olhos, notando seu próprio semblante, por uns se- gundos se perdeu, teve medo quando recobrou os sentidos, viu o perigo de quase ultrapassar o portal, acreditava nisso, no portal para o outro lado, e sabia de muitos que dessa entrada não voltaram.
Quando olho para o espelho, sempre termino me pergun- tando, quem é esse cara afinal?
Sinto saudade da minha filha, de ver ela todas as manhãs, acordar e ir ver ela dormindo, quando acordava punha fogo na casa, correria pra lá e pra cá, não mexe nisso, não pode pegar isso aí, suas perguntas me davam um sentimento de ser útil para alguém, de saber algo e poder compartilhar.
Filhos criados longe dos pais são frios.
Ali era seu trabalho, nada de muito complexo, procurar holerites, cada caixa tinha uma inicial, se fosse r, cheia de Rai- mundos, Ronaldos, Robertos, se fosse um c, Carolinas, Cecí- lias, Carlas, Cristinas.
De vez em quando alguém pedia algo mais, uma ficha de pa- gamento, um fundo de garantia, tudo pelo nome, tudo organizado.
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Todos os dias a mesma coisa, de manha um café SL na vendinha e no início da tarde um almoço PF acompanhado de um refrigerante CC.
Calixto, desde que entrou naquele arquivo, que mais pa- recia um depósito de lixo no começo, fez questão de organi- zar tudo. Cada caixa tinha um número, a pasta indicava o que tinha dentro da caixa, e cada sala abrigava um certo tipo de documento. Uma só para holerites e fundos de garantia, outra só para notas fiscais enviadas e recebidas, e a última, que ficava no fundo da casa, continha documentos diversos, papéis como contas de água, luz e aluguel.
Esse dia era especial, chegaria alguém não programado, alguém que lhe ajudaria, estava desconfiado, é verdade. Afinal por que colocar outro cara com ele, para um serviço de que dava conta? Mas outros pensamentos lhe vinham, e eram mais convincentes do que uma substituição.
Foi ao banheiro, passou água nos pequenos fios atrás da nuca, lavou o rosto, para tirar um pouco do brilho, e secou com papel higiênico. Foi para a frente da casa, abriu a porta e sentou calmamente na cadeira, à beira da mesa que ficava de frente para a porta, se passasse alguém naquele momento e visse a cena, com certeza acharia estranho, no mínimo mórbi- do, mas ninguém o veria, essa era a verdade, o muro tinha um metro e vinte de altura, mas eram as grades que completavam a invisibilidade de quem estava dentro da residência.
Alguém chegou, olhou os dois pés de rosa que insistiam em crescer no quintal, também notou os matos já altos e al- gumas pedras que, com certeza, foram usadas por alguém há muito tempo para fazer um jardim, sem conseguir êxito.
Bateu uma mão na outra e Calixto escutou as palmas, levantou como se fosse um diretor de multinacional num
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momento muito importante, conferiu o zíper da calça jeans para ver se estava fechado, bateu as mãos por cima do bolso para conferir o relevo das chaves e sentiu no outro a colher novamente, por último colocou a mão para trás e bateu na carteira, que trazia alguns trocados, velhas fotos e anotações.
Finalmente chegou à porta e perguntou primeiro quem era.
Sou o Hamilton, foi o departamento pessoal da Robson Canto que me mandou.
Entrou. Um jovem moreno, cabelos enrolados, com ex- cesso de gel, calça de sarja, camisa colada no corpo com os mamilos salientes, magro e muito curioso.
Então é aqui que está o nosso arquivo? Legal cara, eu sou o novo funcionário.
Calixto não queria pegar na mão do rapaz, mas isso fora inventado muito antes, era uma forma de mostrar que não se estava armado, e não se podia fugir disso, ele odiava, mas sabia.
Seja bem-vindo.
Obrigado, você que é o Calixto, o encarregado daqui? Sou sim, o patrão de todo esse império.
O jovem entrou, viu os fios do telefone presos a pequenos

pregos, viu o carpete desbotado, as paredes deterioradas, mar- cadas pelo tempo que age igual com as pessoas, transforman- do-as em caricaturas de si mesmas, leves lembranças do brilho que um dia tiveram.
Está estranhando a casa? Bom, ela é velha, assim como o salário é defasado, mas em compensação o trabalho aqui é simples, vou te passar tudo aos poucos, mas não tem segredo, você já trabalhou com arquivo?
Não. Na verdade trabalhei com vendas em farmácia, e em lojas de roupa no fim do ano.
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Bom, creio que essa experiência não vai servir, mas te passo tudo e você não vai ter dificuldade, cada caixa ali tem uma letra do nosso alfabeto, cada letra significa a inicial de um nome, então se formos procurar os documentos do senhor Antônio por exemplo, você vai na caixa do A, retira o Antônio do mês de janeiro, depois vai na caixa do mês de fevereiro e assim por diante.
E aquelas caixas ali?
Bom, essas são numeradas, existem duzentos e sessente e cinco caixas, todas estão nesse controle, através dele você acha a relação do que precisa, eu classifiquei por cor, cada sobreno- me a mais tem uma cor, mas isso você pega também, o mais difícil são as fichas de empregados, que ficam arquivados na outra sala, te passo depois que você aprender essa sala aqui.
É sempre assim tranquilo? Ou tem uns momentos de correria?
Bom, na maioria das vezes é calmo, mas como trabalhamos para uma empresa de terceirização, às vezes eles mandam um setor todo embora, e aí você imagina, um deles resolve pôr a empresa no pau e convence os outros, acaba um sendo teste- munha do outro e entram com ação coletiva, aí é osso, tem que pegar documento de todo mundo, então imagina quinze ou vin- te pastas de uma vez, e puxar todos os anos desses caras, mês a mês, então deve ser por isso que eles te mandaram aqui, devem ter perdido algum contrato e aí já viu, demissão em massa.
Nossa, eu não imaginava.
Esse ramo aqui tem suas particularidades, saber a história da demissão do funcionário é bem bacana, a gente pode ligar no RH e perguntar, sempre eles falam e a gente se diverte.
Mas como ver alguém perder o emprego pode ser engraçado?
Ah, a gente tem que ser neutro, veja por exemplo o caso da semana passada, do vigilante que pedia o crachá de identi-
Deus Foi almoçar
ficação para a faxineira toda vez que ela tinha que passar por ele, ela começou a se irritar, e ele continuava a pedir o crachá, disse que aquilo era perseguição, mas o segurança continuava a pedir sempre o crachá, trinta vezes por dia se ela passasse por ali, numa discussão ela lhe prometeu vingança, um belo dia ele foi pegar seu uniforme no armário e estava todo picotado, não deu outra, ele foi até ela no meio do hospital e deu duas coro- nhadas na cabeça dela, então é justa causa pra ele, e a gente tem que separar tudo, tô com a foto dele aqui na minha mesa.
Nossa! Pensei mesmo que fosse só papel.
Tem sempre gente atrás do papel, meu jovem, se soubes- sem disso não havia morrido tanta gente no Holocausto, veja a foto do animal.
Cara de bravo.
Bravo com empregada, deve ser um cabra muito triste pra perder a vida assim.
Senhor Calixto, ele foi indiciado?
Senhor não, por favor só Calixto, e não, ele não foi indicia- do, mas perdeu o trampo.
Calixto, e o Doutor Robson vem aqui?
Muito difícil, no começo ele até vinha, mas, depois que abriu várias filiais, não tem tempo pra nada.
Hamilton viu um crucifixo na parede e perguntou se Ca- lixto era católico.
Calixto olhou para ele e não disse nada.
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Capítulo 5
As coisAs me têm
O mijo tem mais pressão que a água da torneira em que lavarei a mão.
A água gelada deixa os mamilos duros.
Uma vez uma profissional os tocou, foi só uma vez. Le- vei ela para casa, pensei em chupar a língua, dar um daqueles beijos tipo sucção em que você aspira pra dentro de você e prende como se tivesse fumado um baseado, eu chamo esse beijo de “suga alma”.
Ou talvez ela me desse um “lambuza lábios”, daqueles que deixam até o queixo lambuzado, pensei na minha língua na sua buceta, meu nariz tocando seu cu. Mas ela me deu a porra de um abraço, um inesperado, desconcertante e quente abra- ço. O meu sorriso caído, minha cabeça pensa para o lado es- querdo, meus braços soltos e uma gagueira que atacou como atacam os soluços, tudo isso deve ter denunciado meu estado.
O que você tem, que larga na juventude e jamais vai ter novamente?
A inocência.
O bem era o bem, o mal era o mal e tudo era muito simples. Gosto do cheiro da água na calçada quente, também do

ar-condicionado do carro quando é ligado. Duas coisas diferentes.
Deus Foi almoçar
Será que virei a porra de um velho, cheio de lembranças e o tempo todo pensando num sexo que jamais terei?
Parei a dois minutos do poste, já tinha contado duzentos e vinte e cinco deles, quando me dei conta do que estava fazendo parei.
Os fios saíam do alto e pareciam descer como veias saltando, bailando para os homens magros e seus canudinhos de câncer sendo sugados, homens nervosos que andam apressados para no fim chegar alguns instantes antes em casa, sempre antes do fim.
Tomam banho, vestem shorts e meias, todos eles têm muito frio nos pés e vão deitar, com o saco esmagado no meio das pernas, e com a mão esquerda apoiando a cabeça por cima do travesseiro.
A chuva desliza por meu rosto, prédios, nariz, janelas, ore- lhas, carros, boca, pessoas na rua e só tenho como proteção minhas sobrancelhas e uma vaga lembrança de que parei a contagem por volta de duzentos e vinte e cinco postes.
As ruas, o cimento que sistematicamente substituiu as pe- dras, não têm brilho como tinham as pedras, que eram desfo- cadas pelo sereno, que entre uma e outra nascia alguma planta, esse cimento agora só reflete uma mensagem, ele tem vontade de me dizer para não tentar mais respirar.
Parado às vezes olhando de soslaio para o poste, quase sempre para a rua, entendo pela primeira vez desde que fui tirado de dentro de outro ser, e que vou morrer sem entender quase nada desse novo tempo em que estou, porque a menina continua aparecendo no meu sonho, que sentido faz o homem de chapéu azul ou pior ainda por que tudo está se desman- chando a minha volta e parece que sou só um telespectador da minha própria vida, não sou o motivador, de uns anos para cá sou somente levado, levado de um lado para outro, de uma situação para outra, vou estar um dia no comando, de repente vou estar novamente no comando, mas e se nunca estive?
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Ferréz
Sou vestido de carne e deve ser um padrão pelo tanto de seres que encontro na rua.
Lourival me ligou ontem, disse que precisava falar comigo algo sobre Carol, espero que não tenha descoberto nada negati- vo, pois acho que tenho algum sentimento para com ela. Não sei ao certo, mas ódio não é, isso sinto por todos e apesar de tudo que estamos passando, no casamento, ou sentimento, ou tudo isso, no fundo no fundo sempre resta um pouco de esperança.
Ela destruiu tudo, detalhe por detalhe, ela acabou com toda chance de uma vida um pouco feliz, e hoje vive assustada a qual- quer batimento numa porta vizinha e depois com os olhos ardi- dos de tanta TV e crochê, de tanto virar a cabeça, de tanto olhar pela janela, de tanto secar as lágrimas, que caem no álbum e da- nificam as fotografias de um tempo em que a felicidade não era uma promessa tão distante, nem as noites por esperar ele, tão longas. E ao olhar o relógio no centro do bar, olha para o furo no centro do seu corpo, e o mundo gira à sua volta, coisas acon- tecem, pessoas passam, ventos sopram, árvores ficam paradas.
E uma mulher chamada Carol não acredita mais no amor.
Melinda, a pequena Melinda lhe vem à mente, andando lentamente pelo pátio da escola, as crianças rindo, mas ele olhava só para o grande negro que estava em seus olhos, não parece fazer muito tempo que tudo aconteceu, e na época ele tentou memorizar cada detalhe, para guardar consigo o tanto que pudesse, para quando tudo estiver sem graça, do fundo de sua mente, aquele passado ser mais presente.
O rosto era uma massa disforme, e só enxergávamos os olhos por uma pequena parte branca, o restante era tudo escu- ro também por causa de um forte delineador.
O cabelo caía sobre a cabeça como aqueles cabelos de bo- neca, com apenas duas fileiras de tufos.
Deus Foi almoçar
A companheira só ouvia, como se estivesse num julgamen- to em que o silêncio fosse uma prece.
Mas, assim como o assunto de sua amiga era somente um blefe, a sobrancelha era maquiagem permanente, havia tirado aos seis anos ao ver o pai se barbeando.
Os casos amorosos encheriam livros de Sabrinas.
Talvez só assim com essas ficções ela conseguisse se man- ter respirando.
O anel com uma pequena pedra estava apertado, no gordo dedo, um professor que não quis largar a esposa e foi abandonado por ela agora passeia por uma praça, olhando as meninas, pen- sando que elas, as pequenas meninas, não podem machucar ele.
A amiga ria, como se pedisse socorro, frases prontas, o pas- sado é passado, eram usadas e depois mortas em seu sentido. Quando tudo é descavado lá do fundo de uma infância trau- mática e no mínimo incomum.
A bolsa de couro combinava com a saia, e o sapato escar- pim não parecia equilibrar tanto peso emocional quanto o que colocava em palavras.
Um dia ela foi uma garota de 15 anos, olhando para um homem de 32, dançaram numa laje, ao lado de um muro bai- xinho, no fim da festa, entre dezenas de latas vazias de cervejas no muro, o homem a pegou pela cintura, encostou o lábio no seu, enfiou a língua na sua boca, ela ficou com menos de dez quilos naquela hora, jura durante todos esses anos que poderia ter voado, como Clark fez com Lois.
Melinda se sentia viva, e esses momentos eram raros em sua vida.
Calixto vestiu a camisa, abriu a porta e foi se encontrar com Lourival, e juntos foram na casa do seu tio, Lourival era o único que visitava o velho.
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Andando, dando a volta pelo bairro, aquela mulher lavan- do o quintal, os anões, a cadela sendo alimentada, ele não lem- brava mais o nome da cadela.
Olhou para as mãos, talvez em forma de concha, talvez não, preferiu abrir a boca e sentir o gosto.
Quando a gente fica velho é uma merda, acostuma falando que está com isso, que está doente com aquilo.
A mulher do ouvido bonito.
Esses pinheiros todos, né?
Eu ainda vou ganhar na loto.
Tantas conversas sem sentido, a gente vai ficando senil. Samira, o nome da cachorra é Samira.

Mamão, banana, mas o médico falou que a frutinha que eu quero não posso. Não é mais seguro guardar mais nada na mi- nha memória. As coisas mudam para permanecer as mesmas, foi difícil, e percebi que estava com problemas, quando já não conseguia parar de ler uma revista, pelo simples fato de deixar algo inacabado, a página marcada me incomodava, então eu procurava uma palavra no texto, mas não lembrava o texto e lia tudo novamente até encontrar essa palavra.
Chego no lugar combinado, Lourival está lá sentando, eu cumprimento ele, começamos a andar, vamos visitar seu tio.
A casa é bonita, ou foi algum dia, as paredes têm manchas, histórias passam pelas manchas, cores se criam em meio à antiga tinta, o tio chega, camisa branca de botões, calça azul-marinho, sapato preto há muito sem graxa, o tio aperta nossa mão, o tio sorri um sorriso banguela, o tio é simpático e quase todo calvo.
Meu filho, na página existia a palavra formiga, nunca gostei dessa palavra, inventei de cortar ela, mas não fico com nada que tenha defeito, e olhava o livro na estante, sabia que ele tinha uma palavra cortada, era um livro defeituoso, então tive que
Deus Foi almoçar
jogar o livro fora. Tinha mania de preservar meu Lexotan para que não acabasse antes do dia findar. Mas no Rivotril eu encon- trava meu amigo assim como o Diazepam também servia. Nos finais de semana eu diversificava, tomava Benflogin que é um remédio pra dor de garganta, mas com uma vodca boa dá uma loucura. Mas vou te dizer, o nome que mais me agrada é o Va- lium, eram bons tempos aqueles, hoje, meu filho, todo mundo só cheira, é uma cheiração dos infernos, pó pra cá, frango pra lá, uma porra de uma droga nojenta, onde todo mundo é igual, até isso conseguiram com a globalização, com essas merdas aí de manobra de massa, até droga virou coisa popular.
E ele continuava, sempre a me chamar de filho, e a contar as histórias, eu pegava uma dose de café e ficava ouvindo, afi- nal também não tinha nada melhor pra fazer.
É que nem as guerras, todas elas são uma merda, pode ser no Vietnã ou em Gorazde, todas as merdas de guerras são assim, e depois em algum escritório ou gabinete algum engra- vatado que não sabe o que é se afundar na merda, nem se- quer pisou em alguma, vai estar falando em revolução, tirania e glória. E nós vamos ser resumidos a isso, uma porra de uma palavra, eles não sabem, meu filho, eles não sabem que o grau de dominação é tão alto, que a própria elite nem sente remor- so mais pelo que faz, ela já está num estado tão inconsciente de dominação, que é o mais avançado, quando ela nem sente mais que está fazendo algo errado, quem nem essas coisas de jogar lixo no chão, discurso de filho da puta, meu filho, filhos da puta, não jogue o papel no chão, mas gastam mais com o gato do que doariam para um orfanato, não jogue o lixo na rua, mas pisam num mendigo se ele não sair da calçada, vamos reciclar, mas é por estudarem em faculdade pública mesmo sendo ricos que o homem com 70 anos hoje tem que vender
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Ferréz
bala no farol, porque não tem dinheiro pra todo mundo, e eles sabem disso e estão sempre no começo da fila, mas um dia isso muda, filho, o sucesso é solitário, essa raça de infeliz.
Ô, Lourival? Chega mais, vem ouvir aqui seu tio, ele só tem ideias boas.
Nada, prefiro ver aqui o seriado, tá na última temporada.
E fui continuando ouvindo o senhor Roberto Causo, que agora com seus 70 anos parecia mais lúcido que todo mundo que eu conhecia.
É isso meu filho, eles sabem tudo, que os discos existem, que em Marte já moraram milhares de seres, mas ficam aí com seus quintais abandonados, sem filhos nem jogos, porões que enterram surpresas e uma varanda vazia, perdendo a visita para uma vida melhor, eu já passei por isso, ser ninguém é uma merda, você arrumar e esperar alguém, alguém que não chega porque na verdade não existe. E só nesse dia percebi que o tanto de coisas que juntei sujavam minha memória, ini- bindo minha imaginação, e tumultuavam meus olhos, por isso eu dou, dou o que a pessoa quiser, quer levar algum livro, pode pegar, quer um vinil, é seu, a gente num tem nada de verdade, e se apegar às coisas é uma merda de burrice.
É verdade, Seu Roberto, nisso eu concordo mesmo.
Eu era doente, filho, uma porra de um doente acumulador, precisava embalar, por mais que soubesse que as tiraria dali logo depois, precisava trancá-las pra que talvez olhando para o nada descobrisse algum sentido, eu era, filho, um ser prisionei- ro do que tinha, hoje não sou mais, foi o que vi depois, é uma autoanálise disfarçada de ficção.
É, Seu Roberto, as coisas acabam não tendo mesmo senti- do se a gente fica guardando, né?
Filho, as coisas só existem quando a gente acredita nelas.
Capítulo 6
sebo
Calixto chegou da cozinha com dois copos, um de água e um de café. sentou no sofá, bebeu a água e sentiu o cheiro do café, pensou em ligar a televisão, mas ao encarar o seletor de canais não o fez.
Olhou para o telefone e resolveu ligar. Alô?
Oi, é Lourival?
Sim, fala, Calixto.

Cê queria falar comigo?
Queria sim, seguinte, tem um lugar aí do lado do seu tram- po que eu tava a fim de ir, queria ver se não quer chegar lá comigo.
Que lugar?
Uma casa das primas.
Por que tá falando baixo?
Estou num sebo, por isso tô falando mais baixo, mas e aí

tá a fim de ir?
Você tá falando do cabaré aqui do final da rua?
Esse mesmo, cê já foi?
Fui nada, você sabe que tá tudo complicado na minha vida

agora, imagina me enrolar nessas coisas.
Tá com medo de se apaixonar por uma dona?
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Ferréz
Não é isso Lourival, é que tudo tá confuso mesmo, e num tô a fim.
Bom faz assim, nessa semana, se quiser ir, me liga. Eu tô a fim de dar uma passeada diferente.
Beleza então, qualquer coisa eu te ligo.
Ok, espero então.
O lugar cheirava a livro velho, tanta coisa que havia em

tão pouco espaço, a impressão que se tinha era de que tudo era marrom.
Mas você não conseguiria o single?
Acho difícil, a última vez que apareceu um aqui, estava sem capa, e bem zuado, tipo uns risquinhos chatos, dependendo da agulha que você usar até que num aparecia, mas legal mes- mo num tava.
Bom, se aparecer algum, guarda pra mim, e esse Creedence?
Ele é europeu, se quiser dou um desconto bom, faz assim, fecha esses Tim Maia aí que te dou ele de brinde.
Demorou então, vou levar, agora o compacto do Tim você arruma?
Tem um cara que vai trazer um lote aí, ele virou crente, ia queimar tudo, aí entrei na mente dele pra vender.
Que doidera!
Pois é, Lourival, o pastor fez um bom trabalho, pois além de mudar a mente do cara, ainda convenceu ele que o mal não deve ser passado para outro, aí entrei na mente também e disse que era melhor ele usar o dinheiro que faria com os discos para o bem.
E ele engoliu?
Direitinho, vou pegar o lote essa semana, e tem muito compacto, se tiver algum do Tim separo pra você.
Certo! Vê lá se tem uns barato legal e me liga, tô quase fe- chando a coleção, depois só vou melhorar alguns que estão ruins.
Deus Foi almoçar
Certo, deixa eu ir, pois tô vendendo um lote do Demolidor prum cara ali.
Demolidor já da Superaventuras Marvel?
Não, é da Ebal, mas essa fase que você falou é show tam- bém, principalmente na era Frank Miller, já viu um cara entrar tão na moral e dominar tudo assim?
E ele era só desenhista.
Verdade, agora eles estão lançando tudo de novo e enca- dernado, o cara compra a história toda encadernada, num vo- lume só.
É, mas a emoção de ir completando todo mês ele não vive, isso não tem preço.
Verdade, mas o lote que tô levando para o cara é da Ebal mesmo, tem até a fase dele amarelo.
Vixe! Relíquia, a Ebal era tudo de bom.
Editora assim não tem mais, a última foi a Opera Graphi- ca, que fazia tudo com um amor fenomenal pela nona arte.
Verdade, até os clássicos do Alan Moore ela relançou.
A fase dele no Super-homem foi show mesmo, num chega a ser o argumento dele no Monstro do Pântano, mas representa bem o talento do cara, agora o último trabalho da Opera foi o Fantasma, terminou com um livro histórico.
Outros trampos bons é do Flávio Colin, o cara desenhava demais.
Nossa, dessa leva tem muito cara bom, era a época da Gra- fipar, tipo lá pelos idos de 81, Ataíde Braz, Branco de Rosa, Watson Portela, Mozart Couto.
Ah! e o Rodval Matias, o criador do Raio Negro, Gedeone Malagola.
Só fera, Fernando Ikoma, Paulo Fukue que usava elemen- tos do mangá já naquela época.
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Ferréz
E você esqueceu o mais foda.
Qual?
Claudio Seto.
Putz, era foda mesmo, o Seto era o cara, e você também

esqueceu de outro na mesma linha e época.
Hum! Num dá pra se lembrar de todo mundo, é da época

da Neuros?
A revista?

É, foi ela que também trouxe um monte de quadrinhos desses caras, se lembra dos dizeres? “O europeu prestigia o quadrinho da Europa, o americano prestigia o quadrinho dos Estados Unidos, nós que gostamos dos dois, prestigiemos tam- bém o quadrinho da nossa terra.”
Claro que lembro, isso terminava a história do Coronel Santino, palavras do Shima.
Mas e quanto ao outro cara?
Bom, vou te dar uma pista, o cara fez no Álbum Encantado a história Lágrimas do Céu, dizem que foi o primeiro mangá do Brasil.
Ah! Aí é fácil: Minami.
Isso mesmo, o Minami Keize, que fez o desenho e a história. Mas voltando ao Colin, era muito bom mesmo, até hoje

eu fico pirando nos traços, mas sofreu muito preconceito, ele tinha um estilo bem próprio, e pagou o preço, num país desse aqui, que todo mundo quer ser clone de alguém.
Ser brasileiro é difícil, amigo.
É, se tivesse nascido nos States tinha ficado podre de rico, ia ser um Jack Kirby.
Verdade, lá a cena é tão foda que até cara independente vende muito.
Capítulo 7
minhA pequenA
Carol, eu já falei pra você que eu te levo ela no domingo.
Mas você tinha falado no sábado e não trouxe, já são seis da tarde.
Eu falei domingo, tranquilo mesmo, sem estresse eu te levo a menina no domingo, deixa eu curtir minha filha um pouco.
Sua filha, né? Na hora de dar o que a menina precisa num é sua filha assim.
Não vamos discutir isso na frente da menina, eu levo ela ao meio-dia, tá bom?
A gente tinha uma vida, Calixto, uma vida que muita gente tinha até inveja, veja o que virou, você acabou com tudo, com esse desgosto seu aí.
Carol, me desculpa, me desculpa por ter entrado na sua vida, eu não quero discutir.
Você é um homem assim mesmo, desses que fogem de tudo, que deixam de encarar a realidade, pelo amor de Deus, o que sobrou disso tudo?
Rancor.
Passa pra menina, não quero mais ouvir sua voz nojenta, e me traz ela aqui domingo de manhã.
Tá.
Hum, tchau, minha pituchinha. Tchau, mamãe.
Pai, pai.
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Ferréz
Que foi, linda?
O meu carrinho só tem uma rodinha.
Então quebre a outra no degrau.
Papaizinho lindo ficou de arrumar.
Papais mentem, minha pequena.
Assisto a bonecos controlados por mãos que imitam movi-

mento da boca. O eco do poeta diz que o sapo não lava o pé porque não qué. O meu sofazinho é rosa, quando sento, todos dizem que se vê um cofrinho.
Num liga, minha pequena, adultos são ruins.
Cofrinho é pra pôr moeda no porquinho, né, pai?
É, sim, filha.
Papaizinho, dá moeda pro menino que joga laranja pro alto? Dou, porque ele é pobre filha.
Pobre num tem moeda?
Não.
Por quê?
Porque alguns têm todas as moedas.
Por quê?
Porque Deus fez o mundo assim.
Por quê?
Por que o quê?
Por que Deus fez o mundo?
Pra brincar com a gente.
Eu brinco de rosa.
Brinca, sim, filha.
Tudo é rosa o que tenho.
É, sim, filha.
O mundo é cor-de-rosa, né, pai?
E muitas outras cores também.
Um polvo com dois olhos grandes morde, pai?
Deus Foi almoçar
Não, filha, quem morde é cachorro. Liga o cachorro, pai.
Tá, você quer ver televisão?
Liga, liga a caixa que tem gente dentro. Tô procurando o controle.

O que é isso, papai?
Papaaaaiiiii, minha papai.
Tô pegando o controle, espera.
Dodói aqui, papai.
É só canetinha, minha linda.
Dodói. Dodói.
A vida é assim, filha, cheia de dodói.
Larga o contole, é minha, minha contole.
Espera, filha, olha o girino.
Vou ver.
Deixe eu brincar?
Você num vai assistir?
Não.
Mas acabou de pedir.
Qué dedeia?
Dedeia não, só na hora de dormir.
Qué dormi!
Espera aí, papai vai no banheiro.
Um-humm!
Olha a pepeca dela, pepeca dela.
Para, filha, papai tá fazendo xixi, isso num é pepeca. Pepeca do papai quebrô?
Há, há, Carol, escuta essa, a doidinha falou que minha pe-

péca quebrou.
Por um momento chamei Carol, por um momento me sen-

ti casado novamente.
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Capítulo 8
Antes de lAvAr o quintAl
A menina que assiste à TV nasceu num hospital bem pe- queno, próximo ao lugar onde passou sua infância.
A Vila Alpina era simplista, como o pano de prato de sua mãe, com dois raminhos e apenas uma flor, ao lado de uma casinha rodeada por uma cerca marrom.
No bordado vermelho na beirada do pano, um pouco aci- ma se via sua assinatura. Socorro.
Aquela menina que gostava de chupar picolé de banana demais e acabava ficando resfriada toda semana.
Nos seus 12 anos, as bonecas foram aposentadas, e o ci- nema tomou seu lugar, seus cabelos finos eram penteados vagarosamente para caber duas presilhas, seu vestidinho era passado e engomado, seus sapatos eram limpos com um pano úmido, suas bochechas, beijadas.
O dinheiro do ingresso era contado, uma dádiva do pai, que entendia pouco de arte e essas coisas, mas achava melhor sua menina sentada numa cadeira de cinema vendo algo pela tela, que ficar em casa fofocando com as vizinhas ao lado de sua mãe.
Os pequenos olhos azuis mudavam de cor com a ação do filme, e o cine Dom Bosco nunca foi tão luxuoso.
Ninguém acreditaria que aqueles olhos ficariam mais apa- gados, e depois seriam cobertos com lentes de vidro, e que em alguns anos eles fariam brotar tanta água sentimental, que fariam a bochecha hoje aveludada da pequena ser um duto profundo de transição para a descida das lágrimas.
Deus Foi almoçar
Morte de marido num é fácil. Ela sempre dizia para as amigas, ainda mais que, ao contar toda a história, sempre dizia que ele era sua alma gêmea.
Brigavam pouco, na verdade nem se lembravam de quando brigavam e voltavam a falar imediatamente. Birras não existiam, ele não jogava bola, não bebia e quase não tinha amigos. Ela sem- pre preocupada com a mãe, vítima de um tumor que perturbou muito, mas a mãe teimou e morreu de ataque cardiovascular.
Hoje a pequena está gasta pelo tempo, lava seu quintal como quem quer lavar algo para que suma, para que fique tão limpo que não exista, para que não passe mais ninguém ali, para que ninguém pise onde seu amado já pisou, onde ele esfregou a mão grande cheia de cimento, tampando cada buraco que o cachorro fazia no cimento fresco que mais à frente se tornaria sua calçada.
Ela gostava muito de olhar aquilo, parecia que até via as digitais, tentava se lembrar de outras coisas, no começo ainda se lembrava de suas idas noturnas ao banheiro, do folhear das páginas dos livros que ele lia enquanto jogava algo dentro do vaso, uma vez ele veio correndo ao quintal, estava com um livro nas mãos, insistiu para ela ler, ela leu sobre o autor, Ray- mond Carver, mas ficou somente no início do livro. Não era difícil vê-lo assim, radiante depois de ler um livro, queria con- tar a história, falava sobre o autor, numa sede por passar um pouco do que tinha vivido, parecia que tinha ido viajar e tinha muita novidade para contar.
Mas o senhor do tempo continuava a trabalhar, andando com seu livro pesado acorrentado a seu pulso e tudo isso foi sumindo aos poucos de sua memória, hoje ela nota aquele homem passar por sua calçada e parar durante alguns minutos para olhar suas plantas, esse homem já a encarou duas vezes, até que um dia parou, falou que ia chover, e sem mais nem menos se apresentou como Calixto.
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Capítulo 9
o Amor de lourivAl
Se o leão mata o animal menor, Deus está de que lado? Com esse pensamento, Lourival vai andando pelas ruas do centro, questionar o poder divino sempre foi seu grande pra- zer, embora nunca tivesse tido uma resposta direta.
Tinha alguns costumes há muito adquiridos, principalmen- te quando estava de serviço.
Para beber água, mão no bolso esquerdo.
Quando está parado, arruma o colarinho do paletó.
Para começar a andar, mão no bolso direito.
Para olhar alguém, sacode a chave dentro do bolso.
Para despistar o olhar, cabeça para cima, mexida nos lábios. Era essa coisa do olhar que usava quando finalmente via o

seu objetivo.
Saia curta, dourada, seios fartos, essa não serve.
Calça apertada, magra, olhos verdes, cabelos pretos, tam-

bém não serve.
Mãos grandes, maquiagem pesada, vestido de vinil, essa,

sim, está no perfil.
Quanto custa, madame?
Calma, gato, vamos falar primeiro do que você quer. Quero uma hora, não penetro, só brinco.
Tá bom, estamos falando de que tipo de brincadeira?
Deus Foi almoçar
Uma coisa de que eu gosto, não é nada de mais.
Amorzinho, não leva a mal, mas, se você trabalhasse aqui um dia, saberia que uma coisa de que alguém gosta pode ser algo totalmente maluco.
Não, não é nada disso, eu gosto de algo bem simples.
Então deixa eu falar de novo: se você não explicar, não vai rolar.
Bom, é que... que... eu gosto que imite robô. Robô?
É, assim, tipo um robô desses de filme mesmo. Mas você num vai me bater, né?

Que é isso!? Jamais.
Se o leão mata o animal menor, Deus tá de que lado? Dobraram a esquina, subiram pelos degraus, quando o joelho

já estava dificultando, viram o homem sentado à frente da pe- quena mesa cheia de chaves.
Qual quarto?
Pode ser esse aqui, o vinte e três.
Quanto tempo?
Uma hora.
Paga adiantado.
Lourival pega a carteira e tira uma nota, o homem pega,

puxa uma pequena gaveta e coloca a nota, a mulher pega ele pela mão, mais lances de escada, os joelhos agora teimam em não funcionar.
A porta tem resquícios de verniz; a cama, de sêmen e mijo; o chão, de sangue; a maçaneta do banheiro, de fezes; a toalha não dá para identificar de tanta mistura.
Ela vai tirando a roupa, ele assim que vê manda parar. Mas, amor...
Não, não precisa tirar, vamos fazer do meu jeito.
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Ferréz
Vai praquele canto, bem no canto.
Agora fica assim, mais pra baixo um pouco.
Não, não, não se mexe, pelo amor de Deus, não se mexe. Tá bom, amorzinho, calma.
Isso, fica assim, abre mais as pernas.
Assim?
Isso, agora entorta mais a cabeça, deixa o cabelo cair de lado. Hum! Essa posição é horrível, gato!
Calma, fica assim, os dedos mais duros, parados cada um

de um jeito.
Lourival se lembra da Super Vicky, ela sempre lhe deu um

tesão desgraçado. Antigamente eram as estátuas, hoje são elas, paradas, imaculadas, caladas.
Tá bom assim, gato?
Fica calada, assim você estraga tudo, o barato é ter o con- trole da tecnologia sexual.
Tecnologia? Eu sou uma pessoa.
Que nada, você é... deixa quieto, fica só caladinha.
Agora ligue e retorne.
O quê?
Ligue e retorne, sistema vulnerável!
Jesus, você é louco, o que quer de mim?
Ligue e retorne.
Ahã! Tá bom, retornei.
Não, assim não! Eu vou pegar os seus braços, e mudar, você

se curva mais e, na hora que eu mandar, você dá um passo. Tá bom, amorzinho.
Operação iniciada, contagem prosseguindo.
Pronto, dei um passo.

Certo, agora balança devagar como se fosse empurrada levemente.
Deus Foi almoçar
Isso, isso! Deixe o cabelo balançar também, vou tirar a calça, fique parada agora.
Se você tiver querendo me comer, pode mandar bala, ne- ném, o valor é o mesmo.
Não, vou ficar aqui, você obedece.
O que é isso que tirou da calça?
Um controle remoto.
Você vai enfiar isso em mim? Porra! Eu sabia que tava bom

demais.
Não é nada disso, eu vou controlar você, quando eu aper-

tar você age com emoções automatizadas de um robô.
E como se faz isso?
Você treme, porra, você treme e pulsa e depois segue o

comando que vou te falar.
Tá bom, gato, tá bom, vamos lá.
Apertei o dois, pulse e fique de quatro.
Tá.
Apertei o quatro, pulse e olhe pra mim.
Agora, vou apertar o nove, você finge que tá sendo eletro-

cutada, tá dando curto-circuito, então cai no chão. Assim?
Isso, lindo, lindo, você é tão pura, minha robozinha, fica quieta agora.
Você num vai deixar isso cair em mim, né? Não, quando for gozar eu jogo pro canto. Ah! Então goza, meu lindinho.
Cala a boca, é só ficar calada.

...
...
Isso, isso, Deus! Como é bom. Posso levantar?
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Ferréz
Pode.
Amorzinho, posso te perguntar uma coisa?
Pode.
Eu já vi muita coisa nessa vida, e nunca pergunto o porquê,

sabe? Cada um tem sua tara e tal, mas no seu caso eu quero saber, por quê?
É que eu assistia a muito filme pornô, quer dizer, ainda assisto, mas agora em DVD, pois o VHS ficou pra trás, apesar de que tem muito filme bom que não saiu em DVD, e acho que nem vai sair, então pretendo comprar um videocassete de novo, porque também o DVD ele pega uma bactéria que corrói o filme, apesar que muitos falam que o VHS mofa, mas tudo depende de onde você deixa e...
Amor, eu só queria saber da coisa do robô.
Ah, então, é que depois do DVD todo mundo começou a baixar filme e tem muita coisa na internet que não tem em DVD, embora eu não goste de roubar as licenças de ninguém, roubar os direitos e tal, mas tem atriz que até já morreu e fica todo mundo vendo os filmes, então...
Amor, preciso ir, só me fala como é a coisa do robô.
Acho... comecei assistindo a pornô no computador, aí o contato com meu pênis e o teclado e depois...
Deixa pra lá, amor, deixa, me paga que eu tenho que ir.
Capítulo 10
não retirAdo dA cAixA
Os dez pães de sal e os cinco de banha pareciam ficar cada vez mais pesados, a trilha era percorrida, casas iam passando entre intervalos de árvores e flores como se fossem comerciais invadindo a programação oficial de algum canal de TV.
Assim como os comerciais são a fonte da emissora, nos meus sete anos, sentia que o verde era a fonte daquela vila. Ia assobiando, chutando pequenas pedras que se atreviam a estar no meu caminho, quando a mão esquentava demais e umedecia a ponta do saco de pães eu os colocava no colo, como quem transporta um bebê.
Só um homem negro muito velho me cumprimentava, sem- pre passava a mão na minha cabeça e me fazia um carinho na barriga, eu me jogava pra frente rindo igual a quando meu pai fazia cócegas nos meus pés, era um riso rápido e feito com uma força e graça que não consigo fazer hoje, apesar de ser adulto.
O nome do homem era Daniel, e o jeito que me tratava nunca mais se repetiu com outro alguém.
Evito os lugares de comida rápida, tem coisas que me atraem, balcão de bar ou padarias em que a copa pareça envelheci- da, deteriorada, com o lixo cheio, os salgados à venda, desde que não sejam vistosos nem dourados, há algo estranho nessa
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Ferréz
organização das comidas rápidas, há algo de macabro nos uni- formes, nos bótons, nos sorrisos forçados, nos baixos salários.
Talvez seja algo vindo da infância, as peças que meu pai tra- zia da fábrica, todas com defeitos, dizia ele, mas para mim eram perfeitas, hoje ainda gosto de pegar em coisas de cobre, de folhear livros em que as páginas estejam amareladas pela reação da umida- de com um produto, lembrando os velhos livros de montagens que ele trazia da empresa, o cheiro de long plays comprados em sebos, roupas compradas em brechós, lembrando o cheiro do meu avô.
Vou para o bar, encontro um ideal, daqueles onde a esqui- na toda mudou, menos ele, onde todas as placas foram padro- nizadas, e a dele continua igual, corroída pelo tempo, mostran- do que tem história.
Quinta-feira teremos bacalhau.
Mas bater um bandéco aqui não pode.
O senhor quer acebolada?
Pode ser.
Vê um chá gelado.
O balcão de mármore é mais confortável, bate na altura do

meu peito, frio é meu sentimento.
Uma senhora não para de repetir.
Sou livre, meu, num vai por mim, não.
Penso na mulher do quintal, seus cabelos encaracolados,

seus brincos compridos, sua aparência sempre tão cuidada, como se tivesse acabado de se arrumar, queria poder conver- sar com ela, talvez tocar sua mão, nada mais que isso.
De um lado alguém fuma.
Alguém se equilibra em outro banco de madeira descon- fortável.
Cerveja é DTS meu filho, tô te falando, fabricada na antiga usina nuclear, dá até um zumbido no ouvido.
Deus Foi almoçar
A senhora não para de falar, embora dê pra ver que nem ela acredita nisso, seu rosto demonstra a prisão em que ela está há anos.
Porque se hoje a chuva cai, amanhã sorri o sol.
Se houvesse a noite, seria no tempo do dia.
O sentimento de horas não dura nem minutos, o vento no

rosto passou nas ruas de terra. O que passou foi conjugado e o que vem é quase determinado.
Eu tomo um café que está doce demais, uma coisa que não gosto é quando já vem tão adoçado, mas entendo que a amar- gura da vida moderna exige isso.
Olho a vitrine e vejo torresmos um pouco fritos demais, o estômago faz um ruído, mas prefiro comer em casa, não vou ter a sorte de ver um lindo almoço na minha mesa, essa sorte não mais, uma linda garotinha vir correndo para me abraçar e dizer ao meu ouvido.
Hoje tem galinha, pai, uma galinha bem gostosa.
Carol me esperando na mesa, ninguém começava a comer sem o outro, os pratos arrumados, um sorriso no rosto, depois vinha o sofá, e um cochilo bem gostoso, em que a pequena deitava na minha barriga e se aconchegava como se fosse um pequeno pássaro num ninho.
Carol chegava alguns minutos depois com um copo com café feito na hora, eu olhava pra ela com carinho, e o ciclo es- tava completo, isso foi o mais perto do que sei por felicidade, mas hoje o balcão de mármore continua frio, e o dono do bar não para de passar um pano úmido sobre ele.
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Capítulo 11
fAzer o que não quer
pArA ter o que outros querem

O dia de serviço tinha passado voando, Hamilton estava aprendendo rápido, e catalogamos boa parte dos documentos relacionados a fundo de garantia, duas subsidiárias agora po- diam ficar tranquilas, todos os documentos estavam arquiva- dos para caso houvesse alguma auditoria.
Hamilton há dias não parava de falar do lugar, dizia para ele que não era acostumado a sair, e que desse lance moderno eu não manjava nada, mas ele insistia, dizia que a vida era curta e que temos que fazer os nossos momentos, e comecei a pensar se não valia a pena dar uma passada, mas do outro lado eu imaginava as dores nos calcanhares, o tempo em pé, o cheiro de cigarro, os jovens bêbados.
Ele ia colocando cada vez mais lenha e no final deixou cla- ro se eu não gostasse era só sair e ir pra casa, não passou muito tempo eu estava andando com ele a caminho de lá.
Entrei, peguei a comanda na portaria, perguntei onde era o banheiro.
O produto nas mãos, as mãos no cabelo, pouco de gel que usou nas laterais que ainda sobreviveram ao tempo lhe inco- modava, assim como o cinto que segurava a calça que tinha muitos anos sem uso.
Deus Foi almoçar
Olhou no espelho, algo já usado, sem muita expectativa, com sinais de cansaço.
Lugar lotado, na verdade não tinha como desviar, ficou encostado perto do banheiro, Hamilton foi comprar uma bebi- da; Calixto depois de alguns minutos decidiu andar um pouco, mas os esbarrões e pisadas no pé o fizeram voltar ao canto, olhou no relógio.
Inferno, por que estou aqui? Isso é fim de carreira até pra ex-jogador de várzea, eu e meu maldito jeito de nunca conse- guir dizer não.
Não sabia se era a fumaça da máquina no palco, ou a fuma- ça dos cigarros que irritava seu nariz no momento, movia os lábios e falava a mesma frase toda vez que alguém esbarrava.
Nossa! Ninguém enxerga por aqui?
Hamilton chegou, lhe deu a cerveja, ele pegou e agrade- ceu, em seguida disse que era um lugar muito cheio.
Relaxa, Calixto, depois da meia-noite é que chega gente, eu vou comprar um cigarro de cravo, curte aí que eu já volto.
Bebeu um gole da cerveja, foi caminhando para o bar, mas alguém ao passar com os braços levantados esbarrou nele, der- rubando sua cerveja, foi então que viu um degrau sem nin- guém por perto e resolveu se sentar.
O som estava muito alto e lhe dava pequenos arrepios nos ouvidos, tentou ver como podia sufocar aquele barulho, ou melhor, aprisionar para si algum silêncio.
Foi quando alguém lhe tocou o ombro, olhou calmamente e era uma mulher, morena, cabelos enrolados, batom bem for- te e roupas claras, ainda percebeu sua sandália com detalhes pretos e suas unhas com estrelas cor de prata.
Não teve tempo de falar, talvez alguma informação, talvez um cigarro, mas ele não fumava nem sabia de nada por ali.
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Ferréz
Foi quando ela chegou perto do seu ouvido e perguntou por que estava tão triste. Calixto se espantou.
Não estou acostumado a vir nesses lugares.
Ela pegou em seu braço e se aproximou novamente. Notei pelo seu jeito, mas isso num é nada, meu querido, você

tem que se animar, esse lugar é pra isso, levanta e vamos dançar. Calixto se levantou meio atordoado pelo sorriso da more- na que até então nem existia nos seus sonhos mais inspirados, tampouco aquela situação, que mais parecia um roteiro de se-
riado americano.
Eu não sei dançar.
Que nada, é só fazer assim, ó! E colocou as mãos no ombro

de Calixto e saiu mexendo para um lado e para outro, gesto ao qual ele retribuiu segurando na cintura da mulher.
Ato contínuo chegou um jovem de camiseta regata, puxou a mulher com truculência e encarou Calixto e foi gritando.
Você tá moscando, tiozinho, essa mulher é minha, vou falar pra você, é melhor sair fora porque vou quebrar sua cara e vai ser sem dó.
Calixto ficou enojado, Hamilton não chegava, o nojo não era pela ameaça, mas pelas gotas de cuspe que caíram da boca do rapaz, e tentou achar uma abertura no meio das pessoas para correr, mas antes olhou para a mulher que provocara toda aquela situação, pensando que ela estaria tão ou mais enver- gonhada do que ele, mas viu somente um rosto sério, olhando para o nada, e Calixto era esse nada.
Saiu, caminhou apressadamente pela multidão, até que al- guém pôs um pé na frente, ele tropeçou e caiu, algo o acertou na boca do estômago, depois na altura do rim, outro chute agora nas costas, enfiaram a mão em seu bolso, puxaram, ele segurava o bolso da frente, chutaram sua mão, ele tirou a co-
Deus Foi almoçar
lher, alguém gritou que ele usava crack, levantou, uma mulher o abraçou, pediu para pararem, ele se comoveu, finalmente al- guém ali o ajudou, ela o guiou para fora, pediu para o seguran- ça o ajudar, onde estaria Hamilton, ele colocou a mão no bolso de trás, nada de carteira, a mulher saiu e disse para um amigo.
Ele parece meu pai, coitado.
Hamilton não apareceu, será que tinha ido embora? Calixto disse ao segurança que estava bem, a colher na

mão, o segurança falou que sua boca estava sangrando, Calixto quase caiu novamente, deviam ter chutado seu joelho, estava doendo muito, mas disse que tudo bem, pelo menos não pega- ram a colher.
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Capítulo 12
sAbe,moço,
eu nuncA fui brincAdA
O dia está calmo, o rosto recebe o vento.
Ele toca no nariz e depois espalha por todo o resto da face. A sensação é boa, suaviza a ira até de um homem alterado. Os passos são calmos, as inúmeras ruas são devoradas.
As coroas cintilantes que se formam quando as gotas da

chuva despencam dos telhados batem nas já deterioradas ma- deiras que antes cercavam obras de grandes empreiteiras, ago- ra abrigam o ex-funcionário, o atual desempregado.
Ele pensa nela novamente, é algo natural, simplesmente acontece.
Sentenças são dadas e nem tudo é eventual.
O ar entrava, quase repousava, mas de repente saía frene- ticamente, a bacia oscilava, pendia para o lado alguns centíme- tros a mais, talvez lordose, talvez não.
Os olhos da mulher que lava o quintal.
O braço sempre à frente do tronco, os olhos sempre retos na avenida, a mulher ao seu lado diminuiu a velocidade.
Foi em vão, uma sacola quase grudou em seu sapato, mas a meta estava à frente, não conseguia controlar seus pensamen- tos, frases a toda hora, um raciocínio raivoso que se diferencia- va do jeito calmo de andar.
A chuva ficou no outro quarteirão.
Deus Foi almoçar
Desde o incidente na casa noturna, não deixava de ver o rosto da mulher do quintal na sua frente.
Sente o pé esquerdo pisar em algo macio, e o pé afunda levemente. Quando olha, o cheiro já está subindo, fezes de ca- chorro, então decide, tira o sapato, a meia branca é mergulhada nas mesmas fezes já espalhadas pelo sapato segundos antes, ele faz movimentos para frente e para trás até a meia ficar totalmen- te marrom, então enfia novamente no tênis, algumas pessoas param. Um senhor esfrega os olhos não acreditando no que vê.
Ele sai calmamente, um leve sorriso desponta no rosto, uma das poucas vezes que fez o que teve vontade.
Calixto agora chupava a rua como se fosse sua única laranja, se apegava ao que lhe restou de humanidade, o tra- balho, da forma que ele aprendeu era tudo que restou, o velho arquivo, tirem isso dele e não sobra mais nada dentro da embalagem.
Sorriu quando viu a velha casa, e Hamilton esperando no portão, o ajudante era pontual, nada agradável, mas pontual.
O que aconteceu ontem à noite, onde você se meteu?
Poxa, Calixto, eu acabei conhecendo uma mina perto do bar, e aí rolou uns beijos, quando fui atrás de você não te achei mais, você foi embora que horas?
Sei lá, fiquei um pouco, vi que você não vinha e fui embora. O que aconteceu no seu rosto?
Ah! Quando voltava pra casa, uns vagabundos me cercaram,

roubaram minha carteira, eu reagi então me deram um soco. Mas, Calixto, que pena, porra, eu devia ter te procurado e
avisado sobre a mina, mas tá tudo bem.
Tudo bem, foi bom saber, dar uma surra neles, a gente se

sente mais forte e mais homem, né? Você bateu neles?
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Ferréz
Bom, vamos dizer que eu ganhei, eles eram novos, mas eu coloquei eles no lugar deles.
Mas eles levaram a carteira mesmo assim?
É, isso não deu pra evitar, um me segurou por trás, mas depois vou fazer um BO e cancelar o cartão.
Nossa, se precisar que eu fique aí no seu horário, fico de boa, é o mínimo que eu faço aí pra reparar a mancada.
Que nada, vamos trabalhar.
Entrou, começou a organizar a mesa, tinha muito trabalho para reorganizar as caixas, agora colocaria todos os documen- tos de FGTS por ano e depois montaria um catálogo por tem- po de serviço de cada funcionário.
Começou a empilhar as pastas, foi quando olhou para Ha- milton sentado, olhando para a parede que lembrou que ele era seu ajudante, então foi até sua mesa e coloco as pastas à frente dele.
Você vai cortar as laterais delas, até deixar tamanho pa- drão como as que tem na estante, em seguida vai numerar de um a cem, cada pasta vai ter uma ordem que vou te passar as- sim que tiver terminado, e vamos fazer uma lista, em que cada número vai ter os nomes que tem em cada pasta, entendeu?
Entendi, vou começar agora.
Isso, vai começando, vou na delegacia e já volto.
Calixto saiu, passou pelo bar e comprou uma água com

gás, foi andando e chegou na delegacia.
Bancos de cimento são desconfortáveis, ainda mais duran-

te duas horas.
Um homem musculoso, de regata branca, com tatuagens

e um distintivo da polícia pendurado no pescoço, perguntou: O senhor é o quê?
Como assim?
Deus Foi almoçar
O senhor quer o que, meu senhor? Vamos que não tenho tempo.
Eu pensei no tempo que tinha ficado no banco de cimento es- perando, enquanto aquele homem ficava bebendo água e andan- do de lá pra cá e me perguntei se ele realmente não tinha tempo.
Bom, eu fui roubado, meu documento e cartão de banco. Ih! O senhor foi roubado onde?
Na boate, lá perto do centro.
Então o senhor tem que fazer o boletim por lá.

O homem foi virando de costas e saindo, enquanto eu ten- tava falar.
Mas me disseram que era perto da minha casa que eu tinha que fazer.
Ele voltou, estava visivelmente nervoso.
Quem falou? Falsa denúncia é crime, o senhor sabia? O senhor acha que a polícia tá de brincadeira? Quer responder por desacato? O senhor vai fazer essa merda em outro lugar.
Eu fiquei parado, não acreditava naquilo, desacato? Falsa denúncia? Mas do que ele estava falando? O homem virou seus músculos das costas para mim, e eu abaixei a cabeça e saí.
Calixto foi andando pela rua, e quando viu o antigo casa- rão branco parou um pouco antes, olhou suas janelas repinta- das, as colunas corroídas pelo tempo, as infiltrações de água e alguns ferros enferrujados expostos.
Lourival havia dito que queria ir lá, lhe falou como era, ele deveria ligar para o amigo, mas não ligou.
Subindo as escadas, você pode ver o vazio do cimento que deixou a laje há algum tempo.
Como se não bastasse, os degraus têm alturas diferentes.
Uma porta de plástico, um trinco quebrado, uma cama com lençol abatido e um travesseiro no qual a fronha mais seria um pano de chão.
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Ferréz
Um velho ventilador.
Não liga muito forte, por favor.
Só tem uma velocidade, meu filho.
Todos os humanos têm várias velocidades.
Ela tira a roupa, ele olha e não entende, faz dois minutos

que entrou, a gerente falou.
Tem eu e mais dois pra atender.
Deu um beijo rápido e se apresentou.
Karen.
Em seguida chamou as meninas, ela foi embora e veio

uma por vez.
Oi, sou Lilah.

Não posso dizer o que, mas algo nela me lembra da Me- linda, minha pequena Melinda, minha grande paixão dos tempos da escola.
Lilah era loira, gorda, aparentava 40 anos, peitos aperta- dos para parecerem duros, saia vermelha deixando metade da bunda à mostra, sandália com salto estupidamente alto para parecer que tinha mais que um metro e cinquenta.
Cheirava a mofo, menos o cabelo que cheirava a cigarro.
Encostou o batom rosa desgastado no meu rosto e saiu em seguida.
Então entrou uma magra, logo percebi as manchas na per- na, usava short jeans surrado, um sutiã branco. Notei as axilas escuras, brincos grandes, cabelo enrolado curto. Aparentava uns 35, bem gastos nessa vida.
Encostou em mim, como se tivesse beijado, mas encostou so- mente a bochecha na minha, mascava chiclete e disse seu nome.
Kelina.
E em seguida explicou.
As manchas são porque caí do ônibus.
Deus Foi almoçar
Eu comecei a rir, ela saiu rapidamente e depois entrou Ka- ren e me perguntou do que ria.
Eu tive vontade de dizer a verdade, mas quando ela me perguntou com qual menina eu ficaria, resolvi jogar a verdade em algum buraco dos blocos a vista e falei.
Traz a Lilah.
Quem é Lilah?
Aquela primeira que tem os peitões.
Ah! Vou chamar.
E eu pensei aqui com minhas bolas caídas e meu pênis

murcho, tudo bem que elas mentem sobre o nome, mas esque- cer aí já é demais. Lilah, ou Maria, ou Renata, ou Vitória, ou Puta entrou, olhou com uma carinha sacana e soltou os pei- tões, que me surpreenderam e não caíram muito, depois tirou a saia e a calcinha de uma vez, como se fosse para esconder a parte de dentro da calcinha, mas eu vi, e estava amarelada.
A boceta se escondeu por entre as coxas, não se via nada ali, então tirei minha roupa, quinze segundos depois que a camisinha foi colocada com quatro dedos no meu pinto, e uma unha mal cortada triscou na glande, eu já estava suando vendo aquela mulher enorme pulando em mim, e o ventilador rodando lentamente e não cum- prindo sua função, que a meu ver era deixar eu sair vivo de lá.
Por todo tempo que ela estava em cima, eu pensava na frase: “Favor não empilhar seres humanos”.
O pinto ainda estava meio murcho, assim como a cara de Lilah, que fingia gemer, enquanto eu tentava não sentir o chei- ro azedo que saia de dentro de sua vagina.
Minhas mãos tentavam agarrar o lençol, parecia que estava afundando dentro do colchão, eu estava com muito medo, que- ria chamar alguém, gritar. Lilah não parava de pular e apoiava as mãos nas minhas pernas, que pareciam que iam quebrar.
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Ferréz
Eu tentei falar que pagaria o dobro para ela descer. Enfiou um dos peitões na minha boca e ficou me sufocando, queria falar para ela que respiro muito mal pelo nariz, na verdade estava mais preocupado com o meu pinto que parecia ter su- mido dentro daquela vagina molhada e cabeluda.
Goza, filho da puta, goza!
Eu estava com medo.
Vai, porra! Por falta de boceta não é, goza, filho da puta! Eu tentei mexer as mãos, ia cutucar ela pra tentar falar. Pra

tentar dizer que eu não queria mais, mas ela não dava espaço. Olhou bem nos meus olhos, puxou as mãos e disse alto: Fica quieto, deixa que eu conduzo! Então foi pulando mais,
mais, mais e entre um pulo e outro eu decidi falar.
Do que você gosta?
De tudo, amor, de tudo, mas com camisinha.
Odeio esse tipo que fica de segunda, como se a primeira frase

fosse uma armadilha, pra desarmar outro argumento contrário. Tudo bem, eu sei, mas do que você gosta?
Ah! Eu gosto do que você gostar.
Eu estava mais tranquilo agora, ela pulava mais devagar,

acho que a conversa a deixou mais pacata.
Com todo esse balançar, e suor, o lençol estava todo en-

rugado embaixo de mim, e parecia que uma parte dele estava entrando na minha bunda, resolvi continuar.
O que eles gostam de pedir?
Eles quem, amor?
E ela parou, e nisso eu pude respirar um pouco, enquanto

o ventilador estava cada vez mais lento. Os clientes?
Ah! O que você tá querendo? Não, só tô perguntando.
Deus Foi almoçar
Bom, eles gostam que eu ponha o dedo lá, você gosta, amor? Não! Eu... quer dizer, eles falam isso?
Falam, falam também pra mim enfiar o vibrador neles,

você gosta, amor, gosta dessas coisas?
Não! Eu não, eu gosto de comer, de ser homem, eu sou homem. Então goza nessa boceta, porra! Fica aí conversando!
E ela começou de novo, eu pedi a Deus praquilo acabar,

estava sendo esmagado, não sentia meu pinto nem minhas bo- las, minhas pernas, minha alma.
Tudo era dor, e não prazer.
Com a pouca visão que eu tinha, vi que das suas costas des- cia um fiozinho de suor meio verde, me fez lembrar de lodo.
Foi quando fingi que gozei, ela levantou, eu virei pro lado e tirei a camisinha, ela nem olhou, falou pra jogar no lixo, per- guntou se eu queria tomar banho.
Quero não.
Ela nem sequer lavou as mãos, olhou no espelho, prendeu o cabelo novamente, pegou um pedaço de papel higiênico e passou na boceta, ficou uns pedaços que grudaram no suor, vestiu a calcinha por cima e depois calçou as sandálias, nesse meio-tempo, o ventilador foi desligado.
Tirei, sem que ela visse, o lençol de dentro da minha bun- da, mal consegui calçar o tênis, coloquei as roupas no meu corpo, e elas pareciam menores, incômodas, mas era também meu suor, meu fracasso.
Ela me levou até a porta e me deu um beijo.
Vê se volta, amor!
Eu sorri, pensando que, se quisesse me matar de fato, eu voltaria. Cruzei a porta e tinha um homem entrando, óculos finos,

cabelo com gel, roupa social, eu fiquei com vontade de falar para ele sair, mas não falei, que ele se fodesse como eu.
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Capítulo 13
rótulo não é prA ser humAno, rótulo é prA mAssA de tomAte
Acordou cedo, olhos vermelhos, foi ao banheiro e molhou as pontas dos dedos, passou pelos olhos, não estava acreditan- do que tivera o mesmo sonho novamente.
A pequena menina. Primeiro sonhou com ela direto du- rante mais ou menos seis meses, depois parou, e de umas sema- nas para cá ela tinha voltado, o mesmo olhar, a mesma roupi- nha rosa, os cabelos negros lisos terminados em duas grandes tranças, as mãos para trás e a frase estranha que ela reproduzia fielmente em todos esses meses.
Saiu e não viu a mulher do quintal, olhou o anão de gesso nos olhos, pensou em falar com ele, mas e se ele não respon- desse? Continuou a caminhar e parou no bar, encarou o balco- nista por algum tempo, depois disse de uma vez:
Quero um café preto, mas antes me vê um copo com água.
O balconista demorou para trazer a água, na verdade tem dúvi- da se é mineral, mas acaba trazendo um copo com água da torneira.
Calixto bebe a água, mas só pensa no sonho.
Um homem bem mais velho que ele, usando um chapéu de palha, senta ao seu lado, também pede um café, cumpri- menta, Calixto não responde, o homem começa falar.
Deus Foi almoçar
Por que tudo na vida é assim, né, moço? Tudo na vida é relacionamento.
Calixto não quer escutar, quer correr, quer pagar o café ou jogar na cara daquele homem, não gostou dele, não gostou por ele ter se sentado ao seu lado, interrompido seus pensamentos no sonho, por ir logo falando, como se interessasse a alguém.
Eu, eu gosto dela, sabe, pra falar a verdade eu já gostava dela casada, num é culpa minha, é mais forte, sabe, gosto mais dela do que de mim, você tá me entendendo, essa coisa de amor é uma doença, a gente é capaz de tudo, sabia moço, moço?
Ahã.
Ele teve que soltar alguma palavra, mesmo tentando voltar ao sonho, o homem insistia, e agora o rosto da menininha tinha ido em- bora, e só ficado a conversa daquele homem e seu amor por alguém.
Quando eu pego ela, nóis trabalha bem, é uma coisa que eu nunca tinha sentido, claro que já gostei de várias mulher, mas essa é uma coisa muito louca, eu não consigo nem dizer, dá uma dor aqui quando ela tá longe de mim.
Ela é bonita?
Bonita não, linda, ela tem um corpo lindo, é toda cheirosa, carinhosa, rapaz! Eu vou te falar, a mulher é show, nota dez, quando eu pego eu sento o tijolo, me lambuzo todo, viro crian- ça de novo, não quero me vestir, não quero mais sair de casa, eu olho ela tomando banho, ela rezando, olho ela assistindo TV, eu assisto é ela.
Calixto toma o café, está morno, o homem agora olha para ele esperando uma resposta.
Nossa, você tá mesmo apaixonado.
Tô sim, vou sair com ela, pagar um almoço, falar com ela, veja bem, eu já não tenho mais nada pra perder não, não tenho que me preocupar com ninguém não.
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Ele ouve, mas ouve com ódio, dá uma inclinada quando o homem respira e parece que vai perguntar algo, mas con- tinua falando.
Quase 70, rapaz, e o negócio tá que tá fisgando, xá comigo pru cê vê se eu num rebento tudo.
Calixto toma a última golada de café, tem gosto de cabo de guarda-chuva, pensa ele, mas nunca experimentou algo assim, e a frase de efeito reflete enquanto o homem continua a falar, a cuspir perdigotos ao acaso e balançar a língua como se ela fosse fugir.
O homem agora cheira à morrinha.
Os tamboretes ficam mais apertados entre si, e Calixto per- cebe que não estão fixos no chão.
O prato feito do dia é picadinho, todo bar com tamboretes serve picadinho às terças-feiras.
Olho para o balconista, o avental só tem um botão e o cava- nhaque está torto, dando a impressão de um rosto acidentado, pertencente a um cavanhaque certo, mas só percebo isso porque a conversa do homem virou uma música sem ritmo.
A conversa vira poesia, mas pouca poesia, relacionamento básico, poesia fácil de ser escrita, daquelas que todo mundo pensa ser só sua.
O homem para de falar, olha para o balconista.
Por favor, me vê mais um café preto SL e um pão na chapa. Finalmente o maldito pede algo para comer.
Falou, patrão.
Sem esmagar o pão.
Não vai querer prensado, então?
Não.
Sai um na chapa sem esmagar.
O pão é pego, cortado, virado e recebe a gordura SL, de-

pois é jogado no chapa já preta de óleo SL.
Deus Foi almoçar
O café SL chega, com uma parte do dedo do balconista dentro do copo.
Vejo a digital, o homem parece que não e bebe por cima dela.
Uma dona passa. Cabelos enrolados, negros, rosto pálido, longos braços. Foi o que viu, mas o cheiro era melhor que tudo isso, teve vontade de ir com ela, falar baixinho no seu ouvido, que precisava de alguém, mas ela anda apressada, tem seu pró- prio peso, alguém que a ama, que vive pelo meio.
Come o pão, e algo dele gruda nos dentes do fundo, cutuca com a língua, o café requentado, dá pra ver um pouco de espu- ma branca, vai começar a falar de novo, com certeza.
Calixto olha para a rua, tenta achar um jeito de escapar, mais uma mulher passa, ele olha.
Vai evitar os lençóis molhados, tintura de cabelo, suor, ba- tom de morango, perfume barato, e a pequena em casa dor- mindo o sono dos justos, a briga para não ir à casa da sogra, a vontade de jogar tudo pro alto ao ver aquela barriga com os cabelinhos descoloridos, aquela calça jeans apertada, a rotina, as brigas, o almoço não feito, o amor mal-acabado, o sogro endividado, o genro folgado, o primo que vem visitar e só traz intriga, a vida com ela seria como viver novamente em família.
Mas ela passa, ele fica, o homem está terminando o pão, ele precisa sair, chama o balconista, lhe dá um dinheiro, o bal- conista vai ao caixa, o homem termina de mastigar o último pedaço, olha para Calixto, ele pensa no termo, a língua é o chicote do corpo, e o homem continua a falar.
É algo de verdade, sabe? Algo que não dá para explicar, ela é tão linda...
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Capítulo 14
quebrAndo As regrAs
Separou os cinquenta últimos holerites, decidiu ir ao ba- nheiro, lavou o rosto, urinou, deixou a braguilha aberta e foi ver se Hamilton estava encadernando pasta por pasta, e depois colocando nome e número na frente.
O telefone toca, Hamilton atende, passa para Calixto.
Oi, Carol.
Oi? Sou obrigada a ouvir um oi desse desanimado, prome-

to que não ligo mais pra você pra nada, Calixto.
Mas eu só disse “oi”.
Então seu problema é esse, num tá preocupado com nada,

eu com a menina aqui, tenho que fazer tudo e você acha que pagando pensão pode ficar imune a tudo, vou te dizer uma coisa, Calixto, sua filha tá crescendo, ela tá fogo, ontem a pro- fessora me mandou uma carta dizendo que ela bateu numa amiguinha de sala de aula, agora você acha que eu tenho que viver isso sozinha?
Mas, Carol, o que posso fazer, isso é coisa de escola, você...
Eu, eu, tudo eu, você num é pai nem aqui nem na China, sabe quando você vai ver ela? Nunca mais, me encontra no mes- mo lugar hoje às dezenove horas, se não tiver lá, você me paga.
Alô, alô.
Nossa, vou falar pra você viu, Hamilton, é difícil.
Deus Foi almoçar
Sei, calma, Calixto, mulher ataca mesmo, só vivem para isso, vamos pra casa, se quiser a gente para e toma uma cerveja.
Não, tudo bem, vou pra casa.
Começava a apagar as luzes, Hamilton pegou sua blusa e voltou do banheiro com o rosto molhado, disse algo sobre aquele dia ter sido pesado, Calixto não ouviu direito, mas con- cordou, se despediram e o arquivo foi trancado.
No caminho para casa, parou numa banca de jornal, pas- sou os olhos pelas prateleiras, aplicativos temporários de vá- rios conteúdos, pornôs, resumos de novela, vida de artistas, resumo de jogos.
Enquanto localizava alguma revista, tentou lembrar quanto tempo tinha que as pessoas haviam deixado de ver um jogo in- teiro. Resolveu perguntar para a atendente onde teria as revistas.
Não tenho nenhuma, esse tipo de mídia já não se fabrica mais.
Calixto não esboçou reação, sua boca deu uma tremida, quando deveria ter saído a palavra, merda.
A atendente ficou olhando e disse para terminar o papo.
Daqui a pouco começa vir gente aqui querendo comprar jornal também, ô, povo doido.
Calixto virou as costas, saiu da banca e foi andando, en- quanto olhava as placas, mas não as lia, parou na lanchonete combinada, passou a mão pela colher no bolso e meditou pe- dindo paciência, sentou e pediu um refrigerante.
A TV ligada parecia não existir perante o tanto de proble- mas que inundavam sua mente, Carol, sua ex-esposa chegou ao restaurante.
A conversa fluiu entre uma bronca e outra, por mais que tentasse ponderar, o rumo era sempre tumultuado e cheio de cobranças pra cima dele, como: por que não foi no aniversário da filha, por que não compareceu no Natal.
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Ferréz
Tentaria dizer que Papai Noel é um velho porco capitalis- ta, inventado para explorar, mas ela logo falaria que tem uma filha, que não pode dizer que não entra no McDonald’s por- que eles pagam menos para um funcionário, que na verdade a menina só quer um brinquedinho, que pelos precários meios de produção certamente está contaminado, ou ela acharia que uma fábrica chinesa que cobra centavos por um brinquedo tem controle de qualidade suficiente para evitar a contamina- ção, e ele insistiria que eles são feitos por chineses explorados e ela diria que ele é um pai de merda, que precisa da pensão, e ele diria que não tem vida própria, que tudo está indo de mau a pior, e a televisão diria que há rumores sobre a China estar vivendo um hiperconsumismo, que todo o investimento é con- centrado na China, e alguém na mesa ao lado dá um pigarro, uma menina olha com os olhos gelados, a boca caída, as mãos fazendo movimentos repetitivos, ela era tão linda, alguém fala outra coisa, e é tanta coisa, tanta cobrança, ele dormia sozinho, comia sozinho, porra, ele transava sozinho, a boca dela me- xendo, saindo perdigotos, caindo nele, o lugar é insuportável agora, e sua cabeça dói, ele xinga, não deu tempo dela nem olhar, a xícara voou na sua face, o café quente bateu, escorreu.
Ela soltou um grito, levantou, o café escorreu pelo vestido, mas eu fiz. Finalmente eu fiz, reagi.
Pigarro, peguei a xícara, fingi não escutar, o distrato, o café sendo jogado, o dinheiro pedido adiantado. Minha Carol indo embora, minha filha indo embora pra sempre.
Capítulo 15
A vidA dA Arte sequenciAl
E aí, Hamilton, chegou cedo?
Cheguei, sim, foi bom mesmo você me dar uma cópia da chave, tem dia que ficar em casa é um inferno.
Que foi dessa vez, sua mãe?
Quem poderia ser? Puta mulher chata da porra, eu dou todo o dinheiro em casa, ajudo para caramba, faço de tudo por ela, e sou tratado que nem lixo, nem café da manhã ela faz pra mim.
Por isso.
Por isso o quê?
Por isso que você num presta, porque é bom, ninguém

bom tem valor, a sociedade hoje é outra coisa, a norma é hu- milhar o de bom coração.
Ah! Falando em sociedade, ontem ligou para você o Lou- rival, disse que era pra você ligar pra ele.
Certo, vou ligar agora, a gente já organiza essas pastas de uma vez.
Alô?
Oi, quem é?
Sou eu, o Calixto.
Ah! Ainda bem que ligou, eu tinha que te falar uma coi-

sa, ontem fui no sebo, cara, achei cada gibi louco que você nem imagina, vários Tex da primeira edição, e ainda uma
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Ferréz
raridade, achei uma ShowCase gringa, que tem história do Lanterna Verde.
Tá bom, Lourival, eu entendo sua empolgação, embora você fale do valor, mas nunca vende uma sequer.
É que num é pra vender, eu coleciono, só tô falando do valor porque você é que nem todo mundo, só ouve se falar do valor.
Porra, você é o único amigo que pede pra gente ligar para depois humilhar.
Calixto, eu sou o único amigo seu, isso sim, então, a capa do gibi é do Gil Kane, e também consegui garimpar uns Tropa Alfa, ainda da época do John Byrne, quando ele era parceiro do Chris Claremont.
Nossa, você foi aonde, na máquina do tempo?
É cara, é o que eu tô te falando, se você tem tempo, vai caminhando por aí e de repente bum! acha uma puta coisa bacana e...
Faz assim, Lourival, eu te ligo depois, vou separar uns do- cumentos pra firma e...
Mas, Calixto, ouve essa, eu preciso te falar isso, o dono do sebo chama Vocas, não é russo nem alemão, ele disse que o pai dele pegou esse nome num gibi, achei legal a história do cara, ele é gente boa só que meio negativo, não falou nada animador, tinha o rosto coberto de sardas que se concentram mais próximas do nariz, o cabelo meio avermelhado, mas só quando batia sol e...
Porra, Lourival, onde essa história vai dar, eu preciso se- parar os...
Cara, relaxa, só mais uma frase, preciso te contar, então ele era assim, como esses meninos que puxaram mais a mãe que o pai, e agora vem o mais louco, ele falou pra mim que tem um livro que fala tudo sobre o ventre negro do mundo.
E?
Deus Foi almoçar
E? Cara! Esse livro pode ser a chave para a porta que a gente tá buscando faz tempo.
A gente não, você, eu tô cheio de problema, você engole tudo que é papo furado, lembra do Márcio Souza?
Sei, o escritor que me indicou o livro da magia?
Esse mesmo, você foi atrás e quando leu não viu nada de- mais e... Mas, Calixto, eu que fui errado, eu não tava prepara- do, o cara deu um dica quente, o cara manja tudo dessas coisas, o livro dele de OVNI é foda, você viu que o que ele escreve...
Sei, mas tô falando para você ir mais devagar, faz assim, mais tarde eu te ligo e a gente se encontra prum café.
Tá bom, então.
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Capítulo 16
o que fiz pArA ser um feliz
Se sentia bem, estava de barriga para cima, via o teto. Tentava evitar a luz meio amarelada. Os olhos a rodeavam, mas não centralizavam nela, percorriam os fios, emenda após emenda e tentava não os perder.
Abaixou a vista e chegou à janela, o frio teimava em entrar, a casa não tinha acabamento, a madeira que servia de tranca da janela tremia levemente, voltou ao teto, algumas teias de aranha pendiam, certamente pelo buraco causado pelos pre- gos com pedaços de chinelo que seguravam a telha na madei- ra. Pedaços de chinelos cortados de forma circular tentavam fechar os buracos, assim evitava os pingos.
Imaginava um teto de concreto, talvez até com acabamen- to, massa fina, massa corrida, “tinta é Suvinil”.
A janela seria de vidro, igual às dos filmes americanos, tudo branco, tudo sempre branco, sumiria o mofado das ve- lhas telhas, a madeirite da janela.
O córrego lá fora agora seria um jardim, uma grande árvo- re com uma casa construída em cima, a casa era amarela, toda feita de madeira. Ele e seu pai construíram no último verão, a forma de ajudar seria dando o martelo e os pregos e o resto era com seu pai, o seu exemplo andava de botas de caubói, calças jeans surradas, um cinturão de couro, uma camisa xadrez.
Deus Foi almoçar
Não! Seu pai não seria um bêbado que batia em toda sua família. Sua mãe voltava com flores na cesta.
Embaixo da casa por entre as rochas, corria um lindo ria- cho, não era um córrego, não havia ratos, havia peixes. Duas montanhas logo à frente de sua porta deixavam o sol pousar entre elas ao entardecer.
Quando anoitecia, abria a porta secreta do seu clubinho, dois amigos estavam logo atrás, subiam pela escada improvi- sada, ripas grossas de madeiras pregadas no tronco principal, eles subiam pelo tronco até o sótão da casa.
Não! Ele não aceitava que era um morro, nunca se lem- brou de ter uma pequena tábua que era o acento de uma ca- deira e agora era o brinquedo preferido, ele segurava firme e ia deslizando pelo morro. Mas não havia vestígios disso, só a lembrança de quando acendia a única luz e começava a revi- rar as revistas em quadrinhos em busca de uma que ainda não tinha devorado.
Continuava a olhar pela janela, imaginava os galhos da ár- vore que bateriam suavemente no vidro, se existissem vidros, mas nada acontecia, olhava para as paredes que não tinham massa fina, mas também não eram de madeira, olhava para o forro da casa e sabia que não estava mais entendendo nada sobre a realidade.
Estava confuso, quantos vestígios, talvez um velho filme, talvez retalhos de lembranças.
O barraco rodeado de coisas, tantos livros, revistas em quadrinhos, discos, um amigo uma vez lhe disse que ele gas- tava com muita coisa e não arrumava a casa, ele não soube responder, Lourival só achava que estava tudo indo bem, que era preciso terminar de completar suas coleções.
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Capítulo 17
invAsão
Acordou tarde, domingo era sempre assim, parecia que o dia já começava pela metade, Calixto tomou banho, deitou no sofá, não sabia explicar, mas a mulher do quintal apareceu em seu pensamento.
Um barulho, alguém estava chamando no portão.
Oi! Quanto tempo, hein?
Tempo?
Muito tempo, hein, dá um beijo aqui na sua irmãzinha! Tá tudo bem contigo?

Tudo, tô correndo tanto, Vim, cê não imagina o que virou minha vida, vivo na faculdade.
Legal.
Legal? Você não vai me chamar para entrar?
É mesmo, entra.
Cadê a sua pequena princesa?
Faz tempo que não vejo, a mãe dela afastou a gente.
Que chato, né, Vim?
Quanto tempo cê não me chama assim, de Vim, é difícil

acostumar.
Mas acostuma de novo, só não pode seus amigos escutar,

né, senão eles vão zuar contigo. Amigos?
Deus Foi almoçar
Você tem amigos não tem, Vim? Tenho.
E o Juraci?
Nunca mais vi.

E a turma do bairro, você voltou lá esses dias, ouvi dizer que o Orlando morreu.
Todo mundo sempre morre.
Nossa, Vim, que pessimismo, a pequena tá fazendo falta, né? Num quero falar sobre isso, vai chover, né?
Não foge do assunto, é bom desabafar, Vim.
Faz anos que a gente não se fala.
E daí, o que tem isso, continuo sendo sua irmã.
Estranho.
Estranho o quê?
Você é uma estranha. Eu, um estranho.
Qué isso, Vim? Que está acontecendo contigo, acho que

precisa estudar.
Tô no meio do meio.
Meio do meio?
Meio do meio do resto da vida.
Vixe! Para com isso, os primo, tem visto? E a tia, ela ligou

pra você depois que a mãe se foi?
A mãe não se foi, ela morreu!
Eu sei, eu sei, é jeito de falar.
Quem está sempre indo e vindo são pessoas vivas, os mor-

tos ficam parados, que nem as árvores.
Nossa, acho que vou indo, você tá precisando de algu-

ma coisa? Sempre.
Sempre o quê?
Sempre precisamos de algo, mas falamos que não pra agradar.
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Ferréz
Você quer me agradar, hein, Vim? Você foi sempre um doce. Será que vai chover?
Tá preocupado com a chuva, mas me fala dos primos, eles

vieram aqui te ver? Vejo fotos.
O quê?
Vejo fotos quando tenho saudade de alguém.
Que coisa feia, pessoas são feitas para se visitar, você pode

vê-los enquanto estão lá.
Prefiro fotos, não magoam.
Não magoam como?
Não envelhecem, não reclamam, não mentem, são assim,

fotos.
Você tá é muito amargo, aquela menininha tá fazendo falta

mesmo pra ti, vou falar com ela pra te deixar um pouco com a pequena.
Com a Carol?
É que não queria falar o nome dela, achei que você não falava. Falo.
Você tem visto ela?
Não, faz tempo que não.
Falando em fotos, achei uma de quando éramos pequenos,

estávamos tomando banho numa banheira de alumínio. Bacia.
Num gosto de falar bacia, Vim, gosto de banheira, num é mais bonita?
Hoje eles falam de furô.
É, meu irmão, as coisas mudam até de nome, né? Tudo muda sempre.
Você já comeu, quer almoçar comigo?
Não.
Deus Foi almoçar
Por quê?
Só não.
Bom... tenho que ir, foi bom te ver, vai ficar aí sentado? Me

leva na porta. Sim.
Tá... então a gente se fala. Acho que não.
Como assim?
Nada.

Meu irmãozinho monossílabo, me deixa te dar um beijo, se cuida viu, se alimenta que você tá muito magro, aproveita e pega um pouco de sol, e vê se compra uma camisa, você é tão melhor de social.
Tchau.
Tchau, Vim.
Fotos, prefiro fotos.
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PARTE 2
Em excelente estado de conservação. Apenas alguns ponti- nhos de amasso na cabeça. No mais, é como pessoa nova. Sólida. Pele lisa. Sem riscos. Cor forte. Pessoa clara. Realmente linda! Veja scans ou amostra do tecido!
Capítulo 18
sem rAzão definidA
O café quente caiu dentro do corpo, saiu do copo, a mão segurava o vidro moldado, o ser mudado segurava o copo.
Esfregava o corpo do copo com o calor do corpo e sentia mais calor.
A fechadura do olho piscou mais que o habitual e a passa- gem de ar abriu como para alguém dentro do corpo gritar, lá de dentro urrar, como dor, como se o líquido negro queimasse, a mão tampou a carne macia da boca, deixou germes nela, tentou calar a saída do sono do ser que gritava.
Enquanto isso, um jovem, filho de uma mulher que só la- vava o quintal e com ansiedade o esperava, estudava a deusa mãe Cibele e Ísis, outros que ressuscitavam e morriam como Mitra e Adônis, a fusão entre os cultos pagãos; conforme vira- va as páginas, a filosofia platônica e o moralismo hebreu iam resultando no aparecimento do cristianismo.
Lavou os olhos, esfregou os cabelos antes de secar a mão e viu no próximo capítulo que os antigos deuses eram fantásticos demais, e os cultos de mistérios, abstratos demais.
Conforme foi descobrindo que para quem ele orava toda noite era apenas uma história copiada, pensou levemente em sua mãe e teve certeza de que eles não teriam mais nem isso em comum.
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Ferréz
A minha mãe conversava com Deus, e ele mandava me bater.
Ela cantava para ele bem alto, para ele escutar que ela existia. Mandava eu levantar do chão quando meu pai saía.
Ela continuava cantando.
E perguntava quem me derrubou.

Eu falava que era o diabo.
O chinelo não era usado só para proteger os pés, ele emitia sons opacos quando atingia meu corpo.
Ela continuava cantando.
“Quando tudo estiver acabado, Senhor, eu vou pra perto de Ti, quando tudo estiver acabado, eu vou ficar ao Teu lado, Senhor.”
A bicicleta avançava, mas estava sempre atrás daquele jeans justo.
Árvores altas e o sol que as penetrava.
Amiga da esposa, uma amiga linda sempre sorrindo, dife- rente do que ele tinha em casa, sempre reclamando, dizendo mais do que deveria.
Cabelo cacheado a sua frente, as pernas grandes, o jeans recheado.
Sempre a sua frente, chegaram, a esposa não estava, a amiga desceu, pediu para molhar o rosto, ele concordou, não viu nada de mais, estava indo atrás, sempre atrás do jeans recheado de carne.
A lavanderia estava lotada de roupa, ela tropeçou num ta- manco, ele a segurou, talvez o instinto, talvez não.
Ela o olhou assustada, ele olhou para dentro dela, e lá den- tro viu algo bonito, mais bonito que o recheio do jeans, mais bonito que o lago em que pescava, com cores mais vivas que as flores que tinham na sua tela de proteção.
Deus Foi almoçar
Os lábios se tocaram, ele introduziu lentamente, o tempo era diferente nesse tempo deles dois.
As pernas tremiam, ele voltou a ser menino, ela não. Ele fazia o pinto sangrar quando queria se satisfazer, não sabia como mexer a mão, ela sempre soube onde tocar.
A máquina estava ligada, eles estavam encostados nela, eles estavam ligados, culpa da mulher que deixou o tamanco.
Ele tinha que voltar um dia para o bairro e ver sua mãe, mas agora tinha que administrar dois relacionamentos.
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Capítulo 19
nem homem, nem originAl
Final de semana horrível, tinha sonhado com a menina novamente, ela falava a mesma frase, só que dessa vez ela tam- bém tinha uma colher, igual a que ele sempre tinha no bolso da calça, o mais estranho era que ela só segurava a colher na mão enquanto olhava para ele.
Calixto não quis mais ficar sozinho, resolveu caminhar, não estava num dos seus melhores dias, os pés doíam, assim como as vistas, mas o ar lhe fazia bem.
Viu o bar, achou legal as mesas ainda comunitárias, já que nes- ses tempos novos tudo era individual, sentou no banco que um dia foi branco. Algumas folhas de papel sobre a mesa foram notadas, lápis de cera para desenhar, quando abaixou o campo de visão. Via pés, mas não olhava para os corpos, não o interessavam.
Até avistá-la.
Fazia tempo, eu não podia acreditar, mas a cada passo via que era real, logo me veio o rosto rosado, os cabelos encaraco- lados, os aparelhos nos dentes, e a bota preta, grossa, de couro, que amenizava a deficiência.
Agora usava óculos, um vestido bem maior, trazia sacolas numa das mãos, mas tinha o mesmo rostinho peralta.
Eu acenei, ela olhou e parou na hora de caminhar, depois retomou o andar, e nos abraçamos.
Deus Foi almoçar
Coincidência, acaso, destino, proposital, tudo se misturava e tudo se completava.
Não foi difícil pôr o papo em dia, falar daquele tempo ido, das coisas que estavam por acontecer, em nenhum momento falou da sua situação amorosa, quatro xícaras de café ainda não eram muitas, as pessoas passavam, eu tagarelava mais alto, ela mais tímida, ouvia mais do que falava, isso me incomodava, para ser sincero.
Ele que esperasse, eu fui para minha infância novamente, para aquele dia triste e depois para os outros alegres, e seus olhos brilharam quando disse que sempre pensava nela.
Foi difícil, mas pelo menos ela ficou de me ligar, nos des- pedimos com pequenos beijos no rosto, não consegui me con- trolar e comecei a andar novamente, agora tudo parecia dife- rente, a sensação de um novo início me pegava, a euforia, o começo de um namoro talvez, uma nova relação, pois o tempo não espera, e todo dia pode ser um novo jeito de encarar as coisas, estava assim cheio de frases baratas de livros já escritos de tantas formas, parei em outro bar, precisava tomar algo, sentar e pensar no que seria da minha vida com essa nova coi- sa, essa menina, essa mulher Melinda me balançava.
Avistei um bar, cheguei no balcão e pedi um café forte, muito forte, embora o café nunca fosse forte o suficiente.
Um homem sentou ao meu lado.
Escuta... escuta... me paga algo, eu preciso beber.
Todos precisamos de algo, amigo.
Mas... mas eu preciso, cara, preciso tomar algo, eu vi... eu

entendi... foi assim...
Faz o seguinte, cara, toma algo aí e me deixa em paz. Valeu! Foi quando eu ia sair para trabalhar em mil e pouco

depois de cristo... e...
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Ferréz
Tá, me deixa ir, cobra aqui o dele também.
Espera! Espera! Preciso te contar, qual o seu nome? Eu ia sair... sair de manhã e... quando olhei pelo retrovisor eu vi que ele não estava perfeito e... Qual seu nome?
Calixto.
Então, Calixto, eu ia sair e...
Eu tenho que ir, cara, vá tomar sua pinga, já tá paga.
Não! Eu vou, sim, mas ele... ele não estava perfeito, foi

assim... de repente ele estava deformado, o retrovisor, como uma, uma foto mal tirada, uma foto desfocada.
Cara, na boa eu preciso ir.
Não, eu preciso te falar, é pra você ouvir isso, faz parte do todo, a foto desfocada, como um desenho tosco, e eu percebi... que a gente é só uma história em algum papel barato, daqueles que eles põem para os pássaros cagarem do alto nas gaiolas, a gente... é um romance sem graça, naquele dia eu vi... vi o erro do rapaz que escreve, ele escreveu errado, o retrovisor não... não era simétrico, ele era deformado, talvez alguém correndo por um prazo, todos eles têm um prazo.
Tá bom, cara, esses dias eu também vi um acidente, o cara tava todo fudido, o rosto dele ficou colado no para-brisa, é triste, mas é a vida.
Não, não é a vida, é outra coisa, são, assim, pagos para fazer essa novelinha de merda.
Cara! Na boa, onde isso vai parar, onde essa conversa acaba?
Faz parte do todo, porra! Faz parte você ouvir, você não en- tendeu, ela não termina, ela nunca tem fim, o porra precisa comer.
Quem é esse que precisa comer?
O filho da puta que está brincando de Deus, sentado em casa, numa poltrona velha, cercado de madeira e papéis, ele... ele pensa que é Deus, e até Deus tinha um prazo, mas
Deus Foi almoçar
não de um editor qualquer, Deus escreveu três tábuas, Verbo, o Verbo foi...
Sinto muito, tenho que ir, me solta, seu bêbado louco, eu paguei a porra da pinga, agora...
Louco? Filho da puta, você é um personagem, não enten- deu nada, não existe essa coisa de louco, os médicos consertam alguém pra continuar no todo, pra fazer parte do padrão, nin- guém é louco, cara, o louco encontra a razão e ele precisa ser corrigido, você num entendeu...
Me solta, eu vou dar um murro na sua cara, tenho que ir.
Calixto, você num existe, você é um personagem, pouco criativo, antiquado, melodramático, você será editado, seu fi- lho da puta, será mudado porque não é original, nada é ori- ginal, nem homem nem original, nem homem nem original, nem homem nem original.
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Capítulo 20
tem que ser AgorA
Aconteceu, eu saí e elas ficaram, eu parti e elas ficaram, eu tentei, mas elas ficaram em mim.
Eu não sabia o que era ser largado, não sabia viver mais isolado, sozinho.
Minhas calças e camisas se amontoaram no banheiro, to- das penduradas, esperando serem lavadas por alguém que nunca mais voltaria.
As louças estavam mofando na pia, eu não lavava, nunca lavava e antes sempre estavam limpas.
Não sabia mais o que era ser tocado, às vezes dava vontade de esbarrar em alguém para ter certeza de que estava vivo, a mu- lher do quintal talvez não daria em nada e Melinda não ligava.
A poeira venceu, e tudo foi forrado por ela, e eu deitava numa cama sem lençol, eu bebia água com gosto de café num copo que nunca mais viu sabão.
À noite, eu fingia dizer boa-noite, rodava o seletor, a con- versa da TV invadia tudo, tentava dar vida, eu esperava uma resposta, mas minha filha não falava, minha mulher não me abraçava, e eu me encolhia assim, encostava os joelhos na bar- riga e tentava fazer parar de doer.
O cachorro latiu muito no começo, depois de alguns dias parou, e então eu retirei seu corpo quando começou a feder.
Deus Foi almoçar
Minha pequena ligou um dia, eu disse que ele havia viaja- do, que em breve retornaria, o nome do cachorro era Osana.
De manhã ninguém mais levava café, eu fazia uma vez por semana, mas ele nunca era muito forte, a cozinha me dava tris- teza, me trazia lembranças que não continham açúcar.
Tudo foi tão lento, como se alguém apertasse a tecla do controle remoto do filme da minha vida, demorou tanto para passar, doeu tanto que só parou quando fui obrigado a sair do meu mundo.
Vou pra rua, preciso ver pessoas, preciso sentir o vento no rosto.
Quem deve ser aquele? Cara esquisito não mudou de calçada desde que o vi surgir lá da rua de cima. Percebi ele faz alguns se- gundos, o que é aquilo? Será um boné? Talvez seja um boné, pois parece ter uma aba. As costas dele são estranhas, arqueadas. Da- qui já dá para notar e pelo andar também, parece meio cansado.
Os óculos já eram visíveis de bem longe, tão grandes. Fei- tos num material meio de plástico, tipo os óculos das peque- nas crianças. Aquela blusa de tricô, Deus. Tenho que parar de ficar reparando nos outros, há tanto que não vemos, há tanto que não percebemos quando olhamos somente para a casca que nos cobre. Mas agora ele está mais perto, os cabelos ralos compridos na parte de trás da cabeça, aposto que ele é calvo, aposto não, posso chegar a jurar que ele é calvo.
Quando ele finalmente passa por mim é que leio o que está escrito no boné, “esquadrilha da fumaça”, um boné bem des- botado, onde será que arrumou? Ou melhor, por que o usa? Será que ele chegou a andar com alguém da esquadrilha? Nos- sa! Eu não tenho uma emoção dessas para contar, e se passasse por isso também usaria um velho boné por toda minha vida.
Será que o avião virou de ponta-cabeça e depois veio caindo bem rápido ou talvez ele tenha ganhado ou comprado numa barraca de camelôs, embora eu nunca tenha visto uma
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barraca com bonés desse jeito e não acredito que o comércio informal tenha tantos anos assim para se vender um boné tão antigo...
Sei lá, ele passou, o que viveu, o que viu, o que negou e o que sentiu só ficou com ele, a calça verde levemente desbota- da, a bota de couro tipo aquelas que se usam na construção, tal- vez tenha sido um piloto, pareceu desbotado pelo tempo, tipo mal vivido, mas o que é bem vivido afinal? Ficar se cuidando, cremes, pintura, cabelo, unha, dentista, isso vai do jeito que se vê, pois nunca perdi tempo com isso, também não tenho muito cabelo, mas para o que faço não preciso ter, não tenho dentes muito brancos, mas não preciso ter, há muito tempo não beijo ninguém, não há ninguém na fila para reclamar, mas o piloto podia ser meu amigo, contar suas aventuras, a gente podia sen- tar um dia na beira de algum bar por aqui e tomar um café, eu pagaria um café por uma linda história, talvez me fizesse sentir vivo, ou talvez me fizesse dar alguma gargalhada.
Eu pagaria um café por um momento de esperança qual- quer, nem que fosse uma fração de esperança, talvez uma pe- quena história de amor. Talvez a história que eu viveria com Melinda, se ela me ligasse, se ela me procurasse. Mas uma história com ele já bastava para mim, já que não tinha reais esperanças de ela me ligar. Isso seria legal, uma história de amor, ele seria um piloto, e ela, uma... vejamos... uma aeromo- ça, mas isso não faria sentido, afinal eles eram da esquadrilha, talvez ela trabalhasse na administração, isso seria legal, ela era bem inteligente, daquelas mulheres que fazem tudo sozinhas, administram sua vida como a uma empresa, e eles teriam se conhecido num momento difícil, talvez num momento bem complicado, uma morte de parente cairia bem, a mãe dele fa- leceu, ele estaria abatido, ela chegaria e lhe daria uma palavra
Deus Foi almoçar
de conforto, mas um primeiro encontro que tem a ver com morte não seria lembrado com conforto depois. E daí? As his- tórias são assim, as pessoas se conhecem, se parecem e se dife- rem, se amam e se odeiam, e eles se amariam.
Alguns dias depois transariam pela primeira vez, talvez no alojamento fosse uma aventura emocionante, afinal tudo é emocionante no começo – beijos ardentes, mãos que deslizam, sexos enfurecidos e vigorosos – e depois cairiam na rotina, bei- jos cada vez mais raros, toques somente forçados, dizem que o sexo acaba quando se casa.
Talvez pelo tom da história, eu e o piloto devêssemos estar bebendo cerveja, seria melhor, com uma dose de algo mais forte de vez em quando o álcool age legal nas histórias, te deixa mais solto, o café deixa muito agitado, geralmente acaba logo e a gente tem que ficar pedindo outro, não imagino uma mesa de bar toda cheia de copos de café enquanto um cara conta uma história dessas, acho legal a cerveja. Tomaríamos várias, eu pagaria várias cervejas por uma boa história de amor.
Uma coisa sabia: não era seu pai, lembranças sobre seu pai ele guardava num lugar bem especial, era sua explicação, tudo havia de ter uma explicação, e a questão era seu pai.
O dia na chuva com seu pai. Chuva acidental que os pegou quando voltavam de um serviço, o pai encanador, tinha essa relação com a água. E veio a chuva, foi uma coisa tão rápida, mas tão bonita, ou foi o sorriso que seu pai deixou escapar logo após dizer.
Vamu correr, menino, lá vem água do céu.
E os pingos começaram a cair, obedecendo aquele homem já gasto pelo tempo, e eles corriam e eram amigos, e eram dois garotos, e eram iguais, e a vida ainda não tinha judiado deles.
Seu pai e seu avô, ambos e nenhum.
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Momento tão eterno, mas ele não.
Calixto teve a oportunidade e estava preparado, muito pre- parado, para a chuva e correu e chutou poças e ajudou a molhar mais ainda as calças de seu pai, que também era seu amigo, que continuava deixando escapar sorrisos, e eram um só, e Calixto imaginava a chuva e os sorrisos molhados dos sapos.
Dormir às cinco da manhã e acordar às quatro da tarde não é uma coisa comum, principalmente quando o número de sonhos chega a mais de dez, acordou assustado, pensando no último, parecia um filme a que havia assistido, algo sobre um acidente.
Procurou em sua memória o assunto embora soubesse que as coisas jamais são como no dia anterior, portanto o que sabia da sua existência era somente o que se lembrava dela.
Tinha a convicção de que o controle de tudo estava além do controle, a maquiagem parecia igual, mas não era.
Foi para o banheiro e parou em frente ao espelho, a urina estava quase saindo pela glande, a bexiga estava cheia, mas não se mexeu.
Uma coisa estranha, afinal de contas e se uma pessoa vier a falecer por ter interferido no destino de outra, como toda regra tem exceção, de repente seu destino estará atrelado a qualquer destino por aí, então uma simples caminhada como essa pode- ria gerar a morte de alguém.
Pensar assim deixaria as pessoas piradas de vez, embora eu ache que não há ninguém em estado de consciência mais sobre essa terra, e se for entrar no mérito das pessoas assassi- nadas então ferrou tudo, crime é crueldade, é interferência no destino dos outros.
Conheci uma mulher há muitos anos, seu nome minha ca- beça não guardou, mas sua idade, sim, 71 anos.
Deus Foi almoçar
Trabalhou a vida inteira, menos os últimos anos do final, servindo os outros, conta no dedo o dia que foi servida por alguém, não gostava de falar no destino, na verdade ela falava muito pouco, menos comigo, quando nos encontrávamos em algum bar, antes de ela tomar seu copo de carqueja com pin- ga, ela me contava alguma história, na última vez que a vi, me disse algo sobre o destino, disse que não existe, disse que se pudesse escolher tinha nascido loira, escolhia não ter deixado a vida levar sua filha, mas não podia escolher, pois tudo já es- tava pronto, era um produto para se consumir, a vida era isso no final, um produto com data de validade.
Não sabia por que tudo isso, quando era pequeno ele so- nhava em ter um robô, daqueles que você pode soltar e ele anda sozinho, como ele aos 12 foi solto pela família para fazer algo de útil.
Estudou muito o alfabeto, sabia de cor e de trás para frente. Também memorizou toda a maldita tabuada, não sabia, mas aquele papel vagabundo e aquela encadernação com grampos, aquela capa horrível, o iriam acompanhar por toda a vida.
A capa é um problema sério, ninguém compraria um livri- nho de tabuada se não sofresse algum tipo de pressão como a que recebeu da família, sem aprendê-la não passaria de ano, sem passar de ano não ganharia o lindo robô, mas o detalhe do brinquedo é o que interessa, um pequeno botão que tinha nas costas, e isso seria uma solução simples para toda essa zona chamada de vida, sabe aqueles com on ou off, ou liga e desliga? Já pensou, rapaz, um simples botão, sem culpa, sem moralis- mo, sem julgamento, para essa pergunta?
O que aconteceu com o Calixto? Existiria uma simples res- posta.
Ele se desligou.
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Mas não, jamais existiria isso, seria bom demais, algo que não é do feitio dele (Deus), às vezes penso nisso, como ele é sa- cana, a gente é semelhante, mas moramos nas casas de aluguel, sabe aquelas com cheiro de mofo quando a gente abre a porta? Pois é, e geralmente sustentamos alguém que está numa casa bem melhor, que não cheira a mofo, e quem aluga paga o luxo do dono, assim é Deus, ele deve ter assinado algum acordo an- tes de ser eleito com alguma grande empreiteira intergaláctica.
Sentou. Não. Na verdade, se jogou ao sofá, um dos botões decorativos do sofá o irritava há meses, sempre incomodando uma parte das costas, prometia sempre no outro dia arrancá-lo, mas os dias passavam, ele coçava os olhos, molhava as mãos, passava pelo rosto, depois enxaguava a boca, cuspia a água com violência, como algo impuro que deveria ser jogado fora e nunca mais ser lembrado, talvez como as dores que seu pai provocara em toda a família devido ao álcool, problemas com o álcool era o que todos diziam, ele sabia que seu pai tinha mesmo era problemas com a vida.
Levantou o dedo indicador da mão direita, coçou o nariz, pensou em lavar, talvez uma porção de sal e duas de açúcar, um soro para lavar a alergia do nariz, talvez fosse rinite, em vez disso levou as duas mãos aos globos oculares e esfregou-os, começou a ouvir o zumbido característico que sempre o acom- panhava por toda a noite, coçou o pescoço, talvez não fosse rinite, talvez os pelos no sofá, lembrou-se da história do amigo de segunda série que passou por dezenas de picadas para saber qual a alergia que tinha, nenhuma delas adiantou, o médico ficou espantado, então, quando passou o álcool pra fazer as pi- cadas não sangrarem, as costas do pequeno pipocaram todas, quase sorriu ao lembrar-se disso, o ouvido começaria a doer, o barulho dos carros o deixava louco, o velho Cadillac vermelho
Deus Foi almoçar
vindo em sua direção, a cor vermelha também era do vestido da ruiva que o dirigia, e eles se olhavam por minutos, no banco de trás livros, muitos livros, uma cruz de prata no retrovisor, um Jesus Cristo cabisbaixo.
Abriu os olhos, a TV estava ligada, a luz o irritava ainda mais, será que tinha entrado no portal? Por que tudo havia se misturado? Ou havia somente sonhado?
Lá fora havia barulho, como todas as noites talvez uma cantoria por toda a madrugada, uma voz indecifrável, num ritmo contínuo e enjoado, ele se levantaria, sede, um copo d’água gelado e um alívio. Um barulho, o vizinho devia es- tar sem sono também, televisões, ninguém assistia mais àquele aparelho, mas ele estava sempre ligado.
A esposa dormia, a filha também, de vez em quando um tossia, talvez até soltasse aquelas gotículas de quem tosse por algum resfriado mal curado, talvez, ela teimava em lavar o quintal descalça.
O que se podia fazer, ele sempre foi nervoso, olhava cada detalhe, notar as coisas tem seu lado ruim, quando trabalhava no arquivo gostava desse lado, talvez um dom, mas se lembrava dos filmes que viu, todo dom pode também ser uma maldição, desconfiava que era algum tipo de distúrbio, assim também quan- do via entrevistas com alguém bem-sucedido, um exemplo de sucesso, para ele pessoas que conseguiam ir longe nesse sistema atual tinham algum distúrbio, só assim para se chegar a algo. Uma pessoa muito produtiva, distúrbio. Muito trabalhadora, distúrbio. Mas como era bom para a sociedade, então era comum.
Não assistia a nada que contivesse esse ensinamento, que comprovava essa tese, talvez tivesse lido lá pelos seus 12 anos, quando voltava para casa da escola que lhe ensinava a viver uma vida de hipocrisias.
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O que seus olhos viam era que a classe dominante era o ver- dadeiro agente da educação que integrava tudo, os seus profes- sores tão esforçados eram na verdade só mandados, era a classe dominante que ditava tudo e seu fim autêntico de formulações.
O que os olhos de seus pais viam era uma profissão no final do estudo.
O que aquela senhora que ele nunca lembrava o nome, mas que tinha 71 anos, via era que antes se estudava para ter uma cultura, a cultura era o valor, os pais chamavam os paren- tes e falavam. Minha filha sabe tal língua, minha filha toca tal instrumento, e hoje o pai chama o vizinho e diz: Olha o carro que meu filho comprou.
O que a diretora da escola faz é olhar, ela olha, mas não vê nada, talvez os pais sempre ausentes, mas dirigir uma escola não era como uma empresa, o valor humano era jogado de lado, ele sabia a diferença, agora ele sabia, o lanche lhe dava sempre um aviso, conversou com aquelas bolachas durante al- guns minutos, elas escutaram a conversa da diretora com a responsável pela merenda, informação.
Desde pequeno sempre gostou de ter informação, o que não sabia, geralmente, inventava, brincava de bolinha de gude todo final de semana, imaginava coisas nas bolinhas, planetas, chan- ces, vidências, mas procurava parecer normal, só as fazia deslizar, nunca acertava a outra, odiava o choque, as crianças não o enten- diam, e ele ficava sempre jogando sozinho, não podia explicar, não saberia falar sobre aquilo, ainda não tinha as palavras certas.
Só sabia que ser normal era ser idiota, jogar uma bolinha contra a outra, chutar uma bola para dentro de um espaço pré- -estabelecido, correr e tocar o outro amigo, se esconder numa brincadeira sem sentido, ele se esforçava para se igualar a to- dos por ali, mas não conseguia.
Capítulo 21
vendendo prA comprAr
O sofá de sua casa era de outra cor, um velho filme na madrugada, a cantoria não dava sossego, pessoas passando, ca- chorros latindo, latas de cerveja sendo abertas, cigarros acesos, estalos de carvões sendo queimados, bitucas caindo, cuspes quase secos, passos apressados, sacos de preservativos sendo rasgados, batons sendo levemente tirados, mãos deslizando, algum menino experimentando maconha, alguém correndo para não morrer, uma esposa com as mãos para trás, um velho filme, um cachorro que nunca dormia, uma cozinha sem os azulejos, algo que a deixava infeliz.
Queria tudo branco, tudo limpo, higienizado, só que o sa- lário não dava para tudo isso, uma panela amassada, um garfo jogado há muito tempo embaixo do armário, e toda vez que a vassoura passava perto dele não o tocava.
Uma discussão, alguém mexeu com a moral de alguém, uma leve dor de estômago, uma mãe rezando para que nada aconteça de errado, um tapete rasgado, um cachorro que entra e sai a todo instante, uma janela que dá para uma parede, uma laje que vaza, um copo d’água e muita coisa mais, diálogos jogados ao tempo, pas- sando por todos os detalhes, infiltrados que nem ar, andando nova- mente para dormir, os olhos que não fecham, a boca que parou de ser seca pelo copo de água, a luz da geladeira que deixou ele mais
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desperto, uma lâmpada imaginária que não se apagaria tão fácil, uma mente cheia de ideias e alguém caminhando na rua sem parar. Lourival acordou pra cuspir e ainda não tinha botado a cebola antes do molho, os tomates não tinham três centímetros de espessura, as roupas não ficavam bem nele, o gerente olha-
va para sua cara a todo o momento.
Tudo que os clientes podiam ver era seu rosto, suado, com

os olhos cansados, e sempre confirmando o pedido. Big sem cebola, confirma?
Médio quatro sem molho, confirma?
Filé de frango com bacon, confirma?

Medo de ser substituído, o rapaz parecia muito inteligente, aprenderia rápido, um pouco mais e poderia gerenciar a loja.
Quem sabe se não fosse um parente indicado? Melhor não arriscar, deve ser por isso que sempre ficou atrás do balcão, sempre na chapa, nunca foi para o caixa.
O gerente chega em casa, mora num pequeno quarto alu- gado, sentado na pequena mesa, escreve num pequeno cader- no, versos inspirados em algo já escrito, cópias malfeitas de algum livro sem leitores. Não que isso importasse, uma vez seu chefe lhe falou que ele não era artista, era muito ego achar que escrever era algo especial.
É técnica, moleque, que porra de escritor? É técnica, co- nheço contador que escreve, advogado que escreve, faxineiro que escreve, no final é só técnica, no máximo entretenimento.
Lourival tinha que cortar os tomates na medida certa, man- ter a pose firme, o sorriso engatilhado, as mãos na posição cor- reta, ideias, atitudes, bom-senso, tudo isso bem cuidado como seu rosto.
Gritava o nome do lanche, números, pedidos atendidos, pães abertos, hambúrgueres na chapa, ácido na chapa, gordura
Deus Foi almoçar
na chapa, carne bovina na chapa, ponta dos dedos na chapa, suor na chapa, fogo embaixo da chapa.
Salada de atum com fritas, confirmado e muito obrigado.
Um homem fazendo o trabalho que antes era de meninos, um homem que lia coisa que todos achavam que era pra meninos. Terminou. Mais um dia foi embora, seus horários com- putados, o lucro do estabelecimento garantido, o fornecedor dos produtos atendido, o cliente cheio, o chapeiro cheirando à gordura, o médico esperando, o ônibus lotado, o celular tocan- do, sua mão nervosa, motorista, hemorroida, cheiro de diesel queimado, seu pai tinha ido embora, seu emprego estava ali
naquele segundo prolongado por anos.
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Capítulo 22
o tempo ido
Calixto abriu a porta do banheiro, sentou na privada, achou o vidro quebrado da janela e deu uma leve risada, não sabia explicar, algo bom pousou em seus lábios.
O cinza das nuvens que traria certamente a chuva enfim cedeu ao cinza mais claro, as correntes de ar começavam.
Sacolas, bituca, papéis que antes embalavam chicletes fi- nalmente estavam soltos no ar.
Uma vez ele viu uma criança com um pedaço de giz na mão, ela rabiscava a calçada, os joelhos raspavam no chão áspero, um sol com um grande sorriso surgia dos riscos, não eram trovões, não era nada que pudesse ser estranho, era ape- nas um sol sorrindo.
Uma sensação lhe veio, talvez um barbitúrico, assim ele ti- raria o peso do corpo, sua mente ficaria leve novamente como a daquela criança, corpo pesa, incomoda, a mente divaga, leve e completa. Acordou.
Claro que só podia ser sonho, uma cena de felicidade hoje em dia não era mais possível.
Estava sentindo uma forte dor de cabeça, não havia bebi- do, o motivo podia ser uma página a mais de leitura.
Voltou ao banheiro, a mão na água, a água no rosto, sentiu- -se aliviado, pelo menos ainda sabia quem era, e isso nesses
Deus Foi almoçar
tempos pode parecer pouco, mas é uma grande coisa, saiu do banheiro e tropeçou no tapete que dava acesso para a cozinha, falou um palavrão, se equilibrou novamente, pegou um copo na pia, abriu a geladeira, pegou a garrafa d’água e despejou no copo, bebeu, voltou para o quarto e decidiu dormir, com cer- teza não havia remédio naquela casa, todas as cartelas haviam sido violadas.
Sentir dor, até sentir dor é uma coisa rara, diria a algum amigo se tivesse algum, a cena, a TV ligada vomitava realida- des, o caso de estupro, pensou se fosse sua irmã, certo que não ligava para a irmã nem para ninguém da sua família, mas ficou revoltado, como se fosse um caso de assassinato, ou talvez um crime contra seu pai e sua mãe, na sua mente isso estava defi- nido, pai e mãe não são família.
Duas horas haviam se passado, sentir dor, o crime não cho- cava mais, a dor dos outros não incomoda, era preciso compa- rar com alguém próximo para que a dor e a revolta realmente saíssem de dentro do corpo.
Estava há muito tempo lá dentro, resolveu sair, a rua esta- va deserta, viu uma mulher com uma criança no colo, queria chegar perto da pequena, talvez apertar suas bochechas, se ela fosse lindinha lhe daria um beijo, por que era assim? Quere- mos sempre destruir o que é belo, apertar, morder, arrancar um pedaço, não tinha respostas, mas não parava de formular as perguntas, a mulher com a criança passou.
Saí, vi uma menina, não era muito bonita, mas tinha bo- chechas grandes, talvez grandes demais, sua mãe estava muito amarga, o rosto demostrava isso, tinha traços profundos, dei uma leve olhada novamente para a pequena e tentei sorrir, mas não consegui, meus lábios estavam duros.
Sentiu saudades da mulher do quintal.
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Foi para o serviço, Hamilton e suas conversas estúpidas, nada demais aconteceu que mereça ser registrado.
Ao voltar do serviço, parou numa banca de jornal, as fra- ses dos anúncios dos aplicativos podiam fazer ele rir e provocar alguns sentimentos estranhos: “Como se entupir de dinheiro”, “Você é rico e não sabe”, “Como explorar com consciência so- cial”, “Gerenciando lucros e alimentando a pobreza”, “Empre- sa de segurança compra parte da frota da policia”, “Fazendo fluxo de caixa martirizando pessoas”, “Como obter visto para morar na cidade do Bispo Valdomiro”.
Entrou no carro.
Entrei no carro com ódio de tudo isso, dessa máquina mal- dita de moer gente. O pior de ser fantoche é quando olhamos pro alto e vemos as cordas.
Naquele dia dirigiu, dirigiu tanto que jurou que flashs es- talaram às suas costas, só queria encontrar. Tinha apenas um objetivo, iria beijar um lindo muro reforçado.
Viu a placa, encostou, balbuciou o nome da bebida, engo- liu, pagou e saiu.
É o que lhe daria juízo naquela hora, isso se ele já tivesse tido em alguma época, as pequenas gotas que caíam no para- -brisa lhe traziam algo que não identificava, algo lá no passado, o vazio aterrorizante da noite não o deixava olhar para os la- dos, somente para frente.
Agora sei por que quase nunca dirijo, sempre tenho esses pensamentos, me sinto tão só aqui dentro, protegido de tudo e de todos, minha pequena não está no banco de trás, nem minha esposa está ao meu lado, dando palpites, ajudando a chegar a algum lugar.
Quando poderia respirar? Parecia a primeira vez, o ar saiu devagar, a noite fria fez a fumaça sair da boca, talvez fosse isso
Deus Foi almoçar
que o tenha acalmado, a sensação da vida, o ar entrando agora já era percebido, olhou para o botão do ar-condicionado, pela primeira vez havia tirado os olhos da estrada, ele sempre gos- tou do frio, apertou o botão do vidro elétrico e quando sentiu o vento se arrepiou, naquela hora ele se sentiu vivo, algo chegou nele muito rápido, seus olhos viraram fontes e suas bochechas rochas por onde a água descia.
O que tinha virado sua vida, seu velho de merda? Chegou na toca, abriu a porta como quem abre a porta de um paraíso, entrou como quem entra num abrigo nuclear, olhou para fora como quem olha para uma situação da qual sabia que não po- deria sair nunca mais.
Jogou o corpo no sofá, tirou os sapatos apoiando sempre o dedão no calcanhar, de dez em dez minutos ficava olhando o forro da sala, uma porra de um verniz escuro demais e o clima era pesado.
O vendedor falou que ficaria lindo. Quando foi comprar o vendedor lhe deu um de mogno, praticamente ficou quase preto. O pedreiro não notou a diferença, com cinco filhos nas costas não notava muitas coisas, o grau de importância era outro. Uma vez ele havia chegado e dito que tudo em sua casa era arroz e arroz, os meninos comiam arroz pra caramba, Calixto entendia que arroz era mais necessário para o pedreiro que a cor do verniz.
As pálpebras pesavam, ele olhava para a merda do forro, um velho filme na TV, sempre um velho filme, quando respi- rava, o ar entrava e fazia um leve assobio, queria fechar a boca, mas seu nariz estava mal. Só queria descobrir qual foi o mal- dito livro que ativou seus medos mais profundos, hoje quando acordou já sentia que o inimigo estava em casa.
Era um degenerado lendo um livro puro, mas livros não são puros, são degenerados.
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No fim do ato de espremer os olhos, sentia que estava pró- ximo de uma palavra, ou talvez uma frase que abrisse o portal. Eles falavam, mas seus olhos vagavam por algum lugar, e com certeza não era aquele lugar, montanhas, cânions, muito sol, uma imagem comum para ele, embora nunca tivesse pas-
sado por lá em toda sua vida.
Lembrou-se do sonho, havia queimado ela, queimado quan-

do estava pela primeira vez grávida. A pequena se mexia dentro de sua barriga.
Viraram pó, ele comia o pó todos os dias, e assim dizia que estariam juntos para sempre.
Foi para a rua novamente, ligou o carro, precisava sen- tir algo, cruzou ruas, parou em acostamentos, comprou uma garrafa d’água que não bebeu, correu, andou devagar, contou postes, olhou casas, parou em faróis verdes.
De repente, parou o carro e notou, por toda a camisa, era algo mágico, se movimentava, a sombra das folhas, algo acon- teceu, nunca havia se sentido assim, as coisas brilhantes se vi- ravam calmamente e tudo fez sentido. Olhou para o para-brisa e viu as gotas escorrendo, batendo e depois escorrendo.
A luz batia nas gotas, elas no para-brisa e o finado ato era as luzes na sua blusa, de repente tudo parecia fazer sentido, ele olhava, mas não via, sentia, mas não se lembrava.
Era como quem está vendo um bom e velho filme e de repente está sendo o ator principal.
Eu não estava vendo, naquele momento eu fazia parte de tudo, eu pertencia.
Ao sentar no chão, se lembrou da ousadia que havia feito na noite passada, precisava se conter.
Sorte que a maldita cidade não tinha um muro à altura do que havia imaginado.
Deus Foi almoçar
Também não havia nenhum muro que indicasse: “Se você não vê perspectiva de melhora, bata aqui”.
Só havia uma certeza, a que estava ficando tudo muito es- tranho. Talvez tivesse atravessado o portal. Levantou a mão direita e tocou na corrente, preferia pensar em outra coisa, mas não conseguia. A menina do sonho retomava a sua mente, o rosto era familiar, mas não conseguia associar a nada, já tentou associar com a época de escola, com os amigos de infância, ex- -namoradas, parentes, mas até agora nada. Talvez uma foto na casa de alguém, talvez um anúncio, como poderia saber?
O certo era que o sonho viria nos próximos dias, disso não tinha dúvida, mas naquela noite não sonhou com ela, e, sim, com uma senhora de cabelos negros, com um longo vestido bordado, com flores nele. No sonho, ela andava ao seu lado, as mãos delicadas tinham uma leve inclinação para trás. Os lábios eram levemente avermelhados, mas tinham a aparência de serem mais vermelhos, pois batiam de frente com a pele pálida.
Os olhos também eram negros. Ele ao lado caminhava lentamente, e havia madeiras empilhadas durante todo o per- curso. Os cabelos dela estavam jogados à frente do ombro e combinavam com as unhas das mãos e dos pés, dava para ver os detalhes, pois caminhava descalça. Olhando para o rosto, ele via a semelhança, um jovem com o mesmo rosto, um rosto colado num para-brisa de carro, num acidente a algum tempo, Calixto ficou parado.
O sonho terminou quando se deram as mãos, não se olharam, somente deram as mãos no mesmo momento. Acordou, estava contente, há muito não sonhava com uma mulher, e ainda mais um sonho tão calmo. Pensou em fazer café enquanto lavava o rosto, mas resolveu ir para a padaria, onde tomaria um chocolate quente.
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Na mão um livro, o mesmo tema, as estradas, as aventuras e as drogas, com uma dose de sexo sem limites, eram assim as aventuras de M. Jolnir, que só trocava por Fante.
Estava determinado, tomou o café na padaria pegou o carro e saiu a caminho do serviço, no meio do caminho algo lhe ocorreu, foi para um motel barato, a apenas seis quadras de onde morava.
Estacionou.
Abriu a porta do quarto, foi para o banheiro, ouviu um ba- rulho lá fora, ligou o chuveiro, aparou os pingos com a mão até ter certeza de que sentira a água quase pelando. Tirou a roupa, o barulho agora era mais alto, sentou embaixo do chuveiro, co- meçou a pilotar o pênis na tentativa de deixá-lo duro, deu risada quando se lembrou da frase, “pornografia é antiamor”, que ha- via escutado numa música em algum lugar, o barulho da água que caía no ralo interferia nos pensamentos sobre a gostosa que entregava as coisas para o apresentador no programa de domin- go, ou as putinhas que ficam fingindo que são apresentadoras nos programas da madrugada. Deus. Ele gritou. A imagem da bunda aberta para ele foi sumindo, só ficando o maldito baru- lho, se Jesus voltasse naquele instante ele não levantaria as mãos para o arrebatamento.
No começo, era quase imperceptível, agora parecia um en- saio da Timbalada.
O toque seco, contínuo, com um pouco de eco, não gozaria, e disso ele tinha certeza, não naquele maldito banheiro, pegou a toalha, secou-se lentamente, como se estivesse moldando uma estátua, foi para a cama, tirou o lençol, cuspiu na mão e come- çou a manobrar o pênis murcho novamente por alguns segun- dos, começou a ouvir um barulho de conversa, prestou mais atenção e teve certeza de que era a televisão do vizinho, em seguida, sentiu o pênis ainda mais mole e decidiu parar quando
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veio à sua mente a imagem de sua mãe sorrindo, ficou puto da vida, a pobre mãe sorrindo e seu pinto sumindo entre as pernas, gritou por Deus novamente embora não gostasse de apelar, ain- da mais para alguém que na sua visão nunca tinha ajudado.
Iria voltar para casa, aquele motel tinha sido uma ideia péssima, pelo menos em casa poderia se concentrar melhor, pôr um filme pornô e viajar com as atrizes americanas, todas bem pagas e fingindo bem o orgasmo, talvez fosse isso que devesse fazer mesmo, fingir que se masturbava enquanto elas fingiam que eram atrizes e os atores fingiam que gostavam de mulher, fazendo todo o esforço do mundo para ficar com seus paus duros durante as gravações.
Precisamos de uma desculpa para continuar respirando.
Olhou para o telefone, ligou para seu amigo, ninguém atendeu.
Vestiu as roupas, separou o dinheiro da carteira e quan- do abriu o vidro para pagar a curta estadia, fingiu não notar o olhar curioso do caixa, quando viu o banco do passageiro vazio, talvez tivesse imaginado a cena, quem ele seria? Uma bicha com um vibrador dentro da bolsa do carro, talvez fosse um daqueles xaropes que transam com bonecas de vinil, ou quem sabe o que mais poderia ter imaginado.
Chegou em casa, foi logo retirando o sapato, e suas pálpe- bras fizeram o resto.
Levantou no meio da noite, foi à geladeira em busca de um gole de água gelada, se deu conta de que não estava na sua antiga casa, dois riscos, um em cada parte da boca, ambos descendo até o queixo, alguém com uma mão dentro de suas calças, quando a mão mexeu em sua calça ele levantou, a mão subiu e nela estava um boneco feito de meia, e nele estava de- senhado seu próprio rosto.
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Pegou a garrafa com água colocou o bico na boca e fez a água descer pela garganta abaixo, voltou para cama, mas antes encarou o espelho.
O sol ainda resistia, lá dentro só escuridão.
Acendeu as luzes e olhou para o espelho que sempre ficava na cozinha, todos os dias ele passava, mas nunca se olhava, mas naquela madrugada o destino o fez olhar, dava para ver somen- te um lado do corpo, pois a luz que vinha do poste que ilumina- va a rua batia na janela do banheiro e passava já diminuída para a cozinha. Viu sua silhueta e ficou horrorizado quando percebeu que os lábios que estavam no espelho se mexiam.
Entre aqui. Foi o que a boca disse, mas ele juraria que não havia pronunciado tal frase, então sem fazer nenhum esforço foi se aproximando do espelho, quando chegou perto os lábios se mexeram novamente. Entre aqui. Com um forte impulso, mergulhou no espelho com a cabeça levemente inclinada para frente, como quem mergulha num calmo lago.
Capítulo 23
cuidAndo dA bichinhA
O sol estava entrando pela janela, sentiu a barriga pedir algo, lembrou não ter comido absolutamente nada depois das quatro da tarde do dia anterior.
Papai, minha barriga tá com fomi.
Seus olhos encheram de água ao se lembrar da sua peque- na menina.
Saiu do banheiro, pegou o molho de chaves e foi para a padaria, o caminho era sempre o mesmo, alguns metros per- corridos, uma esquina virada, mais alguns passos e lá estava.
Às vezes, voltava pelo outro lado, cruzava uma pequena rua de paralelepípedos, sempre observava os do lado esquerdo que ficavam mais altos, talvez colocados assim por um funcio- nário distraído com algum caso amoroso. A rua também tinha um muro com quase toda sua extensão rodeada por coroas de espinhos. Estava caminhando, quando a vizinha falou:
Essa noite eu acho que envenenaram a bichinha.
A bichinha que ela estava falando era uma cachorra dober- mam chamada Samira, que protegia a casa de um casal de japone- ses e seu filho, mas que há muitos anos se separaram e mudaram.
O casal não conseguiu vender nem alugar a casa, sendo as- sim, Samira ficava noites e noites uivando, a vizinha num ato de solidariedade e porque adorava animais começou a lhe dar co-
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mida pela fresta do portão. Tempos depois pegou a chave com o filho do casal e começou a cuidar dela em tempo integral.
O jovem, que tinha lhe dado a chave mais para que ela parasse de perguntar da cachorra do que por vontade própria, nunca agradecia por ela estar fazendo esse serviço.
Todos os dias ela recolhia as fezes da Samira e lavava todo o quintal, talvez o filho do casal não agradecesse, pois descon- fiava-se que aquela ocupação estava na verdade impedindo ela de ter uma vida fútil, totalmente idiota, talvez ele soubesse das noites em claro, da falta que sentia do falecido marido.
De certa forma, se ocupar com Samira salvava sua vida.
Ela continuava olhando para ele esperando uma resposta, mas Calixto não estava a fim de conversar, ainda mais com aquela mulher para ele tão especial, que ele sempre pensava no que falar, e aquele dia parecia ser o pior dia, não estava preparado para aquilo, parecia meio maluco, mas conseguiu se concentrar.
Tentaram matar ela, é?
Sim, acho que com mocotó, achei uns ossinhos ao lado dela, e a bichinha tava vomitando até sangue, esse pessoal odeia cachorro, cê vê, eles não olham nem os próprios filhos ainda mais vão ligar para animal.
É verdade. Respondeu com esperança de terminar o as- sunto e tentou caminhar novamente, mas a vizinha logo encai- xou um diálogo longo, fazendo ele permanecer parado.
Você sabe o que está acontecendo? Tem muita gente que não gosta de mim, e como não pode me dar veneno, porque eu não ia beber, né? Então eles fazem isso com a bichinha, agora cê acha que ela tem culpa de alguma coisa? Você sabe quantas vezes eu cuidei dela e ela estava quase à beira da morte? Não é fácil não, e as pessoas no final não dão valor...
Deus Foi almoçar
Ela não havia terminado de falar, mas pela rapidez com que dizia as palavras ele não acompanhava seu raciocínio. Só queria comprar uns pães e tomar um café, a padaria estava a poucos metros, mas o diálogo interminável com a vizinha já o tinha deixado exausto.
Então pro senhor ver, a gente faz de tudo por essas pessoas, e como elas pagam elas envenenam a pobrezinha e...
Já não conseguia mais ouvir nada, mas sabia que ela não pararia de falar, estava agora notando seu short molhado, sua camiseta regata abóbora e nos seus pés um velho par de chi- nelos Havaianas, a mangueira na mão, foi quando percebeu que nunca havia visto aquela mulher sem aquela mangueira na mão, sempre com a mangueira na mão, ou lavando o quintal ou a calçada.
Resolveu tentar caminhar, forçou o joelho esquerdo e con- seguiu movimentar o pé, em seguida, puxou o corpo nova- mente e quando virou os olhos notou que ela havia parado de falar e estava alisando a cachorra, foi quando impulsionou o corpo para frente e foi adiante, precisava comprar pão e certa- mente voltaria para casa pela pequena viela.
O senhor sabe o que o veneno faz com os pobres dos ani- mais, uma dor cruel, ele estoura tudo por dentro, vai matando por dentro.
Ele ainda ouvia a mulher, gostava do jeito dela, tinha von- tade de pegar em sua mão, em chamar ela para sair dali, irem para um lugar melhor, onde ninguém envenenaria mais, onde as pessoas ainda dessem bom-dia, boa-tarde e boa-noite, para morarem em frente a uma praça, onde ela molharia as rosas.
Mas ela só falava da morte da cachorra, e ele agora tinha vontade de dizer para ela que isso pouco importava, pois todos estamos morrendo por dentro.
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Capítulo 24
não conseguindo fAlAr
As nuvens foram embora, e o entardecer chegou.
Ainda estava deitado na rede que às vezes estendia no quin- tal, não sabia por que, mas de repente lhe veio Melinda, saiu da rede que a princípio era branca, mas após anos de uso já estava amarelada.
O telefone tocou, não queria atender, mas a todo momen- to fazemos coisas que não queremos, era Hamilton, a conversa foi curta, Calixto tentou ser delicado.
Por que não fui trabalhar? Porque eu não quis, oras, não, eu não tô nervoso, filho, mas não gosto de ficar me explicando. Tudo bem, então, amanhã a gente conversa, e não, eu não
tô com raiva de você nem nada disso. Resolveu sair.
Anoitecendo.
O tempo já estava cansado.
Caminhou pelas ruas vazias, ruas compridas onde as pes-

soas certamente já tinham passado hoje, pois o horário de vol- tar do trabalho já havia a pouco vingado.
Na rua havia um ponto final de ônibus, notou um velho motorista levantando uma sacola e assobiando, de primeira não entendeu o gesto, mas quando surgiu do outro lado da avenida um cachorro baixinho com a pelagem preta e o peito
Deus Foi almoçar
branco, com uma grande língua vermelha de fora e abanando o rabo, entendeu.
Todo mundo é feliz quando come.
O ônibus vazio lhe trazia uma estranha sensação, não sabe- ria dizer se era tristeza ou alegria.
Continuou caminhando, e o tempo cada vez mais jogava o frio em seu rosto, apesar de caminhar apressadamente não conseguia aquecer o corpo.
Uma vez quando menino, fumou cigarro com os amigos, próximo a uma árvore parecida com a que estava vendo. Hoje sabia que muitos se reuniam para fumar ali, mas certamente não era cigarro, nem era mais uma conversa ingênua e nem com esperanças tão exageradas de um bom futuro.
Já estava se aproximando do que planejava, em alguns se- gundos podia ver o velho banco, a madeira já apodrecida talvez ainda servisse para dar uma bela descansada, naquela época suas pernas ficavam fora do chão, mas agora, quando chegou perto do banco, percebeu que quase ficaria de cócoras ao tentar se sentar.
Tantas promessas de união eterna, quando chupavam ge- ladinho todos juntos e se viam na velhice voltando ali e ten- tando abrir o saquinho do geladinho, imaginavam a dentadura caindo ao tentar furar, e todos riam muito, mas muita coisa havia mudado, e aquele banco tem muito do antigo, e a árvore é muito parecida com a outra, ou sua memória estava ficando problemática, era possível.
Voltou para o que chamava de lar, andou bem devagar, ouvia agora alguém gargalhar.
Risos que ele nunca mais viu, o destino fez sua função, agiu de forma impiedosa e fez com cada um o que bem quis.
Entrou na escura casa, foi ao telefone e resolveu ligar para seu amigo.
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Ferréz
Discou os números rapidamente, o barulho da busca terminou. Alô.
Alô, Lourival?
Sim?

É eu, quer dizer, sou eu.
Eu quem?
O Calixto.
Caralho, cara, o que aconteceu? Pensei que tinha morrido. Ainda não, mas pode acontecer, né?

Não sei, vira essa boca pra lá.
Mas pode, olha, veja só, se um carro me pega na rua e... Qué isso, cara, corta essa. Como você está?
Bom... ou melhor, como todos falam ultimamente, estou

indo, né.
É, e as demais coisas, e Carol, tem visto ela?
Bom, a Carol ela, ela, ela tá viajando.
Certo, cara, e a pequena?
Ela tá legal também, tá viajando.
E quando a gente vai se trombar? Comprei uns filmes que

você tem que ver.
Bom, vamos marcar na semana que vem, né.
Certo, veja só, Calixto, eu tô indo lá fora repor as energias,

é que eu não fumo mais aqui em casa, devido à reclamação do proprietário, né, então cê podia me ligar depois?
Tá, tá bom, eu ligo semana que vem.
Isso, cê intende, né? É que eu preciso me abastecer sabe, é precisão. Eu entendo, Lourival, esquenta não, além do mais, foi

você que ligou, até. Até.
Desliguei, mas com uma dor tão grande, que queria tanto falar com ele, precisava falar com alguém.
Capítulo 25
o nome do filme erA pesAdelo
Calixto não queria adverti-lo, achava desnecessário fazer isso logo nos primeiros dias de serviço, na verdade não queria passar por chato. Outro motivo era que os funcionários da cen- tral já deviam ter avisado Hamilton que Calixto era esquisito, senão insuportável de conviver, ou que outro motivo teria para ter trabalhado tanto tempo sozinho naquele arquivo morto?
Encarou a madeira onde colocava seus cotovelos todos os dias e ficou imóvel por alguns minutos.
Faz tempo que queria ir para o centro da cidade, estava com saudade de todo aquele movimento, daquela bagunça que só o Vale do Anhangabaú e as barracas de hot-dog, junto com os camelôs, podiam fazer acontecer.
A decisão não foi difícil, Hamilton que ficasse sozinho um pouco, que soubesse como era ser só, como Calixto tanto sabia. Ia aproveitar e pegar um cinema, o comentário de Louri- val sobre filmes o havia instigado a assistir, a viagem foi longa,
uma hora aproximadamente para chegar.
Olhou uma fração de São Paulo, estava tudo tão cheio, calçadas

cheias de carros, lojas cheias de produtos, pessoas cheias da vida. Começou a andar pelas ruas tumultuadas, a sujeira ele já tinha esquecido, tantos prédios, tantas vidas, onde a cidade co-
meçava e onde terminava já não interessava.
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Ferréz
Passou pelo cinema, talvez entrasse, num shopping seriam doze dinheiros, com risco de ser metralhado por algum viciado em video- games, ali no centro, somente três dinheiros, no máximo, poderia sentar num esperma seco, ainda assim ia economizar uma grana.
Encarou o caixa, óculos grandes demais para um rosto fino, careca, dentes amarelos e um fiapo de fumaça passando por seu rosto, o cigarro aceso só foi visto quando ele destacou o ingresso.
O filme era estranho, começava com um grande aciden- te de carro, as cadeiras eram antigas, as luzes de emergência eram improvisadas, passou por duas fileiras, casais se beijavam com entusiasmo, talvez estivessem apaixonados, mas lembrou que não era seu tempo, no seu tempo pessoas se apaixonavam, ou pelo menos se enganavam, com maior frequência.
Sentou e notou que na fileira de trás havia alguém, talvez uma linda garota sozinha, talvez uma prostituta que chupasse ele pelos dez dinheiros que restavam em sua carteira, o pinto deu uma fis- gada com o pensamento, esperou alguns minutos e olhou.
Era um travesti, virou rapidamente a cabeça para frente, mas já havia visto o suficiente para o coração palpitar com a imagem que seu cérebro registrou.
Era feio demais, tinha silicone nas bochechas, duas mechas louras que pareciam raios num cabelo seco preto, os dentes de cima proeminentes para fora e um furo no queixo.
Talvez, quando garoto, havia beijado tantas meninas que resolveu experimentar um cassete duro e grosso, ficava com todas com aquele detalhe, um furinho no queixo que era um charme, talvez foi assim que decidiu passar o resto da vida mordendo a fronha, ou para ser mais sincero e menos pre- conceituoso, talvez ele tivesse enjoado das seguidas dores de cabeça, perguntas de por que ele havia mudado, lavagens de
Deus Foi almoçar
cabelo e banhos intermináveis, das saídas com amigas, do sor- riso que ela soltava quando a mãe chegava, um sorriso que ele nunca conseguiu ter para ele, agora sentando naquela cadeira suja, ele talvez fosse mais feliz, talvez fosse mais verdadeiro do que a maioria de marionetes lá fora.
Talvez, um jovem comum, com vontades diferentes, que de tanta publicidade, desfiles de lingerie, capas de revistas masculinas, tantas bundas, talvez tivesse pensado que um ho- mem tem que ser muito macho pra ser gay.
Ou talvez, ele tenha só interesse em outro homem, sem mais explicações.
As propagandas não começavam, estava ansioso e come- çou a cutucar o braço da cadeira, foi quando sentiu algo gos- mento na mão, chiclete não era, decidiu não olhar, mas xingou, limpou rapidamente na calça e mudou para o acento do lado.
Lourival veio em sua mente, as histórias que havia conta- do quando era criança, as experiências de ter comido vários travestis.
Lourival sempre dizia que os travestis eram melhores que as mulheres, que eles sabiam do que os homens gostavam, uma vez Calixto tentou argumentar:
Claro que eles sabem, Lourival. Porque eram homens, por- ra, e além do mais ser homem já é foda, ser mulher é mais problemático ainda, agora imagina um homem que quer ser mulher, a cabeça desse cara deve ser foda.
Mas Lourival não aceitava que falassem mal deles, eles eram muito carinhosos, e ele tinha vontade de um dia morar com um e viver com ele até o fim, e seu argumento era que só um homem entende o outro, que os sexos opostos são de fato as- sim. Tentava lhe convencer com várias teses, numa dessas teses, contava sobre uma festa, as mulheres sempre ficavam isoladas,
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se olhando, reparando, enquanto os homens começavam logo a beber, jogar truco e no final da festa estavam todos abraçados. Calixto então notou as luzes de emergência se apagando.
Ainda nos primeiros minutos de filme, começou a ouvir umas conversas no celular, não acreditava que isso estava acontecendo, quando olhou em volta viu várias luzinhas ace- sas, não podia reclamar com tantos assim, se fosse um ou outro.
Novos tempos.
Tentou prestar atenção no filme, mas estava com medo do travesti que agora já havia pulado para a fileira da frente e não parava de observar sua pessoa.
Decidiu levantar e ir no banheiro, logo na porta havia ou- tro travesti, dessa vez era mais feio ainda, velho, mais ou me- nos uns cinquenta anos, cavernas nos olhos, rachaduras nos lábios, quando viu que o velho usava uma microssaia e apare- cia por cima do umbigo a ponta de uma calcinha vermelha, o almoço lhe chegou à garganta.
No lugar da vagina, havia um pacote na parte da frente. Ca- lixto se odiava por ser tão detalhista, entrou no banheiro, mas não conseguiu urinar, olhou para a calça em que havia limpando a gosma que estava no braço da cadeira e viu algo branco e já seco.
Deus, não acredito, isso é porra!
Quando percebeu que havia falado isso alto, ficou com vergonha de sair do banheiro, mas começou a caminhar em direção à porta, quando passou pelo velho esse lhe deu uma piscada, que mais simbolizava um insulto que uma cantada.
Calixto foi para a saída do cinema e resolveu tomar uma cer- veja, com certeza qualquer sexo que tivesse naquele filme não se- ria maior que o velho de calcinha vermelha na porta do banheiro.
A rua deslizava por suas pernas, ele tentava achar algum par de pernas que usasse saia, mas todas estavam de jeans.
Deus Foi almoçar
Alguém passou por ele, olhou e mexeu a boca.
E aí, Calixto, como vai?
Ele olhava, mas não via nada além de dois olhos negros e

uma boca que se mexia muito rápida.
Você quer realmente saber como estou?
Calixto... você num se lembra de mim?
Você quer realmente saber como estou, ou é só uma per-

gunta casual que, independente da resposta, você ouvirá que estou indo bem?
Os olhos e a boca saíram, ele continuou a andar por alguns segundos, depois sentou em frente a um ponto de táxi e cochilou. Você está aí dentro, Calixto? Você está me ouvindo, Calixto?
Estou, no momento estou ouvindo bem. O que está fazendo?
Estou segurando meu olho.
Seu olho?

É porra, tô segurando meu olho esquerdo, estou no sofá da minha cabeça e estou com o ouvido encostado nele.
Mas isso é um desenho.
Que desenho, isso é minha vida.
Sua vida uma porra, isso é um desenho do meu amigo. Que amigo? Você não tem amigos, Calixto.
Tenho sim, isso é um desenho do Lourival.
Que nada, cara, você está vivendo o sonho de outro cara. Mas se é isso, como estou sonhando?
Você não está sonhando.
Mas se sou você, quem está acordado?
A questão, Calixto, é o que você está fazendo segurando

seu olho na sua cabeça. Nossa cabeça.
Como nossa?
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Ferréz
Você, na verdade, é eu.
Sou eu?
É eu, sou eu, não sei muito de português.
Como assim?
Sei lá, esquece que estou dizendo isso.
Sabe, Calixto, isso é uma loucura.
Loucura não, isso é um sonho.
Isso é o portal?
Que nada, você só vai ver o portal no fim.
Como assim?
Deixa que um presente recente te mostra.
Então pra deixar bem claro: isto é só um sonho.
Mas um sonho com dois eus?
É, está quase chegando lá.
Meu, sinto muito, mas o telefone tá tocando, e sonho não

tem telefone.
Quem disse que sonho tem regra?
Seja você quem for, até se for eu, isso está confuso demais,

vou atender.
Alô, por favor, o Lourival.
Quem deseja?
Eu, Calixto.
É ele.
E aí, como vai indo, amigo?
Amigo? Quem tá falando?
O Calixto, pô.
Eu não conheço nenhum Calixto, senhor, acho que está

me confundindo com alguém.
Mas eu liguei no mesmo número que está na memória do

telefone, que número é aí?
Não posso informar, senhor.
Deus Foi almoçar
Mas eu te liguei esses dias e...
Senhor, queira me desculpar, mas não conheço o senhor e estou desligando.
Não, peraí, porra, peraí.
Calixto?
Sim, quem é?
Sou eu, o Lourival.
Legal, acabei de te ligar, um cara atendeu e disse que não

era você.
Estranho, eu sempre fui eu, mas me diga, e aí, meu velho,

como você está?
Tudo legal, vamos indo.
Hoje eu tô mal.
Mal como?
Muito depressivo, com vontade de morrer.
Para com isso, Calixto, o que é esse lance de depressão,

isso é para o Jimi Hendrix, para o Kurt Cobain e esses caras americanos.
O que isso tem a ver, cara?
A depressão é estadunidense, eles é que são assim.
O quê?
É isso mesmo, nós somos contentes, olha o axé, olha o

carnaval, o povo comendo pão o dia inteiro e tá pulando, fes- tejando até em final de juniores.
Caralho, não posso nem estar triste que é coisa importada, só a alegria é nacional?
Isso mesmo, vamos falar de amor, você anda amando al- guém, Calixto?
Não, eu fico só lembrando dos tempos de namoro que não voltam mais, eu cruzei com aquela mulher do quintal de novo, tenho vontade de puxar papo, mas acho que estou enferruja-
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Ferréz
do, tem hora que penso que ela é louca, com aquela mangueira na mão o dia inteiro, agora está até cuidando de cachorro, e pelo que me disseram nem é cachorro dela.
Então você tá feliz? Amar é um sentimento bom.
É, num sei se é isso, o ódio é um sentimento tão ruim, mas se apossa de mim, me deixa bater os dentes, me deixa cada vez mais doente, eu conto até dez, eu conto até cem, eu conto até mil, mas acabo gritando com a toalha sufocada na boca para ninguém ouvir, acho que gostar dela fica perdido nisso tudo.
Lourival, vou ter que desligar, alguém tá chamando.
Ok, depois a gente se fala.
Abro a porta e vejo a menina, ela traz uma corda nas mãos,

eu olho para a corda, não entendo, ela tem um olhar mais es- tranho, parece que seus olhos estão pintados, ela parece mais velha, mais madura.
Moço?
Sim, Lourival.
Moço, o senhor não pode ficar cochilando aqui não, afasta

os clientes.
Capítulo 26
cAligrAfiA
Nunca me dei bem com nenhuma mulher de amigo meu, qualquer lembrança do passado, qualquer vestígio de vida an- tes de ela existir e dá nisso, ela se levanta fica indignada, ele me olha dizendo: Você não deveria ter dito isso!
Elas querem sua alma. Não é só o seu dinheiro, nem mes- mo o carro. Apenas a porra da sua alma, toda a sua essência, e se existe algo que você viveu sem ela, esqueça, anule da sua cabeça, elas percebem como você trata sua mãe, percebem como trata o amigo, como trata a garçonete, elas observam tudo ao redor, não querem você, você é só um ornamento, elas querem todo o universo que o cerca, defeitos já esquecidos, passado recente, trechos de sorriso, afetos antigos.
É o verme, ele precisa nadar através do sangue para o cérebro. Grande parte do cérebro é protegida de substâncias estranhas por um sistema de bloqueio chamado de barreira hematoencefálica, sem essa barreira poucas células cerebrais permaneceriam até os anos dourados da vida, e isso é tudo, elas são o verme, você o cérebro.
Calixto olha o sol por baixo da porta, já faz cinco dias que não vai trabalhar, imerso num mundo de sonhos e cigarros, água e pequenos pedaços de pão, desesperança e tentativas de ver o portal.
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Ferréz
Todo filme violento o faz chorar, e às vezes as lágrimas nem saem mais dos olhos, não precisa haver lágrimas para se chorar. É um choro interno, estranho como escrever em letra de
forma porque a professora gostava.
Malditos cadernos de caligrafia, nunca os terminava, nun-

ca chegava ao seu fim, achava que não tinham fim, igual a terços de igrejas.
As linhas baixas agora, coçava a orelha, na verdade acima dela, numa mesma irritação, mais costume do que coceira de fato, uma amostra de comportamento, uma repetição de movi- mento, estava sujo, precisava tomar um banho, sair, ver alguém.
Quem o conhecesse de verdade sabia o que aquilo queira dizer. As linhas altas, uma após a outra, e a letra nunca ficava boa. Maldito caderno de caligrafia, se tivesse tido uma letra boni-
ta podia ter tido um futuro melhor, sua mãe batia em sua cabeça. Onde você vai parar com uma letra desgraçada dessa? Lourival não vem, sabe disso agora, já passou do horário
de costume, agora que começou com essa garota ele vai ficar assim algum tempo, depois vêm as conversas, desabafos, pro- blemas, intrigas, e Calixto vai aconselhar, como sempre, para um rompimento sem problemas, sem tumulto, sem maiores consequências, ou Lourival vai querer esperar ter um filho no meio de tudo, já pensou uma criança no meio dessa confusão? Quantos problemas iam acontecer por isso, a vida ia parar, tudo ia mudar, uma nova casa, postura, sogra, pessoas man- dando, ditando regras, cagando deveres.
Todo mundo palpitando, e falariam que uma criança só é triste, legal seria ter um casal, e onde come um comem dois, e depois quem sabe um caçulinha para animar a família.
Os dois estariam grandes, então um seria legal para relem- brar tudo, e depois um filho teria uma namorada que teria ou-
Deus Foi almoçar
tro filho, que ficaria na sua casa todos os dias, pois os filhos são assim, eles trazem outros para ocupar o mesmo lugar, e tudo isso porque ele não terminou naquele tempo, aquele tempo perfeito entre se acabar com tudo, em que por alguns dias você pode agir pelo destino em vez de deixar ele cuidar de tudo.
Alguém chama lá fora, eu vou ficar quieto e tudo vai mu- dar, daqui a pouco ninguém mais vai estar chamando.
Minhas pestanas pesam, e quando abro, olho pela janela e vejo que o sol já se foi, vou dar uma volta, quem sabe tomar uma cerve- ja, ponho a mão na barriga, está do mesmo jeito, uma cerveja não vai mal essa hora.
Vinte cinco passos, malditos vinte cinco passos e vem a parada brusca.
Oi, já tava indo embora, te chamei na sua casa. Vim, cha- mei mais cedo, mas acho que você num tava.
Eu tava.
Você não me ouviu chamar, então.
Não se engane, eu ouvi.
Como assim? Você ouviu e não podia atender? Não tá que-

rendo mais falar com sua irmã?
Não se engane, podia sim, podia atender, mas não sou

obrigado, sabia que a gente num é obrigado o tempo todo? Mas...
Deixa eu terminar, eu podia mentir, desde o princípio, di- zer que não estava, que não podia, eu podia mentir que gosto quando você vai lá, já menti muito, é mais difícil falar a verda- de, mentir é mais fácil, as pessoas vivem assim, gostam assim, eu sou sincericida agora, vou acabar assassinando alguém com a verdade.
Nossa, Cal... Tchau.
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Ferréz
A tarde era estranhamente vazia, a única opção era pegar o carro e sair por aí, como sempre, Calixto saiu com a mesma roupa que estava usando, não tinha vaidade, não havia des- pendido tempo nela em toda sua vida.
Chegou rápido ao centro, estava fora do fluxo mais pesado.
Passando pelas ruas, parou em frente a um sebo, olhou os livros, não achou nenhum que interessasse, mas foi para a sessão de filmes, comprou dois vídeos pornôs, o dono do sebo lhe deu um CD, era uma coletânea especial sobre o dia dos namorados, Calixto não achou engraçado e tinha certeza de que não era para achar, andando pelo centro, com o CD e as fitas numa sacola.
Como perdi minha família? Vendo as árvores vestidas com luzes, como se fossem peles ou um lindo vestido que cobria por completo seus tons marrons, como as madames nos shop- pings centers, vestidas para brilhar, com a pele enrugada por baixo do manto brilhante.
Uma dama da noite o cantou, ele se sentiu lisonjeado, o pau ereto. Ah! Tá pensando o que, hein, que é fácil assim, aqui é um homem de valor, ou melhor aqui tem um homem de valor, eu posso estar aparentemente sozinho, mas isso não tira meu valor.
Não teria coragem de dizer isso, não teria coragem de hu- milhar de certa forma aquela moça que só estava ali por di- nheiro, não teria como lhe dizer, nem como era linda, nem como era triste essa vida, mas podia pensar, covarde.
Estranho foi seu caminhar até a cozinha, quando vislum- brou as sombras logo após a geladeira e espremidas pelos deta- lhes do armário, temia algo que não conhecia, desistiu de algo que iria comer, ou talvez beber.
Olhou o telefone de frente, teve receio.
De uma forma ainda desconhecida, desistiu de ligar para alguém que na maioria das vezes o ignorava e sabia que seus
Deus Foi almoçar
pensamentos estavam indo embora, ou melhor, vão desapa- recer de fato. Pensou no cartão em cima da mesa, o lança- mento de um livro.
O lançamento de um livro é um rodeio de abutres louvan- do uma mente capaz de mentir em tão alto grau que escreve e negocia.
Olhou um jornal na mesa e naqueles versos perdidos no papel, a frase era certa. “A mentira é irmã da imaginação.”
Resolveu ficar ali mesmo, conversar consigo, responder como se fosse um amigo, mas tinha que aprender a magoar, a desconversar, a imprimir pensamentos egoístas e vazios, é assim que amigos conversam, jogam fora esboços vazios de ideias fracas.
Pensou em ligar para Lourival, mas afinal de contas, para que ligar? Para que esvaziar suas ideias, tentar matar suas dúvidas?
É o que a voz amiga me diz, eu decido bloquear sua inter- ferência, vou ligar o aparelho empoeirado e quase inútil que fica na minha sala.
A boca do locutor mexe, eu tenho um mal em mim. Não consigo me concentrar, sei que é mentira, sociedade fantoche, eu sei, eu precisava fazer algo, talvez uma carta, talvez um tex- to que abra olhos, talvez uma bomba seja mais eficaz, mas os meios não justificam os termos.
Acho que queria tomar algo, mas as sombras estão lá, me vejo num velho filme com um fraco roteiro, o escritor deve ser Deus.
Olhai os lírios do campo e nada te faltará, ele fala isso, e o que vejo nas ruas? Que se foda o que se vê nas ruas, o que estou dizendo, é a voz que me aconselha.
Caminho, olho, caço como quem precisa comer, e preciso, viro as esquinas, chuto os lixos, encaro elas, tento ver um rosto um pouco melhor, mal olho pro corpo.
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Ferréz
Finalmente achei, vestido longo preto, sandália de couro, daquelas feitas de tiras, cabelo longo, queixo pontudo, duas co- vinhas, um sorriso encantador, alguém que vou levar para um quarto barato, eu queria esvaziar sua alma, tomar seu corpo só para completar, beijar sua boca carnuda, tocar os seios fartos.
Pagar.
O pagamento quebra todo o encanto, fode todo o ciclo humano.
Negócio.
Tenho coragem agora.
Eu chego, pergunto quanto é, ela fala rápido, parece meio

fanha, a voz, eu não escuto, mas acho que é sessenta. Pergunto o que ela faz.
Sexenta, ela fala mais fanha ainda.
Burra.

Ela fica parada, olha pra mim, fala de novo.
Xexenta.
Vaca burra.
Parece que cada vez fica mais gosmento, meu estômago

começa a embrulhar.
Xexennnnntaaaaaa, meia chora ou até gochar.
Meu Deus, o que ela tá dizendo? O que quer dizer meia

chora? Deve ser meia hora.
Eu viro as costas.
Bicha.
Pelo menos essa palavra soa certo.
Capítulo 27
lítio
Senhor Calixto, veja bem, estamos reunidos aqui, porque nesses dias o Hamilton não conseguiu dar conta do serviço de entrega de documentos, e notamos sua ausência, queremos que saiba de antemão que pode contar conosco se tiver algum pro- blema de ordem pessoal, mas que também nos sentimos com a necessidade de promover essa reunião para pedir que não faltas- se, pois a organização do estoque foi criada pelo senhor, portanto não temos como achar os documentos necessários na sua falta.
Calixto olha para a mesa, se não fosse pelas gravatas todos seriam exatamente iguais, ternos azuis, sapatos pretos, falsa tentativa de demonstrar interesse.
Bom, eu entendo sim, até pelo fato de olharem e me verem agora e poderem perceber que estou até sem fazer a barba, minha aparência é bem esclarecedora, quer dizer, o que posso falar para vocês é que casa de trabalho, pastas de trabalho, folhas de traba- lho, grande todo-poderoso dono de empresa de trabalho, às vezes sentado aqui, eu pergunto como isso foi acontecer, tudo bem, tal- vez não tenha estudado o suficiente, não tenha sido benevolente o suficiente, não tenha sido um capacho o bastante, mas este serviço não me parece satisfatório em nenhum ponto de vista, vejam só, se- nhores, o que entendo é como tudo parece o mesmo, em qualquer ramo, como podem me pôr de chefe numa sessão que ficou duran-
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Ferréz
te todo esse tempo só comigo como funcionário eu não sei dizer, tudo bem, agora pelo menos tem o Hamilton, ele que organize as pastas, ele que ponha grampo em tudo, ele que ponha em ordem alfabética, estou cansado de tentar organizar tudo à minha volta, eu perdi minha mulher, perdi minha filha querida, vejam só, tudo é um só, a central ligou hoje, trinta demissões, trinta pobres coitados no olho da rua, vigilante é que nem merda, eles mandam embora de monte, nem atendem mais no departamento pessoal, depois os pobres coitados entram com processos, amigos eu tenho um que posso ligar, que é um cara que coleciona filmes e revistas em qua- drinhos, mas estou na empresa, mas na verdade estou numa ilha, arquivo morto é um porão maldito, onde quem trabalha fica isola- do, longe da empresa, longe das gostosas do RH, eu que me cerco de papel e agora aqui com esse Hamilton ajudante de bosta, ele que vá recolher toda essa folha de pagamento que eu não tiro o pé da escrivaninha nem pra mijar.
Senhor Calixto, o senhor parece meio esgotado, algumas coisas que disse a gente não conseguiu entender, e parece que o senhor Hamilton participa do nosso ponto de vista, quando citamos que é bom o senhor tirar umas férias.
Tudo bem, tudo bem, eu entendi, faz assim eu vou passar o serviço pra ele, vou terminar de mostrar o arquivo, as pastas e tudo mais, depois eu tiro essa licença, depois eu calo minha boca e fico na minha, não é isso?
Bom, acho que o senhor pode passar para ele o restante do serviço e descansar um pouco, afinal os dias têm sido um pouco tumultuados para o senhor. Melhoras e estimas para sua família.
Calixto sai da empresa, Hamilton estava ao seu lado o tem- po todo, não disse uma palavra, agora que saem pelo portão Calixto pensa, mas estimas pra que família, será que o cara ou- viu que ele tinha perdido a família, ou só ouviu o que queria?
Capítulo 28
mAis um diA
Hamilton chegou atrasado de novo, Calixto já está fazendo o serviço que pretendia passar para ele.
Olha para Hamilton, que mal chegou e já se sentou, jovens nascem cansados. Calixto joga as pastas no chão e liga para Lourival.
Lourival, é você?
Quem mais poderia?
Opa, então, eu liguei agora... Certo?
Calixto, o que tá pegando?
É que eu tô meio sozinho.
Sabe, Calixto, eu tô indo fumar agora e...
Não, não desligue eu preciso falar com alguém.
Mas e todo mundo?
Bom, eu num falo mais com ninguém.
Por que, cara? Você brigou com todo mundo?
Sei lá.
Calixto, é melhor você falar com calma.
É, bom, foi assim, me contaram uma história e eu não lem-

brava quem contou, então liguei para a casa de todo mundo e ninguém tinha me contado a história.
Mas o que isso tem a ver, cara?
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Ferréz
É isso, você acha que amigos são esses, me contaram uma história e negaram, eles querem me deixar louco, embora...
Embora o que, Calixto?
Embora minha mulher também possa ter me contado essa história, e eu não lembro, sabe.
E por que você não insistiu em lembrar quem contou? Mas eu insisti, até numa mulher que vê o futuro eu fui. Ela era boa?
Era.

E por que não te ajudou?
Porque ela não conseguiu ver quem me contou, ela falou do meu pai, da minha mulher, da minha vontade de mudar de vida, falou até do meu ex-cachorro, o Juquinha, só não falou da história.
E você perguntou pra sua mulher?
Porra, Lourival, eu nunca mais falei com ela depois do lan- ce do café.
Nossa!
E tem mais, pra todo mundo que liguei me contaram que já ouviram a história.
Porra, aí é sacanagem.
Pois é, e ainda me disseram que foi eu que contei pra eles. Mas isso já tá uma confusão, hein?
É, e eu não lembro de porra nenhuma.
E como era a história?
Era de um cara que ficava vigiando um rio.
Um rio?
É, ele não deixava as pessoas nadarem no rio, achava que

o ser humano poluía o rio, você nunca ouviu essa história, né? Bom, na verdade...
Então talvez tenha sido você que me contou.
Acho que não.
Deus Foi almoçar
Por quê?
Porque na verdade você me ligou e me contou essa história outro dia.
Droga, até você, Lourival?
Mas, Calixto, rapaz, é verdade.
Tá, acho que vou desligar.
Mas eu juro que você me contou.
Eu sei, eu sei, acho que estou perdendo o controle.
Bom, cê num quer vir aqui em casa tomar um café?
Acho que outra hora, vai fumar seu cigarro e...
Bom então tá, mas vê se relaxa cara, você tem que apren-

der a relaxar.
Relaxar? Lourival, sabe, tá tudo muito difícil, viver é como

administrar uma grande empresa, de todo lado é cobrança e quando alguém quer ler um livro ou ver um filme, não quer toda essa merda, sabe? Tô falando de sofrer, você quer rir, se emocionar, mas não passar para aquilo, o jornal das sete da manhã, cara, o jornal das sete já fode com tudo, não precisa o livro, o filme, ver o jornal é foder tudo, eles falam de impar- cialidade na notícia, de mostrar todos os fatos, quem mostra o que tá acontecendo de verdade, cara? Sabe... deixa quieto eu te ligo depois.
Calixto?
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Capítulo 29
Antes erA melhor que AgorA
Calixto, desliga a TV, você nunca vem dormir comigo, acho que não gosta mais de mim.
Para com isso, amor, eu amo você, só tô organizando mi- nhas coisas pra trabalhar amanhã.
Que qui tá passando?
Num sei, acabei de ligar a TV.
Nossa! Só tô perguntando.
E eu, respondendo.
Num vou mais falar com você, seu estresse humano.
É assim toda noite, fico imaginando o diálogo com ela e

fico olhando a casa deserta, uma paixão contida que não des- perta e de repente minha mente é uma porra de uma canção romântica, e tudo na casa é tão frio, nem a sombra velha de uma foto na estante existe.
Penso no meu pai, e na minha mãe enforcada, na última conversa que tive com o Lourival, ele estava tão chato, não podia demorar no fone, disse que tinha um almoço com o filho e a esposa, disse que tinha até uns convidados, tudo bem eu disse, mas foda-se era o que eu queria dizer, por que a gente é tão comedido, hein? Isso no final das contas deve gerar algum tipo de câncer, isso é o que mata a gente, aguentar humilhação, constrangimento.
Deus Foi almoçar
Eu nunca tive um almoço com os meus, eu nunca deixei de conversar com alguém que precisasse.
Ele não queria me ouvir, na penúltima vez culpou o ou- vido, disse que estava doendo, havia conversado com outra pessoa por muito tempo sobre um trabalho, isso era outra coi- sa, nunca se fala o que se falou, o medo da competição, como se tudo pudesse te prejudicar, merda de desculpa idiota, e eu tentei falar com ele, a resposta foi estranha, não queria ouvir mais, não queria saber, mas era minha mãe e ela não tem culpa da pouca força que teve com a morte do meu pai, ou por outro lado não teve culpa do excesso de força que teve, eu a admiro, ela escolheu o tempo, mediu o que tinha, e só tinha eu.
Nascer assim já foi difícil, uma perna, apenas uma perna, e quando contei para o Lourival acho que ele queria rir, por isso tinha que desligar, as pessoas não são sinceras mesmo, né? Fica tudo na mesma mentira, uns conversam para se autoafirmar, outros para prejudicar a imagem de alguém.
O Lourival... imaginou ele sem perna, teve que imaginar ele se fodendo mancando pra cima e pra baixo, com as pessoas rindo, des- de a época da escola, onde todas as crianças são cruéis, pois só falam a verdade, e a verdade dói muito, então ele se colocou sem uma per- na, e nisso pode ter dó de minha mãe, mas na sua mente minha mãe era um corpo de mulher com seu rosto, com o rosto de Lourival.
Os vizinhos estão lá fora, e eu não consigo sair do sofá, o piso foi instalado errado, está inclinado para a esquerda le- vemente, e o telefone está quieto, e a televisão está ligada, no mudo, pois as pessoas que estão ali não sabem o que falam, elas são fantoches, são marionetes mortas, que, de vez em quando, fingem ser vivas, mas só quando o tempo mexe as cordas, e eu me lembro de minha esposa, e eu me lembro de minha filha, os cabelos dela são tão lindos, mas não há ninguém para falar
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Ferréz
comigo sobre isso para que as lembranças não fujam, e elas sempre fogem, como um castigo para que nada sobre no final, a desconstrução de tudo que tem dentro da gente.
A minha casa era diferente, os móveis tinham os pés serra- dos, uma cômoda verde era onde tudo ficava guardado, meu pai tinha muitas coisas legais, um canivete com a lâmina ama- rela, e ele deixava tudo nas três gavetas de baixo, pois tinha as pernas curtas, minha mãe tinha só uma perna, e meu pai tinha as pernas curtas, e todo mundo ria de mim na escola, mas eu era normal, pelo menos fisicamente, pois sempre chorei quan- do ouvia aquela música, e porque beijei a minha primeira boca com 16 anos, ou seja sempre fui considerado um derrotado, embora eu soubesse que tudo era um grande plano para mim, enquanto muitos engravidavam as meninas eu me preservava para um bom casamento, enquanto muitos experimentavam o cigarro e depois viciavam, eu estudava cada vez mais, eu tinha uma meta de vida, e ela iria dar certo, afinal eu tinha meu pró- prio ritmo, ou achava que tinha, não vou pelo ritmo da massa.
A palavra bullying, na minha época, não existia, acho que inventaram isso comigo, nunca vi ninguém ser tão humilhado, nenhum menino tinha a atenção em socos e pontapés como eu tinha, tudo isso não me matou, mas também não me fortaleceu.
Lembro-me sempre de dois professores, uma da sexta sé- rie, a Fátima, não dava lições de geografia como tinha que dar, ela sempre falava da vida, do trabalho que dá viver, e de como deveríamos achar um rumo diferente do da multidão.
O outro era da quinta série, o Osvaldo, era muito politizado, me ensinou muito sobre divergência e sobre a merda de lava- gem que a religião está fazendo com todo mundo, me orientou a sair das dominações, me ensinou a tentar sair das grandes farsas, das ratoeiras para seres humanos, às vezes acordamos nelas.
Capítulo 30
mArcAs
Pego um velho casaco, pois parece frio, saio e não levo a chave, nada para apalpar no bolso da calça.
Cabeça erguida, um casal passa por mim, a filha de cabelo ruivo está no colo, parecem felizes, tenho saudades da minha pequena, do jeito que tudo está indo não sei se vou ver minha garotinha novamente.
Enquanto meus pés se mexem, a calçada desliza, vejo uma grande placa e um rosto nela, embaixo está escrito: A vida é um pesadelo do qual não se desperta.
Embaixo quem assina é um tal de Garret.
Corro os olhos pelo prédio ao lado da placa, um velho está sentando à frente, mas parece estar dormindo, cabeça baixa, pernas cruzadas, está em paz.
Caminhando, viro o quarteirão, desvio do lixo e agora já sei para onde devo ir e o que devo fazer.
Olho a placa acima da minha cabeça, preta com uma só palavra em vermelho.
Subo o lance de degraus, observando os antigos azulejos judiados pelo tempo.
Tinha exatamente o jeito de um tatuador, braços cobertos pela tinta negra, que a alguns metros não passava mensagem nenhuma, mas vista com mais detalhe formava desenhos.
Vou ao banheiro e nenhuma gota sai do pênis.
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Ferréz
Depois que olhei para seus braços, percebi o brinco e de- pois subi para os olhos, em alguns minutos ele saberia que eu queria pequenos traços.
Pequenos.
Mas como assim pequenos?
Curtos, somente em volta do pescoço.
Olha! Já vi de tudo aqui, já tatuei até em coisas inimagi-

náveis, mas pequenos traços em volta do pescoço? Bom! Vou explicar, eu quero pequenos riscos, que nem aqueles que você vê nos cupons promocionais, depois você vai fazer uma pe- quena frase.
Frase? Qual?
Em caso de emergência, corte na linha pontilhada.
Mas, cara, isso, essa frase vai correr na metade do pescoço. E daí? O pescoço num é meu?
Tudo bem, tudo bem, num precisa ficar nervoso, olha só

vou terminar uma sessão hoje, uma coisa nas costas, e só vou ter tempo pra você a partir de amanhã, irmão.
Foda-se, cara, quem disse que vou vir aqui amanhã? Eu nem sei se estou vivo amanhã, e irmão? Eu num sou seu irmão, pega sua tinta e enfia no cu!
Odiava isso, todo mundo era importante, você fala com um porteiro, e ele é importante, controla sua entrada e saída, você fala com um cobrador, ele pergunta se você tem trocado, você não tem e é um bosta, todo mundo é mais importante.
Agora aquele cara que fura os outros, que põe tinta na pele dos outros também é assim, tem que marcar hora, que se foda, eu ia sair dali orgulhoso, dessa vez não ia engolir, não ia deixar me embrulhar o estômago, eu falei na cara do filho da puta.
Foi legal ter falado aquilo, minha boca encheu de sangue de- pois do terceiro murro, eu tentava subir a cabeça para olhá-lo
Deus Foi almoçar
nos olhos, mas não conseguia, ele golpeava rápido, fazia tempo que não sentia aquilo, de certa forma foi bom, caminhei por mais duas ruas, cuspi o sangue umas dez vezes, depois passei por duas pessoas na calçada, notei que um bebia das palavras que o outro cuspia tão intensamente que sua alma devia estar com muita sede.
Uma rede na altura do céu que interligava as pessoas, você virou a rua? Deixou de conhecer seu grande amor? Recolocar pessoa amada na quadra três?
Porra, talvez um grande jogo, quem teria todas essas fichas? Máquinas de azar, cara, puras máquinas de azar.
Sorte minha, tropecei e a confusão se dissipou um pouco,

pelo menos por hora, minhas mãos estavam doendo, o frio chegava pra mim de forma estranha, talvez de uma forma úni- ca, mas também nunca comentei isso com ninguém, como sa- ber se era assim mesmo ou não?
As experiências que eu vivia ficavam armazenadas em mim, era ruim isso, é ruim isso, mas nem tudo podemos dividir.
Calixto viu a cena e vomitou. Sentiu o pingo como um raio, o líquido fétido, que seu nariz identificou ainda no começo da língua.
Viu a cena, como um espírito que saía de seu corpo, vo- mitou. Apertou os olhos, as mãos tremeram, antes de apoiar tentou mantê-las firmes.
Vomitou. Lambuzou o chão quando viu a cena. O casal se beijando, apaixonados.
Rumou pelas ruas, viu rostos distorcidos, corpos compri- dos, carros deformados, tudo perdera o padrão estético, anda- va e cambaleava, olhou para o céu e viu o chão, se deu conta de que estava de joelhos, levantou, apoiou num carro, a boca sangrando, o dono xingou, vagabundo não, estou passando mal, as pessoas esbarravam, ninguém ajudava, caiu.
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Olhou para o alto, dezenas de pessoas em volta, viram que ele estava vivo e saíram.
A vida não interessa a ninguém.
Capítulo 31
pApAi, você não disse que o mundo erA Assim
É como se Deus estivesse me olhando, prestando atenção no resto da frase, e embora nunca risse, ele me deixasse termi- nar a piada.
E a piada é como reconhecer o recheio, olhamos pro iní- cio, pro fim, mas nunca pro meio.
Chego em casa, finalmente desço do navio negreiro, onde tento não pegar os trechos de conversas, novelas, futebol, tri- vialidades para gastar tempo de vida, sei que sou mais feliz não ouvindo.
Calixto chega em casa, os cabelos da pequena estão repar- tidos em dois, um vestidinho deixa as coxas grossas à mostra, ela puxou a mãe, seus sapatinhos são azuis, ela ainda é um ser humano colorido, daqui a alguns anos vai perder a cor, vai ficar séria, desbotada, como todos.
Na cozinha, encosta o lábio na bochecha, beija Carol, con- versa sobre o novo emprego no arquivo, vai pôr água pro ca- chorro, recebe uma boa quantidade de ânimo e de saliva, mais que da esposa, toma banho, almoça o jornal e vê a comida.
Sobe, pega alguns livros, todos com a leitura interrompida.
A cama está arrumada, o lençol branco, os travesseiros com fronha azul, a colcha no pé da cama, deita e dorme.
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Acorda só, na velha casa, não tem lençol, o travesseiro sem capa é uma mistura de manchas de baba e de mofo.
Calixto está com um couro mais frouxo, sinal de que está mais magro, mais um dia longo, não há ninguém, o tempo passa, o vento prova isso, motos, pássaros, ruídos.
Prefere fechar os olhos novamente e viver outra vida, onde não está sozinho, ela está a seu lado, sua pequena, o sorriso vem em seguida, assim que os olhos negros identificam o ho- mem ao seu lado, seu pai.
Um vão de alguns milímetros mostra uma distância estra- nha de um dente ao outro, mas isso a deixa mais doce, mais perfeita.
Porque só somos capazes de enxergar algo tão maravilho- so de vez em quando.
Se pergunta que ser é esse que nos licenciou a viver, a sofrer na maioria das vezes, e de vez em quando por alguns segundos em anos notar algo de bom nisso tudo.
O mar nos expulsa com suas ondas, e nós insistimos que faze- mos parte disso, mas com ela nunca foi assim, desde que nasceu. Me toca como se eu valesse algo, me olha como se eu fosse
realmente importante, minha pequena menina.
Esse dias troquei sua fralda pela primeira vez, foi muito

engraçado pois ela saiu correndo com o bumbum cheio de coco, dando gargalhadas e olhando para trás como se dissesse:
Papai, aproveita essa vida vai, vem me pegar.
E eu me sentindo lerdo perante sua rapidez, peguei meus fragmentos de vidas, estilhaços de vitórias, pingos de mágoas, pó de traições, e naquele minuto misturei tudo e joguei bem longe, onde não pudesse mais me machucar.
Quem disse que eu consegui me mover? Fiquei parado, com meu velho jeans surrado colado ao chão, com uma leve
Deus Foi almoçar
brisa batendo em minhas costas, provavelmente vinda de algu- ma parte da porta da cozinha.
O vento é difícil de se segurar.
No banho já foi mais fácil, uma escova de dentes tirou tan- to sorriso que nada criado pela indústria de brinquedos, por mais sofisticado, teria tanto êxito.
O ser humano se endurece com o tempo, cria uma casca, e fica mais difícil de tirar algo feliz de dentro.
Quando ela fala mamãe, sempre puxando a letra e durante vários segundos, eu aponto para o quintal, recorrendo a algu- ma imagem que ela tenha guardado da mãe estendendo roupa, lavando o quintal ou mesmo sentada na imensa cadeira que um dia foi da sua avó, fazendo o que ela mais gostava: nada.
A minha pequena então se direciona para o quintal, en- gatinha um pouco e se apoiando na parede, levanta com as pernas abertas, joga o peso do corpo pra um lado e depois para o outro, um movimento que lembra um caminhar desses robôs japoneses, que sempre são mostrados como última tecnologia, mas a gente sabe que no fundo é uma coisa bem tosca e distan- te do que os livros de ficção um dia nos mostraram.
Quando a tinha em minhas mãos, eu a jogava ao alto, e quando a tinha sobre minha magra barriga, eu tentava fazer as batidas do meu coração entrar em sincronia com as bati- das dela, não sei se um dia tive êxito, mas era legal tentar, eu também balbuciava palavras para ela, palavras com um leve tom de música, pois nunca consegui cantar nenhuma canção real.
Tempo muito bom, o melhor que já passei, diferente de outros tempos em que as coisas são tão confusas, me ape- go a esses restos de lembranças, mas não consigo fazê-las parecerem reais, cada vez mais é um sonho distante, onde
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a gente vai perdendo detalhes cada vez que abre a gaveta do passado.
Levanto e procuro o roupão, mas não acho, alguém o roubou.
Calixto levanta e procura o roupão, por um momento pen- sa que alguém o roubou, mas insiste em cutucar as roupas jo- gadas no fundo da cama e acha.
A água vai limpando além da sujeira do corpo, também tira seu ânimo.
Deita e por alguns segundos olha o teto.
A cama parece menor, vai até a televisão, ia virar o seletor, desiste, decide lavar o rosto, ouve uma mulher reclamar, pode ser a vizinha, não se interessa.
Vou à TV, mesmo antes de lavar o rosto vou à TV, ligo, preciso parar de pensar.
Uma mulher se lastima, desgosto, desespero, desemprego, desequilíbrio, muitas palavras com d, o rosto dela já mostra o que ela é. Do lado um pastor, ele fala em fé e fala na família.
A cidade fez comigo o que a cidade fez com os brancos pobres e falidos na época de Palmares, os que foram tentar morar nos quilombos.
Se o jogo é esse eu aceito, vou tentar permanecer digno, se ainda der tempo.
Saio para comprar pão, a mulher do quintal está com a mangueira na mão, quintal limpo, ela me olha, eu abaixo a cabeça.
Fico na fila, a balconista não tem vida, dá para ver em seus olhos, com uma maquiagem terrivelmente forte, tentativa de esconder a dor.
Pior que viver é viver para os outros.
A mulher na minha frente tem alguma disfunção hormo-
Deus Foi almoçar
nal, tem algo bem bonito em seus olhos, olho sua bunda por alguns instantes, mas volto para os olhos.
Calixto encosta no balcão, uma mulher à sua frente o deixa irritado, ele nunca gostou de exageros, magreza demais, gordu- ra demais, para ele as coisas tinham que ser mais equilibradas.
Isso o irritava desde pequeno, e ele não se lembrava mais da tia gorda que chegava todos os domingos à sua casa, aper- tava suas bochechas, ameaçava pegar na sua bunda, dizia que ele estava virando hominho, ele não lembrava, mas a mulher à sua frente o irritava.
Chegou minha vez, tento escolher um pão em que alguém da fila antes de mim não tenha posto a mão, missão difícil, acho um, pelo menos eu não vi esse ser tocado, o véu que co- bre os pães é um aeroporto de mosquitos.
Às vezes, olhamos e não vemos, se vemos não notamos, se notamos não ligamos, se ligamos não expressamos.
A máquina de fazer o bom cidadão foi ligada, eu retornei à minha morada, sem pílulas, sem álcool, sem nada, somente com a realidade ao meu lado.
Volto e não tem o café pronto, acho que ela saiu, acho que ela saiu bem cedo, tenho saudade dela, tenho vontade de bei- jar seus cabelos, seu lindo rosto, seu queixo pontudo e delica- do, com pequenos pelinhos que só quando o sol bate eu vejo.
Eu mesmo preparo o café, eu mesmo tomo o café, eu mes- mo mastigo o pão, e eu mesmo ligo a TV novamente. Penso em Lourival, mas não ligo para ele.
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Capítulo 32
meu pAssAdo
O tempo não espera, pior que acordar todos os dias ouvindo a gritaria lá fora é acordar todos os dias com a mesma frase na cabeça. Calixto abriu os olhos lentamente, as frestas da janela dei-
xavam os finos raios de sol vazarem e invadirem o quarto. Talvez comprasse pão, talvez não.
Encontraria ela, talvez trocariam algumas palavras, a mu-

lher lavando o quintal.
Abriu a geladeira e tomou um pouco de leite frio, se tivesse

mais coragem talvez tomasse um banho gelado e fingiria estar embaixo de uma grande cachoeira.
Abriu a gaveta do armário e viu algumas páginas, resolveu sentar no sofá e começar a ler.
Página cinco, nada para ler, está em branco.
Um vento derrubou algo lá fora, só escutei a pancada que ele provocou, talvez uma telha, um pedaço de madeira, talvez um menino pulando a janela da vizinha por um pequeno to- que labial, um beijo.
Vou para a página seis, sequência estranha, literatura sem sentido. Acho melhor dormir, talvez um café quente, mas aí até ferver é outra briga contra o cobertor que cobre minhas pernas. Outro barulho lá fora, o que será que está havendo?
Deus Foi almoçar
Calixto folheia um mapa do Canadá, sempre teve fascínio por esse país, quando pequeno ia nas bancas e comprava revis- tas ou artigos relacionados.
Vários livros lidos, várias conversas tidas, e todo mundo indicava outro país, para que ir pro frio? Para que quer ir ao Canadá? Calixto não sabia, não se lembrava, mas o mo- tivo era uma conversa de seus primos, quando ele tinha 6 anos de idade, ouviu uma conversa sobre o país e guardou isso por todos esses anos, como aquela coisa secreta, uma esperança assim meio sem sentido, que sempre guardamos quando tudo fica difícil.
Enquanto pensava, Calixto colocava o dedo indicador de encontro ao polegar, ia esfregando, esquentando a pele até ela se romper, as pessoas notavam quando passavam, mas já esta- vam endurecidas demais pela cidade para parar e perguntar se podiam de alguma forma ajudar.
Mas não vai dar certo, nesses países eles não deixam a gen- te ficar na rua, põem a gente num abrigo, dão banho, comida e até um salário, pelo menos foi o que me disseram, um salário, pode? Aí começa tudo de novo, a socialização, a batalha por um lar, mania besta dessa gente, querer uma casa, se matar para ter uma propriedade, no momento eu queria ter mais um maço de cigarros.
Calixto não acreditava no que estava lendo, uma história muito malfeita, e isso não fazia sentido já que Lourival disse que o autor era bom. Talvez estivesse realmente mergulhado na história, talvez os últimos acontecimentos de sua vida não fossem reais, e foi nesse pensamento que lhe veio a imagem da mulher, e de sua pequena filha, quanto tempo ele podia ter de- dicado a elas, quanto tempo perdido trabalhando, e a pequena esperando, brincando sozinha.
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Ferréz
Mas então um estalo lhe acometeu, saiu desesperado pela casa, foi para a sala e começou a revirar tudo, abriu velhas caixas com cartas, abriu uma por uma, os olhos passando rapi- damente pelos papéis, procurando um nome, uma frase, mas a cada carta lida sua decepção aumentava.
Desistiu da primeira caixa quando ainda estava pela me- tade, foi até a outra caixa com fotos, revirou todas, os amigos num sítio, festas de final de ano, o que parecia um lançamento de livros, um show de rock com outros amigos, mas não en- controu o que estava procurando, e as fotos acabaram e sua mulher e sua filha não existiam em nenhuma delas.
Passados alguns segundos, Calixto começou a sentir sono, deitou no chão, perto das caixas e adormeceu. Acordou, ti- nham se passado várias horas, foi à geladeira, pegou uma garrafa de água gelada e foi para o quintal, procurou uma sombra, seu rosto mostrava a confusão em que se encontrava, afinal sua testa parecia cair sobre os olhos. Sentou, levou a garrafa à boca e deu várias goladas na água, depois começou a reparar o jardim e viu um teclado jogado perto de um pé de rosa, ficou olhando por alguns segundos.
A mangueira molhava seus pés, continuava lavando o quintal, via sujeiras nele, restos de coisas, pedaços de coisas que não mais eram usadas, parecia que todo mundo que passa- va por ali jogava algo, palito de sorvete, embalagem de balas, latinha de cerveja, ela recolhia tudo aqui com raiva, raiva de limpar lixo dos outros, será que não viam que aquele lugar era a casa de seus cachorros, se soubesse que sua vida seria assim, não teria nunca insistido tanto para seu falecido marido com- prar aquela casa, que ficava em frente a uma escola.
A mangueira molhava seus pés, a sensação era boa, a mes- ma de quando seu filho brincava de pirata naquele quintal, e
Deus Foi almoçar
também molhava tudo à sua volta, a mãe adorava vê-lo sorrin- do, sem camisa, todo molhadinho, com seus cabelos negros, igual ao pai, que um dia ela tanto amou.
O pequeno gritava, cuspia enquanto fazia os efeitos dos tiros de canhão, e parecia que estava com alguém o tempo todo, pois de vez em quando parava e parecia estar escutando outra pessoa.
Alguém que lhe ensinava a brincar, hoje enquanto lavava o quintal lhe batia aquela dor de novo, como em quase todos os dias, a dor de não sentar com ele, de não pegar um pirata e fazer aquele efeito também, de não jogar água no navio, de não abraçar, de não demonstrar o tanto que amava seu peque- no menino.
Ela olha e vê o homem magro passando por seu portão no- vamente, suas lembranças fogem com a velocidade do vento.
Calixto sentiu o vento gelado, devia ter pego uma blusa, olhou a padaria e decidiu não entrar, estava muito cheia, co- meçou a voltar para casa, viu a mulher dessa vez ela não lava- va o quintal, somente olhava para a frente do portão.
Ela tinha uma boca tão macia.
Calixto parou por alguns segundos, achou o rosto dela

terrivelmente triste, mas não teve coragem de dizer nada, deu mais alguns passos, logo à frente um homem o cumprimentou, o que foi uma desculpa para logo ir falando.
Tadinha, nunca fez mal pra ninguém, e as pessoas fazem isso, a bichinha não merecia.
Calixto não queria perguntar, estava tentando ir para casa, e o rosto da mulher do quintal não lhe saía da mente, mas perguntou.
Ela quem? O que aconteceu?
A cachorra, tadinha, foi envenenada, quem faz isso com o bichinho não tem que estar entre nós.
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Calixto entendeu então o rosto da mulher do quintal, ela havia perdido sua Samira.
Abaixou a cabeça, os ombros caíram, passou a mão no bolso, puxou um cigarro do maço, acendeu e pôs entre os lá- bios, alguns passos e chegou em casa.
Pra falar a verdade já não entendia mais, as notícias dos telejornais não eram novidades, estava confuso, coçava a ca- beça quando isso acontecia, as mesmas notícias de ontem, e de antes de ontem, o âncora falava e ele terminava as frases do outro lado da TV, eram vinte e um mortos naquele acidente e eram dois em estado de emergência por causa da tempestade, começou a pensar como sabia disso, será que realmente o jor- nal estava se repetindo ou ele havia atravessado o portal?
Não conseguiu parar de olhar, há alguns segundos pisou nos tacos soltos do quarto, eles parecem fazer uma estranha sinfonia quando alguém pisa.
Os olhos estão fixos, não sabia por que, comprou, mas desde que viu pela primeira vez a boneca, modelo comum, careca, barriguda, branca de olhos castanhos e uma grande chupeta branca que lhe cobria os lábios.
Feições humanas em objetos sempre o deixavam nervoso, não sabia ao certo o porquê, e não pensava muito a esse respeito, mas como encarava a boneca também sentia estar sendo encarado.
Estou esperando minha pequena para dar a boneca, quan- do ela vier aqui em casa, a gente vai passear, tomar sorvete, e depois vou lhe dar a boneca.
O que estaria uma boneca fazendo em cima da cômoda, as respostas não existiam e ele começou a imaginar a pequena correndo pela casa, vivia tropeçando nos tapetes e sua mãe se abaixava e pacientemente arrumava um a um. Depois se levantava, punha as mãos na cintura e olhava com aquela cara
Deus Foi almoçar
de brava – deixa ela correr, é tão bonitinha. Então a imagem se dissipou como uma coisa boa que dura pouco.
Estava na porta, a chave na mão, alguém passa e lhe ofere- ce a palavra de Deus, ele pega, ainda no impulso, o mensagei- ro para, estufa o peito, vai pregar.
Calixto devolve o panfleto, diz para o homem nem come- çar a gastar saliva, fala que aquele panfleto veio de uma gráfica e não de Deus, diz que aquelas palavras vêm de alguém que esta precisando pagar contas e não de alguém santo, o homem se espanta, geralmente não é assim, não foi assim que o pastor disse que seria, era entregar o panfleto, citar passagens do fim do mundo, dizer que era hora do arrebatamento e guiar a cria- tura para a igreja.
Palavras jogadas fora, pontos de vistas não trocados e cada um seguiu sua caminhada, Calixto entrou dentro do arquivo e se encaixou dentro de uma pasta.
Ligou a caixa que traz mentiras e mudando de canal tinha a opção de ser salvo ou comprar mais algo inútil e se sentir satisfeito por mais alguns minutos.
Ter um carro novo em 70 parcelas ou mesmo camisas da Fascynius.
Os olhos não conseguiam ficar parados, eles viam além das ofertas, além das ilusões, eles viam a maquiagem, o texto decorado, as risadas no final do culto, ou mesmo o olhar triste da faxineira que nunca poderá comprar os comprimidos mági- cos para emagrecer. Nem seu marido que é segurança do set de filmagem do novo filme gravado naquela velha cidade poderá comprar a palavra de Jesus traduzida passo a passo, versículo a versículo interpretado.
Agora não dá, o apresentador está mais para palestrante, escritor de livro de autoajuda do que pastor, mais para empre-
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sário do que homem de Deus. “Uma das obras mais completas do mundo.” Os olhos do segurança não viam livros impressos a 7 dinheiros e vendidos a 128 dinheiros, os olhos só veem a tão procurada salvação.
Lembra de Matheus 6:25-36, e sabe que, se tiver os livros, terá a palavra e com ela tudo que quer se realizará, logo que a ler. Abrirá a boca e receberá tudo que quer. Treze volumes, sete do Antigo Testamento e seis do novo, a Bíblia versículo a versículo por 1.555 dinheiros, mas ele só ganha 650 dinheiros e as despesas de casa consomem tudo, hoje ele vai ao culto e vai pedir condições melhores para poder comprar esses livros que o tirariam dessa realidade.
Talvez sonhar mais, vencer na vida, hora extra, trabalhar aos domingos, fazer carga dupla, a caravana a Israel, talvez um dia fosse ao congresso dos pastores.
É preciso de dinheiro para ter as coisas, e dinheiro tam- bém para ser salvo.
Desliga a TV e apaga as luzes do escritório, tranca a casa e vai numa direção não tomada antes.
Calixto entra, também quer pertencer a algo, fazer parte de uma coisa maior.
Eu saio, aqueles bancos de madeira e aquela imagem não vão me ajudar, já pedi muito e tudo continua igual, sei que existem mil desculpas, jargões para isso, como se eu não tives- se fé de verdade e sem fé essas coisas não acontecem, mas não quero ficar discutindo cada detalhe do que creio ou não, só saiu, como quem sai de um bar, como quem sai de casa.
Saiu da casa Dele, saiu e vou para a rua, onde homens vão ter suas histórias mais bem contadas quando morrerem.
Ando por uma meia hora, o tempo está fechando, em frente à casa da mulher do quintal nenhum movimento, ou ela saiu,
Deus Foi almoçar
ou está trancada lá dentro, com seus pedaços de lembranças. Sua boca é tão macia.
Olho a papelaria, poderia ir lá e comprar um caderno, tal-

vez escrever um diário, olho por alguns segundos para os pa- ralelepípedos e noto que entre os vãos tem algo verde nascen- do, a cabeça baixa talvez tenha me feito refletir também sobre minha total falta do que fazer, não atravesso, não me viro, não subo a cabeça, não quero mais ficar ali.
Minutos depois estou na porta da minha casa, agora sou amigo do vento, sinto seu toque, talvez ele goste de mim assim como o espelho. Não, acho que o espelho já esqueceu meu rosto a essas horas, penso em entrar, sei que o portal me espera, já estou no labirinto há dias, é claro que vou chegar a algum lugar.
Entro.
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Capítulo 33
o velho
Hoje discuti com Hamilton, está difícil esses dias, ou me- lhor, estou difícil, é uma coisa complicada, mas talvez não seja com ele, seja com a raça dele, a raça humana, meu problema pode ser de convívio, há dias não falo com ninguém e nem te- nho essa vontade, meus dentes estão ficando moles, meu cabe- lo parece mais branco, fico muito tempo me olhando, notando as rugas, parece que tudo leva a me fazer atravessar o portal.
Esses dias me vi, olhando para o nada, sentado na velha cadeira, sem motivação pra pensar.
Lembro-me de Lourival me perguntar se esse sonho com a menina não tinha a ver com a falta que eu sentia da minha filha, que eu devia ir ver minha pequena, eu lhe disse que não queria mais que ela visse o que eu estava me tornando, um pai fraco, demente, sem condições de dar o melhor para ela. Ele retrucou, disse que ela me amava, eu não queria mais discutir com ele, Lourival não sabe de nada, ele não tem filho.
A faca que me cortou, fui eu que a afiei, era o que a menina repetia para mim nesses dias, tenho sonhando com ela bastan- te, ela é minha única companheira agora.
Olho para Hamilton, ele também me olha, não falei com ele o dia inteiro, nem respondi suas perguntas, ele parece assustado, será que sou eu que estou causando isso, passo a mão no rosto,
Deus Foi almoçar
está molhado, vou ao banheiro e lavo, enxugo com papel higiêni- co, saio e tenho um endereço anotado num papel em meu bolso. Hamilton me entregou o recado logo pela manhã, eu pe-
guei e guardei no bolso, fui ao banheiro para ler.
“Se quiser saber a verdade, venha no endereço abaixo, e

descubra o que tanto procura. Assinado Gilmar Flores.”
Rua Rosshalde, número sessenta e quatro, Centro. Naquele dia ele saiu à procura, o objetivo era um só, achar

o endereço.
O local parecia uma antiga área industrial, galpões de tijolos

vermelhos, janelas fechadas, coifas, calhas, papelões na calçada. Parou o carro numa das esquinas, puxou um cigarro e acen- deu, olhou o nome da rua, andou mais duas quadras, Rua Ros- shalde, mais um quarteirão, passou por uma casa que agora é um depósito de reciclagem, ao lado, uma pequena casa, toda coberta com azulejos azuis, uma porta branca, nenhuma janela,
no muro o número sessenta e quatro.
Parou e começou a bater palmas.
Um senhor saiu pela porta, parecia alguém conhecido,

mas ele não se lembrava, o senhor chegou no pequeno portão. Pois não?
Boa tarde senhor, meu nome é Calixto, eu recebi um bi- lhete no meu serviço, dizendo para estar aqui.
Desculpe, meu filho, não estou entendendo.
E o senhor apertou os olhos, como se quisesse reconhecer Calixto.
Bom, eu sei que é meio estranho, mas o bilhete dizia que eu devia vir aqui nesta rua, e neste número, aqui é o sessenta e quatro, não é?
Sim, filho, aqui é, há 38 anos temos esse mesmo número, mas não marcamos com ninguém, sinto, mas é algum engano.
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Ferréz
Mas não pode ser, me mandaram vir aqui.
E Calixto se agarrava a algo que pudesse sair da boca do velho, talvez o que saísse explicaria tudo, o sumiço de sua espo- sa, a falta de contato de sua filha, o sonho com a menina e suas mensagens, o homem do chapéu azul, por que a mulher sempre lavava o quintal, mas nada saiu da boca do velho a não ser:
Sinto muito filho, segue seu caminho, quem sabe você pode achar por aí um outro portal.
Calixto ficou paralisado, o velho virou as costas e entrou, Calixto ouviu bem, um outro portal, o velho tinha mandado ele procurar um outro portal.
Quando era pequeno, o velho agia como os pequenos, al- guém que agora ele só vê em uma memória com um corpo, mas sem rosto.
Seu tio levou o menino àquela montanha, o pequeno tocou nas pedras, as lascas de pedras, que reluziam quando o sol ba- tia. O brilho das lascas de pedras nunca saíram de sua mente.
O velho sentou, sabia que sua montanha era seu passado e talvez seu destino. A bermuda marrom sem barra, a camisa antes branca, longe do que depois se tornara, um piloto da es- quadrilha da fumaça, foi ao guarda-roupa, olhou seu uniforme azul, pegou o chapéu, passou a mão e tirou uma fina camada de pó, colocou na cabeça, foi ao espelho e se viu, imponente, sério, sem rugas, sem marcas, sem vergonha.
Calixto continuou a caminhar, saiu em outra rua bem me- nor, se afastou da casa do velho, não conseguia entender, pa- rou num ponto de ônibus e foi engolido por um ônibus, uma hora depois estava no seu bairro, chutou algumas pedras e pa- rou em frente ao portão dela.
Não sabia de fato o que estava fazendo, mais por impulso do que pela razão.
Deus Foi almoçar
Estava com a mão dela na sua, trêmula, mas era a mão dela. Não pediu em casamento, nem namoro, só em companhia. Quer ser minha companheira?
A mangueira se mexia no chão e a água jorrava pelo limpo quin-

tal, os anões de gesso olhavam e, como sempre, pareciam sem vida. Um rapaz passou do outro lado e achou bonito, os coroas
ainda tinham lenha para queimar?
Como antigamente, né, assim bem romântico, o que você

pretende com minha filha?
Todos riram na sala e de repente eu tinha sete anos e nota-

va aquela menina gordinha com os olhos totalmente negros, os braços dela quando já tinha dez anos tinham pequenos fiapos, eu repeti na escola por três anos para acompanhá-la, apanhan- do todo ano com uma cinta de couro.
Mas foi o Itamar que ficou com ela, beijou sua boca e tal- vez um dia tenha contado estrelas ao seu lado.
Vocês vão namorar sério?
Pensei em responder que iríamos matar um ao outro e isso seria bem sério, mas respondi sim e pensei na lápide, pensei na babá que nunca tive, no gibi do homem de aço que não li e na BMX que eu nunca andei, a marca da pantera ficou em mim. Eu gostaria que ela ainda me quisesse, mas estou sentado no sofá ao lado de uma menina que um dia pode ser minha esposa, e isso se eu disser alguma coisa que eu não quero dizer.
A mangueira continuava a espirrar, a calçada continuava a ser molhada, ela me olhava, então, antes que sua boca se me- xesse, que sua língua se contraísse, que ela dissesse sim ou não, larguei a mão dela, saí correndo, como se corre para viver, como se corre para não viver.
No caminho, enquanto corria, lembrei que deixei o carro no Centro, quando fui ver o velho.
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Capítulo 34
eu vivo dentro do sonho de outro
Sistemático, até no banheiro, ele sente o atrito, sentado no vaso, onde coxas se apoiam e o resto fica vago, lê o informe de um frasco de sabonete líquido, em que está “traz equilíbrio e harmonia”, não acredita, como um sabonete pode crescer ao ponto de ousar pôr em seu frasco a palavra equilíbrio. Devia estar escrito: tira o fedor das mãos.
Tudo é atrito para Calixto, que aprendeu a mexer com pa- lavras logo cedo, quando ainda era um anão.
Hoje sente vontade de sair direto do pedaço frio de cerâ- mica, queria sentar no gramado com ela, pegar em sua mão, lhe dar um leve beijo, não ter que disputar com cachorros nem atletas preocupados com o tempo. Queria simplesmente estar em paz com ela no gramado, e no íntimo da sua solidão poder ter algum momento de felicidade.
Pega o telefone, larga novamente e procura sua carteira, cai no chão, pega do chão e abre, dentro tem um número, ele olha e disca, talvez o número nem exista mais, talvez ela nem exista mais, alguém atende.
E aí quanto tempo?
Quem tá falando?
Sou eu, Calixto, lembra mais, não?
Deus Foi almoçar
Ah! Poxa vida, o que te fez ligar?
Tô com saudade, sabe?
Legal, você está bem?
Pra falar a verdade não estou não, tô me sentindo sozinho. É, eu também, apesar de tudo.

Tudo o quê?
Nada não, Calixto, te falo pessoalmente.
Lavou as partes íntimas com cuidado, sabia que ia rolar alguma

coisa, usou xampu nos poucos cabelos, foi ao espelho e resolveu aparar o cavanhaque, cuidadosamente removeu os pelos que não o deixavam ficar reto, aproveitou e fez as costeletas, e também de quebra deu um trato nos pelos do nariz, não eram abundantes, mas ela podia perceber, olhou para os pés, nunca lavava os pés, por eles só escoava a água e o sabão, pegou o pé direito, lavou a sola, sentiu uma cócega, deu um sorriso pequeno, lavou dedo após dedo, até o mindinho, que tinha pouca carne, foi lavado, se sentia bem.
A companhia tocou, desligou o chuveiro, sabia que era perto, mas não imaginava que viria tão rápido, para se arrumar ela de- morava bem mais, a não ser que não fosse ela, mas tinha que ser.
Pegou a toalha, calçou o chinelo, se enrolou e ainda deu tempo de vestir a camisa, a toalha fazia o papel de calça, passou a mão pelo pênis novamente e cheirou, estava com um cheiro bom, abriu a porta, linda como nunca, lábios tão vermelhos que parecia a própria pele nua, ainda trazia ao corpo uma saia justa, imitação de couro e uma camiseta verde-musgo, só quando lhe deu um beijo na face notou a jaqueta de couro na outra mão.
Sentaram no sofá, conversas, sorrisos, olhares, olhares. Ele pegou em sua mão.
Preciso te falar uma coisa, Calixto.
Ahãn! pode falar, o que é?

Bom, tenho que ser sincera, eu, sabe... eu sou casada.
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Ferréz
Tirou a mão, pensou em dispensar, inventar uma desculpa, sa- bia dos problemas, talvez a cobrança na hora mais errada, talvez uma surra, ira, palavrões, assassinato, mulher casada trazia tudo isso.
Mas se sentia só.
Ela lhe falou dos problemas de estar casada, ele já sabia de quase tudo, mas, mesmo assim, mostrou surpresa, o tesão faz essas coisas.
Olhando para ela, agora a imagem da mulher que sempre lavava o quintal na mente, também o homem com boné de pi- loto, a menina do sonho, partículas e mais partículas de coisas surgiam agora, como se tudo fosse um grande quebra-cabeça.
A boca continuava se mexendo, os joelhos eram um par lindo, quase não dava para distinguir da coxa, nem parecia que havia articulação, ela o tocou, conversando e mais um gesto de intimidade, ele ficou um pouco tenso.
A boca encostou, tremeu, mas fingiu retidão. Os dedos pelas costas, a massagem no mesmo ritmo do movimento da língua, a descida para as nádegas, as mãos dela eram mais sensíveis que o beijo, e só acariciavam o rosto, uma perto da orelha, a outra mais perto do pescoço, ele subiu, passou a acariciar o cabelo, nos anos de treino aprendeu que o cabelo era a peça fundamental.
Ela reagiu, agora os seios estavam em evidência, os apal- pou como um par de belas maçãs, casada, foda-se.
Gostosa, ofegante, macia, cheirosa, casada, foda-se. Ela pe- gou a bolsa, tirou o óculos e os colocou, ficou mais linda, o pênis ereto ele tentava disfarçar, a calça não ajudava muito.
Sou sua secretária, você meu patrãozinho?
Não faz isso, aí é demais.
Demais nada, patrão, acho que errei o relatório, tenho que

ser castigada. Calixto olhou a bota, passou a mão, tirou e co- meçou a chupar seus dedos, a deformidade não existia, como
Deus Foi almoçar
da primeira vez ela se sentia muito bem, não precisava escon- der o que era.
Calixto lutou por uma pausa, foi ao banheiro, ela sentada no seu pequeno quarto, ao lado dele.
Pegou um cigarro, desistiu, continuou ouvindo suas angústias, suas lamentações, seus medos, dúvidas, se tocavam, e os olhares ficaram sérios, e os corações aceleraram, e a pele se juntou.
Calor, calor demais para um quarto tão pequeno, calor intenso, dedicado, demorado, não rápido como do seu marido, que vivia fazendo e saindo, como se o amor fosse um tipo de campeonato. Com Calixto não: foi calmo, temperado, paciente, carinhoso.
Casada, foda-se.
A bota a deixava mais alta, ele colocou o calçado nela no- vamente, beijou o couro e subindo beijou seu sexo, ela apertou sua cabeça, ele quase sufocava.
Se levantou, ela virou de costas, ele começou a lamber sua nuca, depois desceu para as costas, e então suas nádegas, ela tre- mia toda, então o jogo virou, ela tocava seu saco, e com os lábios mordiscava as costas, o ritmo foi aumentando, era casada, foda-se.
Esfregava e bolinava o saco com força. Era casada, abai- xou e olhou o pênis de frente, mordiscava e passava a língua um pouco antes das nádegas. A filha da puta era casada, agora ele podia sentir os bicos dos peitos nas suas coxas, subiu e co- meçou a lamber sua nuca novamente. Ele estava sendo usado, como uma estátua, como um boneco de borracha, ela pegou sua mão e o fez tocar a bunda. Ele sentiu a pequena abertura, ela agora alisava seu peito, chegou perto de sua orelha e falou:
Vou te chupar. Desceu novamente, o pênis iria explodir, Me- linda passou a língua levemente em torno, beijou o saco, mor- discou as coxas, e num ato final mergulhou a boca no mastro.
Calixto conseguiu segurar por dois minutos.
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Capítulo 35
A esperA
O dia demorou a passar, teve que beber seis cervejas para ajudar o tempo a correr, parecia que Hamilton não havia perce- bido, assim como ele também fingia não perceber os atrasos, e aquele cheiro de mato queimado que ficava às vezes no banheiro, os olhos vermelhos de Hamilton, podia jurar que era maconha.
Mesmo assim o dia foi longo demais, Calixto sabia que seu trabalho estava no limite do suportável, que sua vida não seria aquela por muito tempo.
A calçada cheia de ambulantes o fazia andar mais. “Quem é que quer verdura? Quem quiser pode falar.”
A música não para de passar, sempre a mesma frase, acom-

panhada por dois corpos que jogam sinuca, a TV faz seu papel, dá a tranquilidade suficiente para anestesiar.
Uma caneta se movimenta, numa folha de caderno arran- cada e dada pelo balconista, que tem muitos copos para lavar, mas só pensa na morena que alisou a noite inteira e no final deixou escapar, cervejas jogadas foras, mijadas em outro ba- nheiro, talvez de uma boca que beija melhor.
A caneta continua a se movimentar, e paciência agora não está mais como antes.
Deus Foi almoçar
Corpos passam em motos, corpos passam em carros, com muitos corpos se faz a massa, é o que define Calixto, que não sabe mais o que daria rumo na sua vida.
Enquanto a mesa de plástico com o logotipo da cerveja balança muito para abrigar embalagens e vidros que devem ser manipuladas por pessoas que adoram o álcool. No afã de conversas que certamente irão levar ao passado, a turma da escola, o primeiro beijo, ou pra fugir do estereótipo o melhor beijo que um corpo já deu em outro.
Nesse momento, um jovem olha para ele, parece contar as cervejas na mesa, Calixto finge não notar, pega um ci- garro e acende, o jovem tem uma caneta na mão, e acelera como se fosse algo que ele soubesse mais, uma experiência talvez já guardada há muito tempo para ser passada agora para o papel.
Um ambulante sai correndo, homens de azul o perseguem, derrubam, batem, chutam, humilham, as pessoas continuam a passar, Calixto fica parado, o homem agora é arrastado, suas coisas estão espalhadas pelo chão, Calixto fica parado, as pes- soas passam, não é com elas, não é sobre elas, não tem a ver com nada delas, o homem é jogado no camburão, antes leva mais um chute na cara, ele votou no atual prefeito, Calixto pega o copo de cerveja e bebe.
Agradece ao dono do bar, paga e compra mais um maço, co- meça a ir para casa novamente, o nome de Melinda lhe vem à mente, e o rosto da mulher que lava o quintal, o nome de uma e o rosto de outra, não consegue compreender e enquanto caminha lhe vem a vontade de ser outra pessoa, sabe que o tempo é uma farsa e que serve somente para ser desperdiçado. Está condenado e disso ele tem plena certeza, está cumprindo pena de vida. Para em frente à casa, hoje ela não está lavando o quintal, mas nota o chão
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Ferréz
ainda úmido, chegou atrasado, melhor assim, depois da vergonha desses dias, nessa hora o tempo se torna útil, muito útil.
Um dos cachorros o encara, então uma frase sai de sua boca.
Não vejo a hora do meu cabelo cair, de ficar careca to- talmente.
O cachorro continua a observar.
O cachorro agora abaixa uma das orelhas, como se com- preendesse.
Calixto olha e imagina o cachorro de cadeira de rodas. Um pequeno avanço para frente e o rabo começava a abanar.
Agora se imagina numa cadeira de rodas; as pessoas em volta comentando, com dó dele.
Compraria uma muleta, talvez um andador. Começa a rosnar.
Tenho vontade de ter um furgão, o imagino cheio de san- gue, pegaria quem eu quisesse no meio do caminho.
O cachorro finalmente late, Calixto se afasta e vai em di- reção à sua casa, não verá ela naquele dia, é assim mesmo, as pessoas só estão vivas quando você está com elas.
Sozinho ninguém existe.
Chega em casa, chuta um copo no chão, já não arruma nada há dias, pega uma bituca de cigarro na cadeira, acende, vai puxando a fumaça enquanto vai ao banheiro.
Mija, mais no chão do que no vazo, sacode o saco, solta o elástico da bermuda com tudo em cima, mesmo assim, sente a umidade dentro da cueca, joga a bituca no vaso.
Deitado, fecha os olhos.
Por mais que tentasse, não parava de imaginar o caixão comprido, o rosto familiar dentro dele, rodeado de rosas bran- cas, o fino véu, tudo estava ali.
Minhas gotas caindo como respingar da cachoeira que nunca tive tempo de ir com ela, como eu odiava aquilo, aquela
Deus Foi almoçar
imaginação doentia que não tinha controle e no meio disso tudo vinha o medo de entrar no portal, como se meus pensa- mentos não estivessem já lotados demais.
Quando uma flor morre, nasce outra no lugar.
Por segundos, eu não penso.
Quando uma flor morre, nasce outra no lugar. No fim, são

as mesmas histórias: uma folha limpa, mas repetitiva. Um fil- me visto, é no fundo a história do meu vizinho, alguém que amou alguém e se feriu por isso. Alguém machucado, tentando parecer bem. Um desaparecimento, um reencontro.
O mundo é um filme infantil na mão da mesma criança que todos os dias, durante todos os meses do ano, aperta o play e deixa o enfadonho show da vida continuar, cada vez que essa criança assiste, ela vê de uma forma nova e só isso é a graça de se morar na vida.
Sai para a rua, vai comprar cigarro, passa pela casa da mu- lher do quintal, ela não está, ele tem vergonha, pegou em sua mão e saiu correndo, como iria explicar isso, foi quando notou o pedreiro no quintal.
O pedreiro alisa e faz o acabamento, tudo que a esposa dele não faz dentro de casa.
Passa para a massa.
O carinho deixa o serviço perfeito, o pequeno elevado, e a churrasqueira feito com tijolos aparentes era a conquista de uma mãe.
O filho estava afastado há três anos, para evitar algum tipo de encrenca, já que o bairro era perigoso, não que ela visse algo de violência.
A televisão vivia falando, os policiais viviam passando e encarando a todos que algo de mal deviam ter, então a vonta- de era bem simples: que o filho comemorasse com seus amigos
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naquela laje, que ficasse seguro em volta daqueles pilastres, que assasse carne naquela churrasqueira e que quando tivesse cansado de tanto festejar, deitasse no sofá, e dormisse, porque na rua era perigoso demais, e com certeza ela passaria um café bem fresco para ele e iria acordá-lo com um beijo, e ele diria: O velho café da mamãe.
O quintal estaria limpo para ele chegar e brincar com os anões, assim como quando tinha 2 anos de idade.
A viúva iria adorar, e cada dia imaginava uma cena nova para o acontecimento, mas o dia da visita não chegava, ela arrumava a casa, lavava o quintal, deixava toda a cozinha bri- lhando, o pote de café sempre cheio de pó, a mistura preferida dele sempre no congelador, e o prato preferido dele sempre lavado para evitar alguma poeira inesperada, já imaginou pen- sar em tudo e uma sujeira qualquer fazer o seu menino ficar nervoso? Não. Não seria assim!
Seria tudo lindo.
Talvez ele estivesse namorando, talvez lhe mostrasse uma foto, três anos são muitos dias, muitas horas, muitos minutos, para serem gastos somente com estudos.
Capítulo 36
querendo sentir
Carol não levantou no mesmo horário aquele dia, na noite anterior assistiu a Dirty Dancing, tinha vergonha de levantar já com o sol a toda prova, mas era fato.
Também tinha vergonha de que ao acordar começa-se a pen- sar, sobre aquele homem que passava por ela todas as manhãs.
Aquele homem estranho, que pegou em sua mão e falou aquelas palavras.
Palavras bonitas.
Por isso fazia o que todas as pessoas normais fazem, falava de uma coisa e pensava em outra.
Como quando falava com sua empregada, na mente a von- tade de não pagar, afinal tinha achado pó na cômoda duas vezes em quinze dias. Mas da sua boca saía palavras contidas, meladas como a água que tem em potes de pêssego.
Mas tremia quando via velhas, sabia que um dia sua pele seria como a delas, e depois se desprenderia como uma troca de roupa.
Antes disso precisava voltar a amar, desesperadamente precisava voltar a amar.
Tinha mais convicção quando ia tomar banho.
Durante as tarefas cotidianas, entre um flash e outro. Se con- trolava e, no banho, a vontade de ter um pouco de felicidade
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lhe caía como os pingos do chuveiro. Dançava com a música de Dirty Dancing numa ponte branca embaixo de onde passava não água, mas flores, onde não nadavam peixes, mas estrelas.
Talvez ele estivesse aprendendo alguma coisa, lendo, ou- vindo, abrindo uma porta que traria mais dezenas, não era assim com essas pessoas que procuram o conhecimento? En- quanto ela comia o passado como uma fruta da qual não sente o doce, tocava harpa, carros de fogo, arrumava a cozinha, es- perava o filho, tomava banho, para beber o tempo.
Muitos achavam estranho, mas com aquela água corrente, ela conseguia, de alguma forma, lavar o que achava sujo.
Mas ele não, Calixto talvez só vivesse para que no fim as pessoas soubessem somente algumas histórias, mas não vissem o sentido.
Capítulo 37
pAgAndo pArA esquecer
O sábado tinha sido cansativo, Hamilton não fazia quase nada no serviço, esses dias andava desanimado, Calixto teve vontade de perguntar, mas a vontade passou, se despediram.
Calixto dirigiu por meia hora, sua casa não era a meta de chegada, virou algumas ruas desconhecidas, esquinas nunca vistas por ele, parou o carro numa rua sem saída e saiu andan- do sem direção, claro que começou a contar os postes para ter certeza de quanto andar para achar o carro.
Colocou a mão no bolso, sentiu a colher e deu um grande suspiro, um ambulante oferecia refrigerante, ele perguntou se tinha cerveja, pagou e deu um gole, puxou um cigarro e acen- deu, deu mais alguns goles enquanto olhava a placa preta no alto do sobrado, deu mais dois tragos, jogou a cerveja fora, o cigarro apagou no muro, colocou no bolso.
Porque os pubs são todos pintados de preto? Acho estra- nho, um lugar que serve para dar prazer, talvez seja para pa- recer discreto.
Esse que estou vendo agora, na verdade, não parece muito discreto, o estacionamento fica em frente, e qualquer mulher por mais desavisada com certeza reconheceria a intenção da casa.
Eu entro e antes de pegar a comanda de um senhor gri- salho e obeso, noto a imensa escadaria que tenho que subir, encho os pulmões de ar e subo sem pensar em mais nada.
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Ferréz
O som começa a ficar alto à medida que estou subindo, também é forte o barulho de vozes misturadas, deve ser uma festa lá em cima, e olha que é uma hora da tarde de uma quar- ta-feira.
Encontro motoboys que dão uma fugida da rotina, office boys que vêm entregar mais que documentos, homens que não con- seguem cativar uma mulher pela conversa, maridos insatisfeitos com a performance sexual das esposas e eu, em que categoria me encontro? Nesse momento, não sei.
A festa é uma fraude, quando piso no último degrau, vejo duas máquinas caça-níqueis, seis mesas de plástico com duas cadeiras cada, um atendente no bar, que também serve de cai- xa e três mulheres penduradas na máquina caça-níquel.
Comprimento todos, abaixando a cabeça de leve, e olho para cima antes de me sentar, nesse momento aprendo que não se cumprimenta ninguém nesses lugares, talvez um anzol descesse para eu simplesmente abrir a boca, nada mais fácil para descrever minha situação.
Uma das mulheres é imensa, antes de continuar a olhar, sou interrompido pelo atendente do bar, que também é caixa e agora é garçom. Algo para beber, senhor?
Sim, me traga uma água com gás, por favor.
Muito calor, né, senhor?
Realmente, muito calor.
A imensa mulher, se olhada rapidamente, parece um traves-

ti, daqueles grandes, cheios de silicones na bunda e por todos os lados, mas olhada detalhadamente tem seu jeito feminino.
Retorna com a água, nenhum copo na bandeja, antes de abrir a garrafa e pôr na mesa, me olha e diz que também está disponível, eu digo ok, e baixo a cabeça, encaro a água agora e bebo quase metade de uma vez.
Deus Foi almoçar
A outra mulher está apoiada no balcão agora, enquanto a amiga joga sua pequena sorte numa máquina de caça-níquel, magra, pernas extremamente brancas, rosto pálido, a barriga dilatada, e não parece cerveja, acho que está grávida.
Então a amiga que jogava se vira, começo a encará-la, saia vermelha, aparecendo a poupa da bunda, sutiã mínimo que também deixa a mostra as beiradas dos seios, que já não estão tão firmes, mas que escolha me restou? Percebe que não tiro os olhos e faz um gesto, junta a mão esquerda em forma de con- cha e a atira para baixo, é um claro sinal perguntando se quero transar. Puxo uma das cadeiras e faço um gesto para ela sentar ao meu lado, antes de voltar os olhos para cima, noto tampas de cerveja jogadas em baixo da minha mesa e as marcas de sapato na parede.
Ela senta.
Oi, gatinho.
Não sou nenhum gatinho, mas respondo.
Oi, tudo bem?
Tudo bem!
Você pode me pagar uma Ice?
O que é isso?
Uma bebidinha, bobinho.
Resolvo pagar, mais para evitar as palavras diminuídas

que sempre me irritam.
Concordo balançando a cabeça. Enquanto se levanta, fico

observando sua bunda, ela joga de propósito na direção da mi- nha cara, não é muito grande, mas também não é pequena, e o chinelo que está usando combina com seu jeito descontraído, essa eu vou comer inteira.
E aí, quer um pouco?
Não bebo nada alcoólico, estou de água mesmo.
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Ferréz
Eu não, meu negócio é uma geladinha, e uma pica bem dura. Direto no assunto, né?
Aqui é assim, se vacilar minhas amigas pegam. Olha para

as amigas faz uma cara de desprezo.
Toma mais dois goles da bebida que tem a cor verde.
Eu também dou mais dois goles na minha água e penso se

estou fugindo muito do que havia planejado gastar, o cartaz dizia que taxa única era 35 dinheiros, mas certamente a bebida era por fora.
Vamos subir e fazer besteira?
Num sei, o que você faz?
Programa.
Ah! Engraçadinha, o que você faz de sexo?
Tudo, desde que o tamanho num seja enorme, entendeu? Ahãn.

E o que o gatinho vai fazer comigo?
Fico calado, sempre gostei da conversa sacana, acho que é o começo do sexo, mas não sei responder.
O que vou fazer?
Anda, lindo, diz aí, quem pensa muito não penetra.
Bom, num sei, você vai descobrir.
Bom, então eu vou chupar você, e você vai pôr essa coisa

sua nessa pererequinha aqui.
Mais uma vez ela usa as palavras no diminutivo, como isso

me irrita, mas tenho que pensar na perereca, olho para as per- nas que se abrem e mostram uma imensa calcinha azul, algo inchado estica o tecido.
Certo, vamos lá pra cima, mas eu quero tudo. Tudo como, meu bem?
Eu quero atrás também.
Não sei, deixa ver, cê quer o meu cuzinho?
Deus Foi almoçar
Isso.
Olha, se não for muito grossa eu topo, vou ter que ver o tamanho primeiro.
Tá bom.
Ela faz dengo, mas sei que no final vai dar samba. Tudo bem, se for pequeno, você me dá uma caixinha e põe devagar. Subimos, e quando entramos no quarto, que não passa de um pequeno cômodo todo azulejado e com um pequeno ba- nheiro, ela tira o sutiã e olhando nos meus olhos diz carregan-
do no sotaque nortista: Pega nas teta.
Acho grosseiro, mas pego nos seios e até chupo um deles, o gosto de fumo de mascar me invade a boca, e as axilas estão tão molhadas que já sinto o suor forte.
Ela chega para trás e mostra o banheiro.
Vamos tomar um banhinho.
Eu me lembro do caixa que também era garçom me dando

a chave do quarto e perguntando se era meia hora ou uma in- teira, na pressa eu disse uma inteira, mas e se a taxa única fosse meia hora? Volto a ver a situação que estou e retiro minhas calças e o tênis, ela se encarrega da camisa, um minuto depois estou no chuveiro, e ela com um sabonete fica lavando meu pinto sem parar, tem uma hora que vejo ela o tratando como se fosse o filhote de algo.
Calma, devagar.
Desculpa, meu amor, é que tem que lavar direitinho, e es- sas pintinhas aqui nele? São de nascença?
Respondo meio inquieto. Por que ela quer saber disso? Talvez doenças, mas a gente vai usar camisinha, não consigo entender.
A água quente cai na minha cabeça e se junta com a tem- peratura sufocante do quarto, aquilo vira uma sauna, ela con-
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tinua esfregando meu pinto com sabão e olhando sem parar, crio coragem e pergunto.
Pra que lavar tanto?
Amorzinho, eu vou chupar ele sem camisinha, mas você tem que falar baixo, eles não podem saber que faço isso, é proibido.
Ela fala como se alguém pudesse estar nos escutando, e co- mecei a me lembrar de casos em que hotéis e motéis colocam câmeras no quarto.
Então chega a hora em que finalmente acaba o que mais parece uma lavagem de roupas só que com meu pinto no lugar de alguma calça jeans.
Quando vou para o quarto, fico olhando para o teto, ne- nhuma câmera, pelo menos visível.
Ela tira a roupa, eu deito na cama e puxo o fino travessei- ro para minha cabeça, gosto de ver. Ela começa a alisar meu troço e vem dando umas cafungadas nele, finalmente põe na boca, chupa ele agressivamente, sobe e desce, de vez em quan- do tira da boca e pergunta:
Tá gostoso?
Digo que sim, várias vezes para apressar a sua volta ao que interessa, a coisa rola por uns dois minutos, então ela abre o plástico da camisinha tão rapidamente que parece até uma long neck, depois coloca a camisinha na boca e de uma vez encaixa no meu troço, o barato é tão automático que eu confiro para ver se ela colocou direito mesmo, em seguida diz:
Vem agora comer essa bucetinha.
Desce e se apoia com as mãos na cama, eu levanto e, olhando para aquela traseira, vejo que nada de bucetinha tem ali, arrumo o pinto e tento encaixá-lo, mas está mole, o calor é de matar, tento mais algumas vezes, então começo a friccioná-lo, ela diz:
Deus Foi almoçar
Vamos, nego, tá amarelando, põe essa rolona aqui dentro.
Mentalizo no cu que vejo na minha frente e enfio a coisa de uma vez, ela finge gostar, todas elas fingem gostar.
Vai, come essa porra, vai, seu cachorro, come minha bu- cetinha.
Palavra diminutiva de novo, eu me esforço, mas o barato está amolecendo, o suor escorre pelas minhas costas, pela tes- ta, pelas pernas, então paro, retiro o negócio todo mole, e digo que vou tomar outro banho.
Tá bom, amor, sei que tá um calor danado.
Vendo que a camisinha está praticamente pendurada, ela retira e joga no canto do quarto. Tento regular o chuveiro para uma água mais fria, mas é em vão, a chave não gira, então começo a tomar banho, a claridade entra quando ela abre a janela e eu olho, assustado.
Calma, lindinho, ninguém vai ver a gente, essa casa aqui dá de costas para um estacionamento.
Fico um minuto debaixo da água, desligo, passo cautelosa- mente pela janela e vejo o Largo de Pinheiros, imundo tanto de sujeira quanto de gente, vou para a cama.
Fecha a janela, por favor.
Mas cê não tá com calor, amiguinho?
Estou, mas tenho vergonha.
Tudo bem, ninguém tá vendo a gente.
E mesmo retrucando se aproxima e fecha, depois volta

para mim, pega outra camisinha na bolsa e com os dois de- dos indicadores coloca no meu pinto, depois senta de costas para mim, então é a hora que eu queria, o pinto sobe mais um pouco, e em vez de encaixar na buceta, eu miro atrás, ela empina um pouco a bunda e recoloca o pinto onde estava, começa a gemer.
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Ferréz
Come esse cuzinho, amor, come esse cuzinho. Diminutivo de novo, que desgraça.
Fico sem entender, o pinto está na buceta, por que ela fala

isso? Então percebo que tenta me enganar, mas é claro, ela pensa que talvez não sei a diferença, então eu peço para levan- tar, falo para ela deitar na cama de costas.
Tudo bem, eu deito, amor, mas não põe peso em cima de mim, não.
Então abro as bandas da bunda e miro no cuzinho, agora sou eu que estou falando no diminutivo e isso também me irrita. Ela chega para frente, o pinto entra, mas não tenho certeza se no cu, se foi é porque tá mais aberto do que pensei, ela co-
meça com aquela falação de novo.
Come meu cuzinho, amor.
Agora tenho certeza de que estou na buceta de novo, e co-

meço a bombar mesmo assim, o calor agora faz o suor cair até em meus olhos, nem a sobrancelha segura tanta água.
Vai, amorzinho, vai, amorzinho.
As palavras em diminutivo me matam, o pinto amolece de novo, eu peço para parar e vou para o banheiro mais uma vez, tomo outra ducha, enquanto ela escova os dentes pela terceira vez, com certeza é um método também, outra pegadinha, talvez escovando os dentes ela queira dizer: Idiota, eu não vou te chupar mais.
Volto para a cama, ela pergunta o que quero fazer, eu digo que quero uma chupada, sei que ela vai negar.
Mas eu já chupei, amorzinho.
Penso em falar que quero mais, em retrucar, mas no final estou cansado demais, falo para ela ir alisando meu saco.
Ela pega nele, depois começa a descer e pergunta: Quer um dedo no cu, amorzinho?
Deus Foi almoçar
Ela e suas palavras no diminutivo. Você tá louca? Eu sou homem. Calma, amor, é só um dedinho. Não, só alisa meu saco.
Ela obedece e começa a alisar, eu manuseio o meu negócio e tento olhar para sua bunda, mas está um pouco virada de lado, então penso no que estou fazendo, pagando para bater uma punheta, olho para ela e mando:
Chupa mais um pouco.
Ela se vira e fala que já escovou os dentes, eu resolvo retrucar. É só escovar de novo.
Ela vai meio a contragosto e, olhando pro meu pinto, diz

que tem que pôr outra camisinha.
Retruco, digo que ela chupou sem camisinha.
Mas isso foi antes, agora você já me fodeu, se quiser tem

que pôr.
Eu falo para pôr, ela diz que é mais 5 dinheiros, eu digo

que pago.
Ela abre a camisinha só com uma mão, depois põe na boca

e encaixa perfeitamente no meu troço, não erra uma, me lem- bro da teoria das dez mil horas, se qualquer um fizer algo por dez mil horas fica bom, será que ela já transou por esse tempo? Olho a buceta novamente, acho que sim, em seguida está com a coisa na boca, depois tira e fala.
Eu tenho uma coisa ali que você vai gostar, amorzinho.
Fico na dúvida de perguntar, e nem preciso, ela se levanta e abre a bolsa, de lá tira um imenso pinto de borracha.
Deixa eu pôr aí atrás, amor? Eu me levanto num pulo só. Que merda é essa?
É o que você quer, amor!
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Ferréz
Vai se foder, sua puta.
Sou puta sim, e você deve ser bicha, com um bucetão desse aqui e com essa pica murcha.
Ah! Que droga.
Grito já pegando minhas calças, visto tudo rapidamente, ela entra no chuveiro com a rola de borracha e fica alisando, e antes de eu sair, ainda diz:
Calma, amorzinho, a vida é assim mesmo.
Maldito diminutivo.
Passo pelos quartos, e quando vou descer o lance de esca-

das, o atendente me pede a comanda, volto para o bar, dou a comanda, ele soma, eu não acredito, mas pago, 110 dinheiros, desço a escada, e enquanto espero o ônibus fico tentando saber o que foi tudo aquilo e por que custou 110 dinheiros.
Capítulo 38
A históriA de melindA
Ela tinha grandes olhos azuis, cabelos levemente cachea- dos, e em cada ponta, ficavam mais loiros. A família era toda de evangélicos, ela sempre ia de saia na escola, naquela época era muito diferente quem era de alguma religião, agora com tantos costumes adaptados à igreja ninguém sabe diferenciar se um roqueiro é um roqueiro “comum” ou um roqueiro de cristo. Mas naquela época não, cada um no seu lugar.
Sempre meiga com todos, dizia bom-dia e distribuía sorri- sos, tinha alguns amigos meninos, adorava pular corda e con- versar, de vez em quando a professora gritava.
Melinda, fecha essa matraca. Ameaçava jogar o apagador de giz, mas embora ela já tivesse jogado em outros alunos, to- dos sabiam que em Melinda ela não teria coragem, para todos a bota preta que tentava auxiliar o andar da pequena já era um castigo eterno, e por si só já bastava.
A blusa azul de crochê certamente foi feita em casa, en- quanto a sua mãe esperava o pai que nunca chegava cedo, talvez gozando em alguma cama, onde encontrou mais ca- rinho do que era destinado ao senhor nas orações, talvez al- gum bar onde no fundo do copo ele via aquela menina que amou e há muito perdeu, ou algo que lhe fizesse esquecer a palavra amor.
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Ferréz
Melinda ficava em casa com sua mãe, que não parava de comer, aumentando assim, a falta de interesse sexual do esposo. Comia e também preparava comida para a pequena, en-
quanto esperava o marido, que sempre trabalhava até tarde. Melinda estava no pátio, todos brincavam de pular corda, ela olhava, um menino se aproximou, Joaquim era loiro, com sardas em volta do nariz e muito magro, Melinda achava ele en- graçado, conversaram por alguns minutos e ele chamou ela para fora do pátio, o recreio ainda duraria por mais vinte minutos, ele disse que tinha um pequeno lago com girinos lá fora, ela foi. Olharam o lago, mas não viram nenhum girino, então re-
solveram ir à casa.
Tinha uma casa lá que servia pra proteger os canos de uma

empresa de água estatal.
De vez em quando alguns alunos iam lá, brincar de pega-

-pega e esconde-esconde rodando a “casa”.
Mas Melinda não devia ter ido brincar lá, não depois de tan-

tos anos de programas de domingo e suas bailarinas, não depois de programas de humor sempre mostrando mulheres imitando alunas e sempre com roupas curtas, sempre em poses sensuais, sempre com piadas de duplo sentido, mas Melinda não sabia que, por ser menina, tudo isso caía em cima dela também.
Joaquim assobiou, ela olhou, mas não percebeu que era um sinal, quatro meninos estavam subindo para a casa, e as- sim que, chegaram, os meninos, já olhavam para o pedaço de carne que a televisão mostrava, e seus pais achavam tão legal ficar assistindo.
Calixto estava fora do pátio, não tinha amiguinhos para curtir o recreio, então ficava olhando as árvores balançar, viu o menino e depois a menina passando mancando pela casa, era a sua amiga, a bota preta não deixava dúvida.
Deus Foi almoçar
Subiu o morro para chegar à casa.
Ali atrás do colégio tinha meninos correndo, e uma me- nina tentando correr, e agora chorando quando um deles a puxou pela bota, fazendo sua perna doer tanto que ela teve vontade de morrer, em seguida todos pularam em cima dela, mãos puxaram e arrancaram sua saia, eles a chama- vam de Melinda, mas naquele dia a chamaram de outras coisas também.
Calixto ficou imóvel, não porque queria, mas porque não conseguia reagir, e enquanto a menina se debatia, os cinco me- ninos se debatiam mais, enquanto o maior tirava uma coisa pra fora da calça, uma coisa que Calixto sabia que ia mudar para sempre a vida de Melinda.
E ele ficou parado, a alguns metros do namoro coletivo, não permitido pela pequena Melinda, que agora chorava, en- quanto suas pernas abertas eram jogadas para outro menino, que tirava a calça e se sacudia para frente e para trás.
Calixto ficou parado.
Cada menino segurava um braço, e outro segurava a barriga, a perna doía muito e Melinda chorava baixinho até todos saírem. Calixto foi até a pequena, abaixou sua saia e foi quando ela parou de chorar, pensou que teria mais um ainda pra saciar a fome, mas não. Ele ajudou-a a levantar e perguntou o que ela
iria fazer.
Melinda disse para ele não falar nada, pediu para buscar

a bota que estava do outro lado do muro, ele pegou, ela cal- çou sentindo muita dor, em seguida saiu na frente, Calixto seguiu ela para o pátio do colégio, cabeça baixa e sempre puxando a saia para que passasse o joelho, como se quisesse esconder suas lindas pernas, mas era para esconder o machu- cado do joelho.
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Ferréz
Melinda parou perto do banheiro das meninas, olhou para Calixto com os olhos cheios de água e disse que iria lavar o rosto. Ao sair, lhe chamou baixinho, disse que estava bem e que ele deveria lhe fazer um favor, não contar pra ninguém jamais, depois disso lhe deu um beijo no rosto, com o qual ele se as- sustou, virou e subiu as escadas para a sala de aula, foi a última vez que Calixto viu a menina Melinda, daquele dia em diante
ela nunca mais foi uma menina.
Calixto estava com boas notas e sempre passava de ano

direto, já Melinda começou a ficar de recuperação, teve pro- blemas de disciplina, não acompanhava mais os outros alunos na hora do recreio, nem tomava lanche, até que não apareceu mais nas aulas.
Capítulo 39
o diA em que tudo deu certo
Parei em seu portão, ela me viu, olhei para dentro de sua alma e fui logo soltando uma palavra atrás da outra.
Sabe, eu sempre passo aqui e fico te olhando e queria mui- to ter a chance de sair e tomar um café com você.
Ela ficou paralisada por alguns segundos, depois paciente- mente desligou a mangueira, pisou sobre o molhado do quin- tal e foi até o portão.
Mas... mas você não me conhece.
E eu, com uma certeza absurda de quem acha que sabe o que está falando, não deixei o momento fugir.
E quem conhece alguém de verdade? Eu moro aqui do lado, já conversamos, sei o que fizeram com a coitada da Samira e te acho muito simpática, queria só tomar um café com você.
Ficou corada, olhou para os anões, como quem quer uma ajuda na decisão, depois para as pequenas flores, mas, perante todo o silêncio e vendo que Calixto ainda estava ali, resolveu acabar com aquilo.
Tudo bem, hoje no início da tarde a gente vai tomar um café, o senhor passa aqui.
Claro, estarei aqui.
A situação toda foi um embaraço só, ela estava arrumada, sem as presilhas no cabelo, mas com pequenas tranças, parecia que há muito não fazia isso, não cuidava da aparência, mas para mim ela se esforçou, o vestido amarelo deu um ar mais jovial.
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Ferréz
Andamos por dois quarteirões e chegamos a uma pequena lanchonete.
Calixto adicionou açúcar assim que a xícara chegou, o gar- çom nem teve tempo de oferecer, percebeu que era a primeira vez deles ali e rápido se retirou.
Obrigada. Faz tempo que o senhor mora ali?
Que isso, não me chama de senhor, eu já moro ali há al- gum tempo, acho que o suficiente.
Bom, eu também, moro há muitos anos.
E sua família mora onde?
Ela corou, levantou e disse que ia no banheiro, bola fora minha. Demorou alguns minutos, ofereci um salgado, ou um lan-

che, ela recusou, disse que não podia demorar, estava incomo- dada, eu não podia perder a chance, mas também não podia segurá-la por mais tempo, então resolvi ceder.
Garçom, por favor, a conta.
Fui ao caixa, paguei, peguei algumas balas, ela aceitou e sorriu, bola dentro.
Logo que pisamos para fora da lanchonete, a rua mostra- va sua amargura, e como um disco cheio de chiados o tempo estava gasto.
Eu não tinha mais fichas, então filosofei:
Assim como a ausência das pessoas nas ruas, eram todos descartáveis agora.
A construção de tudo, a mudança de toda a vida não bastava. É verdade, o senhor sabe o que diz.
Por favor, me chame de Calixto.
Emparedar, destruir, construir e reformar, e depois demo-

lir e quando quiser paz, quando tudo estiver pronto, todos os móveis comprados, limpos, todos os quadros desejados nas pa- redes, ir para longe, talvez um sítio, alguma casa na praia, mas
Deus Foi almoçar
meus pensamentos me deixavam confuso e eu só queria, ao ver clima tão fechado, enxergar mais os olhos dela.
Já estamos chegando.
E vi que era minha única chance e decidi que se desse er- rado eu pelo menos teria tentado e ao sentir o primeiro pingo de chuva não recusei aquela ajuda.
E fomos para o ponto e em algum detalhe que perdi, al- gum pingo da pequena garoa que em mim tocou, eu repenti- namente peguei em sua mão e, embora com medo, algo me motivava, talvez a adrenalina de tentar, de fracassar, o que po- dia ela dizer?
Talvez retirar a mão e fazer um doce, cara de menina ofen- dida, daquelas que viram os olhos, mexem no cabelo de leve e fazem biquinho.
Não, não, escreveria ele, ela com seus 54 anos não me da- ria tal desgosto, e ficamos de mãos dadas, no início, e tínhamos agora nada mais que 18 anos cada um, e a chuva passou, o tempo parou para nos olhar e os pontos de dispersão de algum poeta do Maranhão se tornaram verdades e um mar surgiu à nossa frente.
Por um segundo, ela de vestido amarelo se abaixou e tirou as sandálias e correu para a água, eu fiz o mesmo e juntos mo- lhamos os pés, ela gritou.
Obrigada!
Olhando fixamente para uma onda que vinha, meus lábios também agradeceram, era noite, mas tudo estava claro, era tempo frio, mas tudo estava tão quente e as mãos foram dadas novamente e ao tocar-lhe a cintura eu queria somente olhar para seus olhos mais uma vez, mas ela pronunciou algo que me fez encostar em seus lábios e o beijo veio da boca e não era 1968, mas o tempo parou.
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Mãos tocaram com carinho, e as ondas agora batiam em nossas cinturas, seus cabelos caíam em mim e por alguns se- gundos eu vi asas e senti que ela iria voar, mas eram as ondas que em nós batiam e a areia que saía e nos deixava flutuar. Os lábios se separaram e os olhos abriram, vi somente uma linda mulher encostada no ponto de ônibus, uma garoa insistente e um ônibus que passou a instantes, e ela me perguntou por que eu estava parado olhando para o nada.
Eu estava perdido num mundo de amor, mas depois estava olhando para meus pés para ver se estavam molhados, mas nem sujo de areia estava meu sapato, e ela vendo meu deses- pero me puxou para perto de si e me deu um grande abraço, e ficamos ali e fomos ser um só.
Fechei os olhos e me vi no colo da minha mãe e ela me chamava de seu pequeno enquanto me apertava e em algum outro instante eu estava sentado na perna de meu pai e ele balançava seu pequeno filho enquanto olhava para a TV e eu tão pequeno via tudo se mexendo e tudo balançando e ele colocava o cigarro na boca e depois soprava a fumaça para fora e agora eu via Carol e ela corria com minha pequena no colo, trazia ela pra mim, eu teria tempo para ela, e iríamos nos divertir juntos, e ela diria que seria igual a mim, que me ama- va, mostrava a bola, e eu nunca havia brincado com ela, então o ursinho azul que tinha um quepe de piloto de avião estava em sua mão, e os gatos no berço, e a colher prateada em meu bolso, ela dizia sobre um menininho azul e sobre um homem na lua, e ela desceu do meu colo e seu sorriso não desapare- ceu, mas ela se afastou, e a mulher do quintal continuava a me apertar até que senti que eu não mais existia.
Capítulo 40
um novo diA pArA umA velhA vidA
Ontem no sofá, meus olhos pararam, as pálpebras desce- ram, os cílios se tocaram, eu saí de mim e comecei a cair.
Aos 17 anos, quando comecei a beber, continuamente sen- tia isso, mas por alguns segundos. Acho que aos poucos, com o passar dos dias, anos, séculos, vamos nos tornando rascunhos do que éramos, como se tivesse uma imensa borracha nos apa- gando aos poucos, sei que não vou chegar a nenhum lugar, vou continuar caindo.
À noite, os pensamentos me furam como espadas, e não como canivetes. As noites, que com a dor terrível, só me fa- zem achar sentido passando a criação da caneta sobre o novo pergaminho.
Calixto escreve o nome dela continuamente, a chuva, o ponto de ônibus, o vestido amarelo, ele relata tudo, deixa tudo claro, tenta se lembrar de todos os detalhes, mas quando vai es- crever sobre o beijo não consegue colocar as palavras no papel.
Ela tinha uma boca tão macia.
E começou a desenhar.
Fiz um sol, não estava como o senhor criou, não estava

mesmo, mas dava pro gasto. Coloquei olhos nele, deslizei e surgiu uma boca sorrindo, depois a pequena casa, no lugar do
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Ferréz
já antigo e agora desfeito sol. A casa tão simples, um triângulo e um quadrado, sem janelas para não ter vizinhos, no meu jeito de viver eles não existem.
A luz e o som que sai de uma caixa na minha frente traz notícias, na maioria ruins. Não sei quem sequestrou o que, não sei quem matou quem lá, não sei que político roubou, eu só desenho dois, de mãos dadas, e riscos de chuva.
Eu queria fazer um jardim, quando pequeno eles eram uma bala com riscos, uma flor significava meu jardim, mas hoje depois que perdi o filtro da pureza, uma flor é só uma flor.
Nós, adultos, quando a tocamos, geralmente lhe arranca- mos um pedaço. Não sei dizer por que, ser ruim, talvez.
Desisti do jardim, não podia mais imaginar tanta coisa só com as pontas dos dedos, e o cavanhaque, quando pen- savam que eu o estava alisando, eu estava era desenhando um novo mundo.
Sorver. Essa palavra soava enigmática, embora ele soubes- se o que significava.
Sorver. Como imaginava plantas em suas raízes sorvendo a água e os nutrientes da terra.
Simplesmente lhe vinha na mente um homem dentro da água, onde estava coberto até os ombros, e só de vez em quan- do a água lhe alcançava o rosto, batia de leve ao contrário do jeito real que as ondas batem.
O telefone soltou seu uivo irritante, Calixto foi vagarosa- mente atender, sabia que tinha ainda três toques para que a ligação não desse ocupado.
Era Lourival, disse um fraco oi e emendou dizendo que a irmã de Calixto havia ligado, estava preocupada com ele, pois a empresa ligou dizendo que ele não vinha trabalhar havia vários dias.
Deus Foi almoçar
Calixto tranquilizou o amigo, disse que se ela voltasse a ligar para dizer que era só uma indisposição, o amigo insistiu para saber a verdade, mas Calixto disse que depois falaria a razão das faltas.
Calixto desligou o telefone, algo caiu do seu olho esquer- do, algo como água, e ele se perguntava por que Lourival ha- via feito isso, como tudo podia estar tão confuso, Carol nunca havia dito que casaria de novo, sua filha não podia ter a chance de chamar outro de pai.
Foi para a cozinha, talvez fazer um café fosse uma boa vál- vula de escape, depois lavaria a louça, como sempre fez, come- çaria com os copos, depois os pratos e, por último, os talheres.
Sua esposa sempre lhe falava que preferia os pratos primei- ro, e ele rebateria que, ao lavar os pratos, tudo que é gorduroso cairia nos copos, dando mais trabalho para limpá-los depois.
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Capítulo 41
A pequenA meninA que me fAziA rir
Tentei voltar à rotina, cheguei na porta do serviço, mas não entrei, percebi as janelas abertas, Hamilton já estava lá, resolvi ligar o carro e sair.
Calixto deita no sofá, o sol está quente lá fora, mas a casa está fria.
Minha filha correndo, vejo agora os sapatinhos, ela usa- va sapatinhos brancos, não deve fuçar nessa bagunça, vestido azul-claro, eu chamo ela pra perto, ela quer fuçar nas coisas, eu agarro ela, giramos os dois, levanto e ela pensa que está voando.
As tranças estavam desproporcionais. Tenho que me con- centrar no presente. O sorriso quase chegava nas orelhas. Vou ficar aqui. Como ela sorria pra mim. O sol estava lhe dando o fundo perfeito, vou ficar aqui.
Meus olhos lacrimejam, ela sorria pra mim, vou comprar talvez um pão, do chiqueirinho, ela sorria pra mim, cigarros, não interessa que marca, quando não tenho o que fazer eu invento, ela pedia com o olhar pra mim, não vou fumar, mas tenho que comprar, eu não ia pegá-la, vou ter que sair daqui, como eu queria ter uma nova chance, vou sair, ela dizia:
Papai.
E assim sua vida teria sentido, talvez.
Deus Foi almoçar
Queria ouvir a verdade, mas há tanta mentira nas verdades modernas, que não via mais sentido nisso também.
Sempre fiquei com vontade de parar, então naquele dia parei, fui e não entrei, as coisas estão assim agora.
Tenho que me concentrar no agora.
No mato, não havia ninguém para reclamar por estacionar o carro na frente. Os amigos? Eles não morrem, Calixto, não senhor.
Você os esqueceu.
Queria uma casa que tivesse um lindo jardim, queria olhar as plantas, vê-las crescer, regá-las, dar uma olhada, ver a água.
Tenho que me concentrar no agora.
No outro dia, queria apenas pombos em sua janela, quem sabe um entraria por uma brecha, visitaria sua sala, olharia seus livros, seus velhos porta-retratos, sem fotos da família, depois partiria, pousaria noutra janela, olharia para uma linda mulher nos olhos, transmitira a tristeza daquele homem lá de longe.
Faz duas horas que deixei o carro, não vou usar mais. Minha menina, que saudade da minha menina.
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Capítulo 42
sAmirA não vAi mAis beber águA
Já fazia um tempo que a televisão não me trazia nada além de corpos com bocas mexendo e saindo falas mal escritas, de talvez autores mais interessados no valor pago por minuto de comercial do que propriamente na história.
Saí para ver se ainda existia algo lá fora.
Vi o homem sendo arremessado ao capô do carro, a dor nas costas, o barulho dos pneus, os gritos das pessoas.
Pedi para meu pai me dar o manual de instruções da vida, pois nascemos sem nenhum, eu não queria ser refém do acaso, não aceitaria que aquilo acontecesse comigo também, quem sabe quando, onde, vi meninas grávidas, casas cercadas e pes- soas presas lá dentro com a chave na mão.
Vi cachorros sarnentos, padres benzendo e mães de santo rezando.
O menino está parado, veio do colégio, a chuva o fez es- perar debaixo do banner, o olhar de curiosidade percorre o comércio, mais um comércio antes vazio agora cheio, cheio de gente esperando a chuva passar.
A escola abre os portões, o cabelo do pequeno é arrepiado, certamente descendente de índios, o tênis já marrom de tanto uso, alguém pergunta do seu pai, morreu ele diz, despistando
Deus Foi almoçar
olhando a chuva, que pinga fazendo breves coroas de gotas menores, instantes de majestade para o bairro.
A chuva cai na chuva que caiu anteriormente, assim é a dor do menino inocente.
A bolsa pende, próxima ao joelho, a sobrancelha forte, as gotas se acabam, ele segura a bolsa e corre.
O menino se chama Calixto.
É ele. O ônibus o abraça, vai olhar tudo pelo vidro, escor- rega pela catraca, a atmosfera fica mais quente.
As gotículas no cabelo arrepiado vão desaparecendo. Levan- ta com os olhos fixos no nada, as castas estralam, o rosto estava passado, o corpo destruído, sabia que levantou pela metade.
Sua mãe uma vez lhe disse que, quando as pessoas levan- tam rápido da cama, deixam sua alma ainda dormindo.
O nome do menino era Calixto.
Mas a campainha do telefone não parava, tropeçou na cô- moda e quase foi com o nariz no chão, estava com calor. Não. Estava pegando fogo, uma parte sua foi atender o telefone a outra hesitou, não queria falar com ninguém naquela hora, nem naquele dia, nem naquele ano.
Uma parte venceu a outra e Calixto sabia o que fazer, jogou o telefone na parede, como se estivesse jogando Lourival, ou o velho e seus trotes, ou sua irmã, ou Carol, ou a menina do sonho.
Calixto foi ao banheiro, em vez de molhar o rosto, abriu a torneira da pia e a deixou encher, deitou-se no chão gelado e ficou aguardando a água cair ao chão e o tocar.
O telefone não tocaria mais, nada a não ser a água o to- caria, ainda garoto nunca foi tocado a não ser na cabeça, pela porta do banheiro passava um vento gelado, a água a escorrer da pia iria alcançá-lo, seu pai lhe punha a mão na cabeça e es- fregava lentamente, a água o tocara no ombro e deslizava por
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todo o seu corpo, a queda para o ralo, mas ele pensava que estava chovendo e que na chuva via um lindo arco-íris.
Nunca havia visto um de verdade, mas imaginava que pa- recia com a água que saía da oficina de carros, em contato com o óleo, isso dava um efeito de várias cores, sempre que o sol batia na mistura.
No final do banho, sentava no vaso e imaginava que estava numa cachoeira, entortava o corpo para molhar a cabeça, minu- tos e mais minutos, os azulejos brancos lhe traziam tranquilidade e nessa hora se lembrava de Lourival que sempre lia no banheiro, tinha colocado no banheiro até uma estante onde os livros ficavam.
Seria coisa de reclusão, talvez de se sentir à vontade, não sabia e não se preocupava com isso nem com outras coisas que não mereciam pensamentos prolongados. Talvez fosse a água escorrendo pelo ralo, como aquelas minifontes que as pessoas compram para pôr dentro de casa, a busca de uma paz nem que fosse manufaturada.
Pegou o rolo de papel, tirou um pedaço, o amassou e esfre- gou no ânus, olhou, branco como devia ser e só em segundos se deu conta de que não havia produzido aquela massa feita com os restos dos alimentos, que há pouco ingerira.
A água caindo na cabeça, estava tomando banho e não soltando fezes. Mas não se banhava no sistema lava-rápido, esfrega, enxágua.
Tomava banho como alguém que purifica a alma, saía mais calmo nesses momentos, não sentia nenhuma falta, nenhum vazio.
Barulhos na porta.
Enrola a toalha e sai molhando toda a casa, abre e Lourival entra. As duas televisões estão ligadas, Lourival senta no pri- meiro sofá e solta uma piadinha sobre banho, Calixto diz que vai se trocar, oferece café e vira-se para o banheiro novamente.
Deus Foi almoçar
Lourival pergunta por que as duas televisões ligadas.
Porque minha pequena gostava, ela sempre fazia isso, e me acostumei.
Há quanto tempo você não vê sua filha?
Acho que não vou ver ela nunca mais, responde ainda den- tro do banheiro.
Faz alguns minutos que cheguei e antes do banho fiz um café, como é de costume, pega lá.
Desde que se sentou, soltou apenas duas frases, uma roti- neira e outra dizendo que não queria café.
Sua aparência era certamente triste, algo havia acontecido, mas pelos seus lábios apertados um no outro daria para ver que o silên- cio era a única resposta que eu teria se fizesse alguma pergunta.
Ofereci bolacha, dessa vez a cabeça foi usada para a negativa.
Virei o seletor da TV, ele continuou olhando para baixo, fui ao banheiro, lavei o rosto, olhei nos olhos que o espelho mostrava e voltei para a sala.
Um silêncio doído fazia Lourival e eu estarmos tão distan- tes, ele não contaria, eu estava curioso com sua visita, ele era tão comunicativo, o último papo foi sobre o diário de Crowley na visão de James Wasserman. Lourival estava tentando havia vários meses juntar os ensinamentos da flor da vida, com os ní- veis de consciência que muitos ainda nem sabiam que existia, mas agora estava somente parado, olhando logo abaixo da TV.
Podia ser uma questão bem pessoal, daquelas que a gente tem até vergonha de falar, e quando mais precisa contar para alguém, parece que essa pessoa, que certamente lhe ouviria e entenderia tudo nos mínimos detalhes, parece que essa pessoa ainda iria nascer.
Virei o seletor novamente, ofereci algo para comer, talvez uma carne, um omelete, ele recusou. Dessa vez mexeu os lábios
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num grande esforço, logo depois abriu a boca novamente e de lá saíram algumas palavras, algo como só de estar ali, já estava bom. Eu entendi, a solidão às vezes é visível, eu sabia bem disso, e talvez meu amigo, que colecionava coleções, estivesse so-
mente sentindo o peso da solidão.
Tinha um filme na cômoda de cima que há muito tempo

eu tinha separado para lhe mostrar, mas decidi que aquele não era um bom dia, assistir a um filme tão bom, um clássico que custou milhões, todo um tratamento tecnológico para ficar co- lorido, tudo isso para ser assistido por um zumbi.
Passou mais uma hora, ele nem sequer mexeu as pernas, a televisão mudou seus programas, agora era assim, tudo mais dinâmico para não perder para a internet.
Lourival levantou, e mesmo depois de ter me dado um abraço e agradecido, eu ainda podia ver ele sentado naquela poltrona, afun- dado com um grande ponto de interrogação em seu colo, fazendo um peso tão grande que mal conseguiria se levantar, mas levantou.
Depois que saiu, senti um grande aperto no coração, ou pelo menos no que restava dele, e a casa começou a parecer quieta demais, acho que Lourival deixou algo por lá, algo pesado.
Tranquei a porta e ao primeiro toque do vento no rosto me senti melhor, mais alguns passos e notei o quintal um pouco sujo, chamou minha atenção, tinha algumas folhas nele.
Mais alguns passos e comecei a descer a rua, mudei de cal- çada durante alguns minutos enquanto caminhava mais apres- sadamente, então percebi aquele pequeno bar, todo organizado, embora fosse rústico.
Parecia que o bar era mais confortável que sua casa.
Sentou na cadeira, madeira descascada, já gasta por incon- táveis pessoas que passaram pela mesma mesa, restos de pele, de vida, de olhar, de tudo.
Deus Foi almoçar
O mesmo almoço, o mesmo sol lá fora batendo no toldo azul.
O refrigerante chegou primeiro, pediu uma garrafa, pre- feria as garrafas, achava as latas sem vida, sem personalidade, sem futuro, as garrafas eram clássicas, assim como as latas an- tigas. As novas, de alumínio, lembravam algo como os prédios da Berrini, a nova Paulista era tão cheia de vidros e alumínio que lhe trazia também a lembrança do filme Metrópolis.
Agora não era só um café, estava esperando um arroz, um pouco de feijão e calabresa. Sempre perguntava se era fresca ou defumada, e já era rotineiro o balconista falar o preço do prato feito e do comercial primeiro, antes mesmo de ele pedir, talvez julgassem sua aparência, calças desbotadas, tênis já gas- to, uma camisa jogada, uma vida já passada, e agora depois de tantos meses, uma barriga que insistia em crescer.
Chegou o almoço, entre uma garfada e outra, via uma lin- da menina passando, um motorista que buzinava enfurecido por uma seta não dada.
Mais uma garfada e o gosto da calabresa se confundia com a vontade de beijar aquele seio preso a um corpo apressado, balançando ao sol e exposto suficientemente para todos a sua volta notarem, mais uma garfada e agora um homem pedia uma informação, o gosto se fundia com tudo que via e ouvia.
O homem chegou eufórico, comentou com o dono do bar.
Sacanagem matarem a bichinha assim, não fazia mal pra ninguém.
Calixto perguntou o que tinham matado.
Uma cadela, moço, uma cadela da rua de baixo, uma mu- lher sempre cuidava dela, foi dar comida de manhã e tinham envenenado a bichinha, covardia.
Calixto olhou para o prato de comida e não viu mais nada que lhe interessasse.
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Capítulo 43
sem se recompor
Estávamos conversando café e tomando risadas, o dia se foi, ela tocou minha mão e me deu dois beijos no mesmo lado, agora foram mais demorados e carinhosos.
Pra não casar, foi o que ela disse.
Eu casado, ela livre, já era tarde para mim, pequena Me- linda.
Passaram-se quinze dias, Calixto estava mais seco a cada dia, olhava para o nada, algo se rompeu, algum buraco surgiu, cacos apareceram, pois algo se quebrou.
Ela ligou, do café à sua casa, tudo tão delicado, tudo tão comum, ela tirou a pesada bota, vi o pé disforme, mas mesmo assim era meigo, tinha algo de mais delicado, com dedinhos mais curtos. A meia soquete foi colocada, ela passou a vida escondendo, eu compreendia.
Me mostrou seus estudos, livros, apostilhas, eu olhava e pensava na minha pequena, se seria aplicada assim.
Fazia três cursos, e ainda uma faculdade, contou da apo- sentadoria, e finalmente um ex-namorado que foi rude demais. Minha mão em sua coxa, ela chegou perto, o gesto de ca- rinho mexeu com toda a casa, fez o quarto balançar, os mó- veis tremerem, o meu coração explodir, e minha língua entrou
Deus Foi almoçar
dentro de sua garganta, eu tinha tanta sede, ela me abraçou tão forte, eu precisava tanto daquilo, que doeu.
Era bom, bom demais, seus dedos viraram tentáculos, en- traram em mim, não eram dolorosos, suaves, eram tudo de leve, liso, carinhoso.
Minha orelha virou algo sensível, fui lambido, babado, chupado.
Me jogou no chão, eu olhei sua bota preta de couro com as ferragens, fabricada por Glauco Matoso, ela tocou minha face, virou meu rosto para sua vulva, abriu as pernas e sentou na minha cara.
Bebi, sorvi, minha boca e sua boceta uma coisa só, fechei os olhos, ela mandou abrir, abrir para ver o mundo, foi para trás, a boceta mais encaixada na minha boca, comprimiu meu rosto, pôs os tentáculos no meu pinto, mexia, mexia, algo des- ceu pela minha garganta, desceu, engasguei um pouco, ela for- çou mais, eu respirava só pelo nariz, ela foi para frente nova- mente, tampou meu nariz com dois dedos como uma pinça, eu sufoquei, ela levantou, antes de sair agarrei seu pé, tirei a meia soquete e enfiei na boca, os dedos tinham um leve aroma, algo que me lembrava da infância, imaginei a bota abafando, sendo travada, então chupei, cuspi, olhei e chupei de novo, dos dedos fui lamber a sola, ela se sentou, tentou me tocar, fechei a perna, e bati em sua mão, eu também queria mandar.
Melinda me levou ao chuveiro, me ensaboou, meu pinto parecia que ia explodir, ela me beijou, começou a me mastur- bar, alisava minha bunda delicadamente enquanto a água caía, e me masturbava firmemente, eu derramei.
Fomos dormir, dormimos juntos, abraçados, sufocando cara a cara.
Não me recompus nunca mais.
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Capítulo 44
A AusênciA delA
Não entendia por que ela havia feito isso, havia ligado, a voz era tão carinhosa, as palavras tão perfeitas, combinaram o horário, o local, mas ela não apareceu.
Já estava por acabar definitivamente o sol naquela praça quando alguém lhe tocou o ombro.
Olá, amigo.
Olhou e se espantou quando viu o policial; respondeu de imediato.
Bom dia, policial.
Na verdade, com essa frase ele queria perguntar o que ha- via feito de errado, e o policial entendeu.
Bom, o senhor sabe ler?
Apesar de achar a pergunta totalmente estúpida, ele re- levou por ser tratar de um policial e respondeu, como uma criança que responde algo já tão maçante como: Quem é o papai? Quem é a mamãe?
Sim.
Então o que está escrito naquela placa?
Bom, está escrito: “não é permitida a entrada, nem perma-

nência de idosos na praça, lei municipal”.
Então, seu engraçadinho, por que trouxe este velho? Calixto olhou para o lado, e a alguns centímetros estava
Deus Foi almoçar
um idoso, com a cabeça baixa, um boné cobrindo parte dos cabelos brancos.
Eu não trouxe este senhor, estou aqui só matando o tempo, ele não é nada meu.
O policial o encarou e como ele não hesitou nem um só segun- do, se virou e foi acordar o idoso e pediu para que saísse do parque. Calixto se levantou e perguntou a si mesmo por quanto tempo
ainda poderia ir àquele parque, sem também parecer um velho. Por quanto tempo alguém aguenta não ser compreendido?
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Capítulo 45
rindA
Faria isso mesmo, pagaria para ter o que precisa, tentou pôr os sentimentos na frente de tudo, mas isso só trazia mais dor.
O lugar tinha um ar estranho, mas isso não significava que a vida havia sido confortável ou válida até aquele momento.
Tudo coberto com monóxido de carbono, sentia um pouco de frio cinza, talvez a noite e a iluminação do centro velho cau- sassem essa sensação, as luzes amareladas, o lixo acumulado, o lugar que há algumas horas estava lotado de gente indo e vindo, passando, usando como se usa uma velha passarela, mas nada disso interessava de fato Calixto, que procurava em cada esquina dos grandes edifícios alguém com quem ele pudesse fazer sexo.
Loira alta. Baixinha morena. Nenhuma delas era exata- mente assim.
Andou por vários quarteirões até que foi abordado.
Era pálida, cabelos pretos, e a frase fez com que seu pau julgasse que era ela na hora.
Novinha, sem frescura, faço tudo e num tenho pressa, sou bem menininha.
E quando terminou o discurso deu uma piscadinha sapeca.
Estavam indo para o quarto quando ela resolveu comprar um refrigerante, pegou dois canudinhos e nem ofereceu, ele pediu um gole, e ela perguntou:
Deus Foi almoçar
Num vai ter nojo de mim?
Ele riu e respondeu que não tinha, por que ter nojo de al- guém com quem ele iria fazer amor?
Ela também riu, o centro velho riu, os transeuntes riram, os apartamentos até então escuros e malcuidados se acende- ram e riram.
Era possível ouvir a gargalhada de um garoto embaixo do seu cobertor, e de um vendedor de colar andando apressado para o metrô, e se notasse com muita atenção ainda era pos- sível ouvir os postes se contorcendo para emitir algum som parecido com risada.
Entraram no quarto, ele deixou vinte pilas pro gerente mal-humorado que foi encarando a bunda de Cleide até que sumiram pelas escadas.
Seu nome era esse, engraçado porque ela mal conseguia dizer, falava com um som de r, meio como se fosse Creide.
Calixto suspeitou que ela trocava o r por l das palavras, assim como o personagem de Mauricio de Souza, mas só teve certeza quando ela abaixou a calça jeans.
Mostrou a buceta e disse: Hoje você vai comer essa buce- tinha rinda.
Ele quase se mijou de vontade de rir, primeiro que era uma buceta enorme e segundo que ela também trocava o l por r, e de linda, ou rinda num tinha nada, era feia tão feia que na hora deu até medo, pensou em doenças venéreas, crista de galo, essas coisas.
Ela ficou de quatro, ele queria pedir o cu, era o que tinha plane- jado, entrar no cu da Cleide menininha, que devia ter uns 30 anos.
Foi quando ao pôr o troço na buceta, encarou o cu e teve nojo, era um buraco imenso, grande mesmo, e escuro, dava pra ver as bordas meio que alargadas, como se tivesse sido muito usado, por uns trinta e cinco anos cagando.
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206 |
Ferréz
Foi nesse instante que Cleide disse:
Vai, porra, olha a buceta, come essa porra aí.
Então ele começou a se mexer, e embora o troço quisesse

diminuir, ele continuava tentando mostrar potência.
Mas a porra da Cleide num parava de falar.
Vai, caraio, mete esse pinto gostoso, goza senão vai ter que

pagar outro pogama, se num gozar paga outro pogama. Calixto se mexia, e mandava ela calar a boca, mas parecia
que era pior.
Outro pogama, come essa buceta, se não vai pagar outro

pogama.
Ele retirou o pinto já murcho, a camisinha pendurada, o

lençol todo desarrumado, a janela aberta entrando vento e ba- tendo em suas costas, o banheiro com a porta aberta e a tornei- ra pingando e a Cleide de quatro, com aquela buceta imensa e ainda falando:
Parou por quê? Come essa boceta rinda.
Calixto tirou a camisinha, jogou no vazo, lavou o rosto. Rinda, boceta rinda.
Se olhou no espelho, colocou as calças e tirou quarenta

pilas e deu na mão de Cleide, que já estava com uma toalha tampando a buceta e com cara de nervosa.
O que eu fiz de elado, moço?
Nada não, eu é que estou estranho, foi bom.
Você quer outro pogama?
Não, eu quero ir embora.
Até que o senhor é bonzinho, a gente tromba cada maluco

por aí.
É mesmo?

Vixe! Minha amiga pegou um que queria enfiar uma man- gueira nela.
Deus Foi almoçar
Porra, uma mangueira.
Pro cê vê, e tem gente que fala que a gente é mulher de vida fácil, fácil é o caraio!
Calixto desceu as escadas, olhou para o gerente e cuspiu no chão, o gerente colocou a mão debaixo do balcão e pegou em algo, num ato claro de ameaça, Calixto deu mais alguns passos e, antes de sair do motel totalmente, gritou:
Por que você num vai olhar pra bunda da sua mãe?
Saiu correndo, imaginando que o gerente o estava seguin- do armado, foi quando algo o desequilibrou e o fez cair para frente e bater a cabeça com força no chão.
Calixto veio a saber que uma calçada com uma parte mais alta o fez cair naquele dia, e com oito pontos que levou na tes- ta, contava a história para os enfermeiros.
De como ele arrebentou um gerente de motel que mexeu com sua mulher, e de como covardemente o gerente o havia derrubado com uma paulada.
O centro velho estava mais vazio ainda, totalmente sugado e gasto como só as pessoas sabem deixar um lugar.
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Capítulo 46
AquelA pequenA chuvA vAi cAir
Ela queria um bolsa nova, antigamente chamavam de mo- chila escolar, Carol me ligou pela manhã e me fez lembrar do compromisso de ser pai, da obrigação que eu tinha, tentei pensar em outra coisa para não discutir, e no final concordei em comprar a bolsa, não sabia o nome do personagem, não conhecia esse desenho, não sabia mais muita coisa sobre o mundo da minha pequena.
Calixto atendeu o telefone, Carol já berrava sobre uma bol- sa nova para a menina, ele gritou de volta, disse que não daria nada, disse gritando que todos se fodessem, que ela trabalhasse e comprasse o que a menina precisasse, Carol retrucou, amea- çou pedir reavaliação da pensão, Calixto bateu o telefone.
Para, papai doido, bobão.
Vem cá que vou te dar um cheiro! Papai, vai quebrar meu olho? Olho num quebra, filha.
Minha barriga tá com fome.
Eu vou esquentar o leite.
Quero leite não, quero Toddy. Toddy toda hora num pode.
Num pode? Papai vai dar, não?
Deus Foi almoçar
Num pode, filha.
Por favor!
Com esse biquinho, é claro que papai faz.
A gente nunca esteve no comando, nunca houve uma real

revolução, sempre esteve tudo por controle, eu acreditei, por um tempo, mas não chegamos a lugar nenhum, aposentei a minha luta, vi tantos esquerdistas de escrivaninha, vi tanto re- volucionário de escritório que não tinha mais jeito.
Eu sei por que não chegamos, porque você ficou na sua cadeira de bebê segurando a mamadeira enquanto era para você fazer algo, mas você esperou a papinha chegar, não foi?
O que, papai?
Não, filha, não é você, papai tava pensando alto, nos ho- mens que esperam papinha também.
Calixto tentava pôr os pensamentos em ordem antes de Carol perceber.
Ela tava na cozinha, ele podia pedir a ela, mas como sem- pre iria haver barulho, pratos remanejados, algo que cairia no chão, o micro-ondas sendo aberto e fechado com força, até o barulho da colher no mármore ele iria ouvir, portanto era me- lhor ir, fazer tudo com calma, separar o saco de lixo para pôr na lixeira, lavar a mamadeira, pegar a colher de Toddy, tirar o leite da geladeira, tudo como ele sempre fazia, com silêncio, ou com o menor barulho possível.
Talvez fosse a idade, mas parecia que até na hora de ela dar descarga, era forte, era barulhento, parecia o fim do mundo.
Assim como as conversas das pessoas na rua, aquele falató- rio alto, tudo mundo se explicando, falando cinco minutos por elas, e o resto por alguém que um dia buzinou em seus ouvidos algo que um dia foi uma das verdades.
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Capítulo 47
o portAl de lourivAl
Lourival pegou a carta e amassou com tanta força que sen- tiu o polegar doer, jogou no chão e, não contente, cuspiu, acer- tando só a lateral do papel amassado, voltou seus olhos para o início da rua, viu o templo, seus olhos começaram a lacrimejar, resolveu sentar em frente a uma loja de tênis, num pequeno muro, respirou pesadamente, passou a mão na testa, tirou o suor que agora insistia em nascer novamente, estava transtor- nado, não podia acreditar que tinha chegado nessa situação.
Entrou no templo.
Calixto passava a mão na testa enquanto olhava no espe- lho, não podia acreditar que aquela noite havia acabado assim num hospital, agora com a testa costurada, como iria trabalhar, o que iria falar para Hamilton? Já havia uma semana que não ia na empresa, agora não podia ir machucado.
O telefone tocou, era Lourival, pedia para se encontrar com ele na padaria ao lado, Calixto concordou, foi ao guarda- -roupa, pegou uma blusa e colocou no ombro.
Não foram mais que alguns minutos de espera e avistou Lourival, estava visivelmente abatido.
Cumprimentou o amigo com uma leve inclinada de cabe- ça que foi correspondida na mesma ação.
Na mesa já tinha um copo de café pela metade, Lourival pediu um curto para o balconista.
Deus Foi almoçar
Sentou.
Em seguida, puxou um pequeno pedaço de negativo do bolso. Tá vendo?
O quê?
Isso, cara, isso é foda demais.
Um negativo?
Que negativo o que, isso é um frame.
Frame é negativo em inglês.
Não, você não entendeu, isso é um frame raro.
Um negativo velho, então.
Porra, Calixto, você é chato demais, é um frame de um

filme, um frame de colecionador.
Tá bom, Lourival, mas você tá melhor? Aquele dia que foi

em casa estava bem mal, hein?
Ah! Deixa pra lá, problema de família, quando você pensa

que tá tudo bem, surge alguém lá do inferno e te aborrece, você sabe, ninguém sabe machucar mais do que família, mas voltando ao assunto, veja o frame, ele é muito raro.
O que está fazendo com ele, então?
Engraçadinho.
Esse é um frame muito especial.
Sei não, parece porcaria. Deve ter milhões.
Mas, Calixto, você não entende, eu vou vender ele hoje,

ele é muito especial, e tô triste por precisar vender.
Você sempre diz isso, Lourival, sempre usa a mesma ideia, fala a mesma coisa, tal cena, tal frame raro, cara, ninguém liga

pra isso, cara!
Que nada, você tá errado, tem muita gente que nem eu. Tem não, cara, não conheço ninguém que tem foto auto-

grafada do Rocco, que tem pasta cheia de matérias do Max Hardcore, ninguém liga pra esses caras.
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Ferréz
Liga, sim, Calixto, eles são conhecidos no mundo todo, você que só consome produto de massa, que não enxerga as particularidades de outras coisas.
Cultura de massa? Quem te disse que filme pornô é arte, então? Me desculpe, eu sei que você gosta muito disso e tal, mas na boa, cara, ninguém tá nem aí se tal atriz se aposenta ou não, o pessoal quer um belo par de peitos grandes, e uma grande bunda loira, e não caras como você.
Como assim caras como eu?
Caras que levam tudo a sério, assim como você mesmo, Lou- rival, mania de organizar tudo, de catalogar, eu conheço dezenas de pessoas que só querem bater uma punheta com um filme, não viver estudando ele, essa coisa é igual os gays, em vez do cara ir lá e gozar, o cara monta movimento, faz palestras, faz passeata, vive organizando isso e aquilo, então o prazer do cara vira uma porra dum serviço, sindicato, organização não governamental, quando na verdade o cara só queria sair com outro cara, viver com outro cara, que se foda, cara, tem que parar de levar tudo a sério.
Ah! Vai tomar no cu, Calixto, cê tá chato pra caramba.
Tô chato, vou até tomar no cu, mas não vou me organizar pra isso, vou lá na esquina e tomo no cu, pronto, sem pro- gramar, sem estudar, sem catalogar, sem protestar, sem nada, porra, todo mundo tem direito de fazer o que quiser, agora a gente chegou num estágio que se o cara vai morar na rua, vai ficar em situação de rua, se mora muito tempo e vende algo é hippie, se num gosta de regras é anarquista, se fuma maconha curte reggae, deixa o cabelo crescer, faz artesanato, porra, em qualquer lugar do mundo tem um cara que quer ser diferente, ele acaba sendo igual a outro, isso é uma merda, olha aí seu café chegou.
Já vi, agora deixa eu te falar uma coisa, eu vou vender,
Deus Foi almoçar
porque preciso da grana, Calixto, eu tô num problema grande, preciso desabafar com alguém.
Olha, Lourival, você é meu amigo, pode falar, fica à von- tade, cê sabe que te considero pra caramba.
Sei, é o seguinte, eu tô pensando mesmo em entrar pra uma igreja.
Mas que merda é essa que você tá falando? Você deve estar brincando.
Não, não tô brincado, cara, é foda explicar, mas esses dias olhei pra tudo lá em casa, sabe? Olhei tudo que juntei, as coi- sas que tenho e fico pensando que sentido tem isso, conversei com uma mulher esses dias, uma tiazinha, ela me falou tanta coisa bonita, ela me deu, assim, esperança.
Lourival, me diz que tá aí dentro porque não pode ser você, isso é papo de manipulador, eles pegam essas tiazinhas, os caras mais desinformados, mas você, num é possível.
Calixto, me escuta, cara, eu num tô falando que vou virar radical e tal, mas tô precisando mesmo ouvir umas coisas boas, às vezes eu tenho ideias estranhas e...
Ideia estranha todo mundo tem, ou você acha que tem alguém normal hoje em dia? Mas isso não é motivo pra você chegar nisso.
Cara, é uma coisa espiritual, algo que tenho que buscar.
Tem nada, tem nada, não, é que nem incorporação, conhe- ço gente rica que é o cão, só prejudica o próximo, e não baixa um espírito nele, agora nas igrejas, veja só, gente pobre, só gente pobre recebe espírito, tá endemoniado, isso é tudo pen- sando pra manipular o povo, Lourival, você sabe mais que eu.
Ultimamente eu não tenho mais certeza de nada, amigo, ando com a cabeça mesmo cheia de coisas.
Calixto pediu outro café, Lourival foi ao banheiro, ali se desfazia uma grande amizade.
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Capítulo 48
não deixAndo Acontecer
A cama desarrumada, coçou o pescoço, algo lhe incomo- dava muito, mas algo o fazia agir diferente naquela manhã, foi direto para o banheiro, jogou água no rosto, mas não se olhou no espelho, muito menos pegou a toalha para enxugar.
Alguns minutos depois de ficar imóvel somente olhando para o canto do quarto, levantou e começou a abrir as gavetas, uma após a outra, coisas bagunçadas lhe davam náusea, mas o tempo perdido as arrumando já tinha ido embora.
Um exemplar, American Splendor, como se fosse um velho jornal, se lembrou também do dicionário que usava para tra- duzir tira por tira, bons quadrinhos, bons tempos.
Lembrou-se das peças de ferro, sim, tratores amarelos de ferro, talvez sejam essas peças que juntas formavam alguma coisa na cabeça daquele menino sozinho no quarto.
Monstro, carro, trilhos de trem, mas quando papai chega- va, ele escondia tudo, assim como as revistas em quadrinhos.
Hoje ele tocou o pênis por cima da calça e não conseguia enten- der o que havia acontecido, cadê o esplendor? E pensando na velha revista, teve a impressão de que estava em alguma gaveta, mofando, esperando para ser relida, como sua vida espera agora ser aberta.
Trouxe as caixas para o quarto, juntou a coleção de qua- drinhos nelas, nunca mais veria as histórias criadas por Bor-
Deus Foi almoçar
roughs, nem os traços fortes de Caniff, e não voltaria a ver as curvas de J. Carlos.
Lacrou a caixa com durex e foi para a estante ao lado, onde foi pegando os discos.
Pensou em ligar para Calixto, se despedir de forma de- cente, mas sabia que o amigo fazia parte daquela vida que ele estava deixando para trás.
Calixto olhou para o quintal e não viu ninguém nele, as fo- lhas caíram e lá ficaram, os anões estavam na mesma posição. Naquele dia foi muito natural, chegou ao serviço cami-
nhando, estava suado quando chegou ao portão, Hamilton es- tava lá, na frente da porta, com um olhar sério, o cumprimen- tou e ofereceu café.
Você que fez?
Não, comprei no bar, quer lanche?
Não, tô bem, vou lavar o rosto.
Você veio a pé?
Vim.
Cadê seu carro?
Deixei em algum lugar.
Você sumiu, tem mais de uma semana que num aparece,

tá tudo bem?
Calixto voltou com o rosto molhado, olhou para Hamilton

e perguntou o que estava acontecendo. Nada, por quê?
Você está estranho.
Nossa, tá tão na cara assim que tá acontecendo algo? Claro, você nunca chega cedo, nunca paga o café e nunca

está sério.
Bom, Calixto, num foi uma decisão fácil, mas eu preciso

do trampo e...
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Ferréz
Fala logo, me diz logo.
Bom, é que eles mandaram te dizer que aqui é grande de- mais para dois e que...
Chega, eu já entendi, você aprendeu o trampo, e eles man- daram esse velho aqui embora, não é isso? Mandaram embora o inútil que te ensinou tudo.
Bom, se fosse por mim, Calixto, eu... quer dizer eu gosto de você e a gente se...
Calixto virou as costas, jogou o copo de plástico com pou- co café no chão, virou a página da vida.
Chegou em casa, levantou os braços e quando a camiseta passou pelo rosto ele sentiu o cheiro, primeiro foi ao chuvei- ro, depois acendeu um cigarro e sentou no sofá, olhando para a televisão desligada.
Foi para o ponto, no caminho parou para falar com um vizinho que pintava o portão.
Bom dia, senhor, podia te fazer uma pergunta?
Pode, sim, mas me chamar de senhor não pode, a gente tem quase a mesma idade.
Não estranhe, por favor, é questão de respeito não de idade. Tudo bem, qual seu nome?
Calixto.
Ah! Prazer, Calixto, eu sempre vejo você passando por

aqui, mas me diga: o que deseja?
Bom, pode parecer estranho, mas o senhor conhece aquela

mulher que está sempre lavando o quintal próximo do ponto? Conheço, sim, há muitos anos.
Então, eu sempre vejo ela aí, parece tão triste, mas sei que

ela tem um filho, e pelo que fiquei sabendo, se não for me cor- rija, ele nunca vem vê-la.
É verdade, o Alex tem pisado na bola mesmo, ele traba-
Deus Foi almoçar
lha lá no Centro da cidade numa empresa, como é mesmo o nome... ah! Knap, não, é Knulp, esse é o nome da empresa, parece que é alemã, mas o que o senhor quer saber de fato?
Bom, era isso, saber se ele não vinha ver ela, só curiosidade.
Ah! Tudo bem, espero que eu tenha ajudado, agora vou voltar a pintar, senão não recebo meu dia.
Tá bom, bom dia para o senhor, quer dizer, para você.
Foi até o ponto e ficou pensando no nome do rapaz, Alex, e no nome da empresa, Knulp.
Pegou o primeiro ônibus que se aproximou, depois de alguns minutos estava descendo no terminal, olhava sempre para o banheiro, mas nunca entrava, acreditava desde peque- no que banheiro terminal de ônibus era tudo sujo.
Mas o bebedouro ele teve que usar, a água pegou primeiro na parte do rosto, para só depois molhar suas amígdalas e por fim a língua e todo o resto.
Perguntou a um taxista onde ficava a empresa, duas desci- das à esquerda e uma pequena subida à direita o fizeram chegar. Falou com o porteiro e logo um rapaz de camisa branca e
gravata azul desceu e veio caminhando até o portão.
Pois não, eu te conheço?
Bom, é que você vai achar estranho, mas vou falar logo de

cara, pois estou partindo e não posso mesmo... bom é que... Qual o nome do senhor?
Calixto e eu...
Eu te conheço?

Não, mas eu conheço sua mãe e...
O que houve com minha mãe? Fala.
Nada, calma, é que preciso te pedir para você ir ver

ela, pois...
Isso é algum trote, alguma brincadeira?
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Ferréz
Não, por favor, é que ela tem saudades, você nunca vai ver ela e...
Cara, quem é você, ou quem pensa que é? Vem aqui falar da minha mãe? Está faltando alguma coisa para ela? Por que você num toma conta da sua vida, você é louco por acaso?
Não é que ela, ela tem saudades...
Filho da puta, se enxerga, vem a essas horas me encher o saco. Foram as últimas palavras, antes do soco atingir o rosto de

Calixto, e depois que caiu, os chutes, que só pararam quando os guardas saíram da portaria e seguraram o rapaz que antes de entrar para e empresa ainda gritou:
Minha vida num é um livro aberto, se voltar aqui eu te mato.
Calixto foi até uma farmácia, como sangrava muito a bal- conista saiu correndo apavorada e foi chamar o farmacêutico, que estava almoçando no bar ao lado.
Alguns minutos depois, o rosto tinha alguns esparadrapos e gazes, e Calixto foi orientado a ir a um médico para fazer no mínimo cinco pontos.
Capítulo 49
tudo que A terrA dá tAmbém consome
Passou a mão na ferida, após dois dias já estava cicatrizan- do, o telefone tocou mais uma vez, ele olhou e esperou parar.
Ouviu o vento enquanto se vestia, e o lugar já não tinha mais nada de agradável, na bolsa algo para a higiene pessoal e algumas recordações, um pequeno caderno com algumas his- tórias, uma carteira com pouco dinheiro e números de telefo- nes, duas cuecas, uma camiseta, uma bermuda, o cinzeiro de mármore que ganhou de presente no casamento e duas minia- turas de super-heróis que sempre mantinha na mesa.
Bastava aquilo para ir, não precisava de mais, a gente nun- ca precisava de tanto, era o que acreditava.
Foi olhar quando o barulho chamou sua atenção, um der- rapar dos pneus no asfalto.
Saiu para a rua.
Não devia ter olhado: o rosto comprimido no para-brisas; os vidros voando e saindo, apenas algumas gotas de sangue; as lembranças indo embora.
Tudo vai embora numa fração de segundos. O abandono era mais grave que a prisão em si. Sim, o abandono foi sua maior escola, a solidão chegou devagar, e, só assim, sem com-
220 |
Ferréz
panhia, sem cartas, sem visitas, começou a repensar sua vida ou pensar nela pela primeira vez.
Nem a grande festa que havia preparado para a filha, nem a conta de luz atrasada, nem a visita que deixou de fazer à sua tia no hospital, muito menos a revista não lida, a agenda lotada no escritório e o cigarro não fumado. Nada disso importava agora, que seu rosto estava todo cortado, que seus olhos ha- viam saltado numa tentativa desesperada de verem algo além da morte.
Foi assim, uma simples fechada de outro veículo, que per- deu seu bem mais precioso.
O céu não é azul, ele reflete o mar, mas para quem estava livre, para quem estava nessa situação, o céu não era mais nada. Algumas pessoas pararam, outras correram, tentando sal- var suas rotinas, ele continuava imóvel, sempre foi assim, des- de pequeno, perante alguma situação com a qual não sabia
lidar, paralisava.
Vendo a imagem do carro se chocando contra o poste,

tentava equilibrar a tristeza, mas estava sendo nesse momen- to inundado pela dor, e sabia que, depois de alguns minutos, parentes seriam avisados, médicos chamados, seguros, aciona- dos, e, pela mágoa, seres fragmentados.
Agora tudo estava parado, o rosto continuava fixo ao para- -brisa, os braços estavam para trás, o poste havia encurvado um pouco, e o carro assumiu uma estranha aparência de algo vivo, com a boca passando pelo poste, no intuito de comê-lo, com os olhos fixos como se estivesse olhando algo que não pudesse tocar mais à frente.
Ninguém saberá que aquele jovem é o mesmo que há vinte e nove anos era somente uma criança de menos de um ano de vida, e que seu pai lhe colocava num pedalinho e o empurrava
Deus Foi almoçar
contra uma parede, e o menininho sempre ria muito quando sua cabeça ia para frente e pra trás, quase batendo.
Uma senhora chegou correndo e se desesperou, cabelos quase brancos, pernas magras, vestido surrado, mas com pre- silhas no cabelo, pulseiras coloridas no pulso, a mulher que sempre lavava o quintal.
Um jovem tentou abrir a porta, Calixto continuava para- do e olhando. Um homem mais velho tentou ajudar o jovem. Calixto continuava parado, seu coração acelerando. Uma se- nhora tirou um celular da bolsa, discou uma sequência de três números e começou a gritar sobre um acidente; Calixto conti- nuava parado e agora pensava em Deus. Uma viatura chegou, os homens seguravam os revólveres ao saírem do carro, para logo depois olharem a vítima e darem o veredito.
Aquele homem que um dia foi um menino, que falhou em não dizer que amava sua melhor amiga, matou esse amor pelo medo.
A alma havia abandonado o corpo.
Não daria tempo para relembrar a varanda da casa, nem as flores na janela.
Calixto continuava parado desde que reconheceu Alex.
A casa era modesta, mas ele estava seguro, não tinha medo de nada quando estava do lado de dentro.
A mãe, a todo momento, cuidando das flores no quintal.
Agora estou parado em meio a esse caos, não vejo meu pai por perto, com seu suor no rosto.
Todas as casas próximas têm as janelas fechadas, ninguém está presente nesta vida.
Não queria escutar o grito em meio à multidão, as mãos da mãe tentando puxar a cria, não deviam deixá-la ver isso, eu não devia ter ido no serviço do menino.
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Ferréz
Estou indo embora, pensei que ia entender tudo, mas está cada vez mais confuso, e agora sei menos do que antes.
Ninguém saberá que aquele corpo leu o anúncio colorido dos envelopes de Dipn’Lik, que beijou uma menina na escola enquanto chupava um Dulcora, que queria ter um eletrofone, que bebeu Grapette com sua irmã, que jogou bola sem Kichu- te, que nunca teve um Lango Lango, que escutou “Meu mel” do Markinhos Moura, que procurou a mãe de Marco em todos o capítulos daquele triste desenho, apertou a barriga do Murfy, montou castelos com Pinos Mágicos, chupou pirulito Zorro, ninguém saberá que ele ficava de madrugada vendo revistas pornô do primo debaixo do lençol, com a lanterna iluminando as imagens, e que aquilo era muito melhor do que o sexo que veio praticar depois.
Calixto saiu de perto daquela tragédia, caminhou, com- prou uma garrafa d’água, tomou, parou por alguns segundos, entrou em casa.
Ouviu o vento enquanto se vestia, e o lugar já não tinha mais nada de agradável, na bolsa algo para a higiene pessoal e algumas recordações, um pequeno livro com algumas menti- ras, uma carteira com pouco dinheiro e números de telefones, duas cuecas, uma camiseta e duas miniaturas de super-heróis que sempre mantinha na mesa.
Bastava aquilo para ir, não precisava de mais, a gente nun- ca precisava de tanto, era o que acreditava.
Visualizou o ponto e escolheu um destino: rodoviária.
A mala foi colocada depois dos portões verdes, cercas mo- dernas para os animais de aço.
O ônibus engoliu a bagagem e agora engolia os passagei- ros, entrou no bicho e ficou pela primeira vez em meses sur- preso quando olhou para o motorista, era um sujeito comum,
Deus Foi almoçar
camisa azul como todos da empresa, mas um detalhe o deixou parado no corredor, o chapéu de aviador que usava.
O mesmo homem, outra situação.
Fui entrar, mas o motorista pediu o RG, então mostrei, ele apontou a cadeira, número vinte e dois.
Não veria mais sua paixão, a mulher do quintal, nem o filho dela, nem Carol, não veria mais sua pequena filha, não veria mais casas amontoadas nem sonhos despedaçados, nem falaria mais com Lourival, aquele crente maldito.
As imagens passavam, mas ele não associava com nenhu- ma experiência pessoal.
O sangue descia, foi no banheiro, retirou o curativo e la- vou bem, depois colocou novamente.
Duas paradas e não desci em nenhuma, abaixei o banco e consegui um pouco de paz.
A pequena cidade, a banda tocando, a lembrança da esco- la, Melinda sua menina gordinha, sua primeira paixão.
Dedo esfolado. Pai policial.
Os dois na praça, no banco, o pequeno dedo delicado e esfolado, os pés balançando, o pai era polícia, ela tinha um vestidinho azul, o pai devia ter matado alguém. Ela tinha uma pulseira rosa, o pai tinha uma amante.
Ela não veio para o encontro na praça, era casada, devia ter tido algum problema.
Olhava pela janela e retirou a colher do bolso, olhou para ela por alguns minutos, sabia que na verdade não estava indo atrás de velhas lembranças, mas se encontrasse alguma não lhe faria mal.
Minha filha, minha pequena menina.
O pezinho dela encostado no meu, eu ficava em forma de concha com os joelhos no estômago para ficar do tamanho
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dela. Aquecia o pé dela, era meu fruto, gerada de meu órgão. Tão pequena, fazendo um bem tão grande.
A dormência no braço esquerdo, os olhos cheios d’água, o sorriso do pai e a mão macia da mãe. As dobrinhas no joelho, os textos na escola. A caneta azul, os amigos rindo na classe. O giz quebrado no canto da sala, a mão levantada.
Ela me mostrava o pé, a meia tinha três cores, uma marca- va o calcanhar, as outras duas mais em cima, com tons leves, todas as roupas de crianças têm tons leves. Sempre subia quase encostando na minha cara, eu fingia que o cheiro estava ruim, fazia um barulhinho assim, como um hum! Ela ria muito, pa- recia que não se controlava, os dentinhos separados me faziam rir também, e logo ela levantava o pé novamente e falava:
Pé.
Não sabia explicar por que, mas aquilo não prendeu seus pensamentos por muito tempo, na verdade o desviou para Alex, o filho da mulher do quintal. Como ela estaria depois daquilo tudo?
Eram perguntas demais para alguém que não sabia o cami- nho da própria vida.
A viagem foi tranquila, três paradas, três cafés puros, uma ida ao banheiro e nenhuma conversa.
Desceu, pegou a bagagem, sentou na primeira praça que encontrou, fechou e abriu os olhos, depois abriu a boca, o ar entrou, mexeu na bolsa e retirou o livro.
Antes de abrir olhou à sua volta, muitas casas, sempre comparava as janelas com olhos e portas com bocas.
Conferiu, faltavam só duas páginas.
Desde que começara a ler tinha essa mania, no começo podia controlar, depois deixou.
Passar as páginas e ver o tanto que faltava: duas páginas.
Deus Foi almoçar
O pequeno muro de tijolos não o incomodava, nem tam- pouco a sombra da árvore que lhe manchava meio livro.
Virou, entusiasmado pela história. Parou e olhou para as casas à sua frente, subiu as vistas e viu as montanhas verdes. É um longo caminho até entender por que o homem deu o nome de natureza.
Um caminho muitas vezes de ignorância e de falta de res- peito à sua linguagem. Uma falta de familiaridade, de tato para sentir a maciez de algo não produzido em alguma indústria, de poder ouvir também que até o silêncio pode te transmitir.
Perdemos isso, jogamos fora como amarramos nossos res- tos e os dispensamos duas vezes na semana.
Ainda que veja, o homem não mais admira, ainda que note, o homem não mais sente, o musgo, o balançar das folhas e suas infinitas cores, o inseto dando seu rasante, as nuvens no céu, se movendo lentamente a nossos olhos, a árvore e a mol- dura de suas raízes que teimam em sair do chão como se fosse fazê-la caminhar.
Odiamos a natureza, ela nos deixa menor, nos dá a sen- sação de inferioridade, ficamos inertes, sendo somente o que somos, algo a mais nessa grande área, como macacos, leões, lesmas, fungos, somos mais um, nesse momento não podemos organizar, catalogar, fotografar, adulterar.
Quando olhamos atentamente para ela, tocamos sua água que simplesmente sai por entre as rochas e continua saindo e caindo por elas, e num ciclo sem fim o brilho do sol toca a água, que continua a cair, para o simples fato de continuar existindo vida ali, pensamos em canos, em produção, em des- perdício e em como podíamos aproveitar aquilo para algo de valor, um valor que nós mesmos definimos como tal.
No final, só sentimos que mudamos tudo, adaptamos, de-
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vastamos, reproduzimos, imitamos e como saldo final, estraga- mos tudo.
Calixto estava somente a admirar. Saber que pode ficar horas olhando, e apesar de achar com limitada sabedoria que já viu de tudo.
Que se dane, vou terminar de ler esse livro logo, ele está mexendo comigo, fico assim, pensando em tudo, aí perco o foco e acabo não me concentrando no que importa.
Voltou seus olhos para a sociedade, um homem se aproxi- mava, voltou ao livro, virou a página, faltava uma frase, o ho- mem segurava uma menina, voltou para a última frase escrita na página e, antes de ler, olhou novamente para a menina, era a mesma, a mesma do sonho. Tentou ler a frase rapidamente e voltar a olhar para a menina. A frase era a fala da menina.
Ontem eu coloquei uma máscara, e era meu verdadeiro rosto.
Capítulo 50
voltAndo pArA o desconhecido
Caminha pelas ruas e não reconhece nada, os paralelepí- pedos deram lugar ao asfalto, o casarão na esquina e seus fa- mosos painéis de mosaico não estavam mais lá, no lugar ape- nas um muro rodeando todo o terreno, ao lado de onde era a barbearia, onde tantos conselhos ouviu do senhor Onofre, havia uma loja de sapatos, as atendentes com seus uniformes padrão, com seu sorriso padrão.
Descendo mais o quarteirão era a padaria com seus azu- lejos azuizinhos, sua vitrine cheia de pães doces, rocamboles, bisnagas, agora era uma casa velha, cheia de cartazes de shows, e suas paredes cheias de buracos.
Calixto parou em frente, pôs as malas no chão, olhou por um dos buracos, e viu os papelões, caixas de feira e todo tipo de lixo lá dentro, então virou à esquerda e olhou para onde antes era a escola, ele só reconheceu por ficar perto do final da rua, pois a antiga casa com quatro cômodos, um lindo jardim, e uma entrada toda de pedras, onde ele tanto corria na hora do recreio, e onde sua mãe vinha buscá-lo todo dia e lhe dava um grande abraço, perguntando como havia sido a aula, o que tinha aprendido naquele dia, não estava mais lá. No lugar uma caixa de cimento pintada de azul, com oito janelas de alumínio totalmente iguais, com quatro andares e nenhuma planta, e
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um homem com colete, gesticulando para o carro entrar numa determinada vaga.
Caminhava mais e se lembrava do pai fumando, com o olhar sempre para a frente, e a mãe com as sacolas da feira, domingo era o dia de que mais ele gostava. Pastel de carne ou de queijo? Refrigerante ou caldo de cana?
No lugar da feira, várias fileiras de carros, não se sabia se existia mais a calçada, era toda preenchida pelos automóveis.
Era ele aí, pequeno, saindo logo pela manhã para dizer ao pai se a quitanda já estava aberta, e se o japonês já tinha come- çado a matar os frangos.
A mãe arrumava a casa toda, e por último lavava o quintal, no sábado já tinha deixado tudo pronto para a chegada dos parentes, que todo domingo vinham. Sorrisos, casos, fofocas, correria, lágrimas, eles conversavam o tempo todo, e o macar- rão com frango lhe sujava toda a camisa.
Chegou ao portão, uma senhora lavava o quintal, cabelos quase brancos, pernas magras, vestido surrado, mas com pre- silhas no cabelo, pulseiras coloridas no pulso e, quando olhou para ela, viu que ela ainda estava lá.
Sua mãe.
Capítulo 51
meninA demAis
É madrugada, alguém leva outra pessoa para juntos não chegarem.
Alguém lava pratos e deixa cair água dos olhos numa casa de aluguel.
Alguém descobre que ninguém é dono de nada.
É madrugada, alguém atravessa uma ponte em Madison. Estou sozinha agora, a pequena dorme, e finalmente estou

sozinha agora.
Meu nome não é Francesca, nem Moll Flanders, mas eu

tenho alguns motivos pra viver também.
Ele chegou tarde, eu não vivo a relação como ele, eu não

lavo louça como ele, nem faço café como ele, eu espero que ele pergunte, que adivinhe a mudança, que me faça sentir que estou aqui dentro dessa casa, que um dia foi um ninho.
Cruza a sala, ao banheiro ele chega.
Mais atenção ao barbear do que ao se trocar, menos es- paço entre o passado e o beijo que dará no futuro, em outra alguém. Pois na chegada os lábios molhados viraram somente um pequeno olhar de soslaio, daqueles que a gente faz pra algum carteiro, quando não espera de fato correspondência.
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Ferréz
Em algum lugar, um rato está preso em uma cômoda, onde um pequeno espelho mostrou tantas vezes para uma menina, que o tempo é implacável com as pessoas.
A planta foi aguada, a terra revirada, o chão varrido, as panelas guardadas, a comida cozida, a teia arrancada, a cama arrumada, a janela lavada, a roupa passada, a vida guardada, o amor jogado, o carinho deixado de lado.
Se ele ao menos fosse um fotógrafo talvez me olhasse como algo que pudesse se assemelhar a uma imagem.
Alguém joga oitocentos e oito quilos de aço e plástico mais setenta e cinco quilos de carne contra um poste, uma senho- ra que lavava o quintal sai correndo, ela tem cabelos quase brancos, pernas magras, vestido surrado, mas com presilhas no cabelo, pulseiras coloridas no pulso.
Ele não tirou os sapatos ao entrar, ninguém nunca tira os sapatos ao entrar num lugar que não ama.
Sempre cuidei dele muito bem, deixando o que ele gosta sempre perto, nunca viajei para que não o fizesse infeliz, minha mãe morreu em abril, pedi a um primo para me enviar uma foto do enterro, todos estranharam, mas japoneses filmam velórios.
Suas meias não estarão enroladas na semana que vem, nem suas camisas passadas.
Ele parece não ter entendido direito, não me viu chorar, nem gritou para que não acordasse a pequena, o que eu fiz foi deixar aquilo tudo muito claro, racionalizar para resolver o problema.
Capítulo 52
Antes do cAos, existe A cAlmAriA
Chegou em casa, não se lembrou de tirar o sapato, a dor nas costas era seu problema maior. Olhou para ela e teve von- tade de beijar.
Estava com vestido branco, cabelos negros e compridos, brincos grandes que iam até o pescoço, ele gostava daquela aparência, fora dos jeans, ao inferno com as malditas camisas básicas.
Não a beijou.
Olhou para o espelho e deu uma ajeitada no cavanhaque, teve vontade de caprichar mais, de se empenhar para que fi- casse certo, mas sabia que o certo era um ponto de vista.
Ligou o chuveiro e jogou as roupas no cesto.
Alguns anos atrás eles fizeram amor pela primeira vez na- quele mesmo lugar.
Molhou os cabelos que ainda restavam e a água aos poucos foi descendo pelas costas, água quente que fazia o uso dos re- médios para as costas agora serem desnecessários, retirou um a um e jogou no lixo, talvez as costas agora melhorassem.
A cura na esperança.
Inclinou-se e deixou a água cair sobre a dor, ela fingiu ir embora, mas ficou.
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Ferréz
Pegou a toalha branca, passou no rosto, ela cheirava a Frei- re, um produto C&C, queria dizer rosas, mas esses produtos nunca cheiravam a rosas nem nada disso, tinham um cheiro tão próprio que dava para dizer logo de cara qual era a marca.
Saiu ainda pingando, nunca se secava direito, talvez isso lhe desse algo no futuro, como uma micose nos pés, preço bai- xo ao se pensar no tanto de tempo que teria que gastar todos os dias para secar os pés, e ainda o problema com as costas, um remédio para micose custa 6 dinheiros, um esparadrapo para aliviar era perto de 10 dinheiros.
Ela passou para a cozinha, ia servir a sua janta, ele pensou em pegar ela por trás, dar um pequeno beijo na nuca, após levantar seus cabelos. Ficou sentado esperando ela servir.
Ela passou por trás dele, olhou as gotas de água que caíam na camisa branca, os pelos que insistiam em sair da sua nuca e inva- dir o colarinho da camisa que um dia foi comprada para fazê-lo rir, embora ficar mais velho a cada ano não fosse engraçado.
Alguém abraçava, beijava, acariciava e penetrava por di- nheiro, enquanto ela servia a comida de Calixto por obrigação. Tinha ouvido de uma amiga que a parte boa era o namoro,
que casar era bater cartão.
Alguém começava a namorar naquele instante, não saben-

do que outro alguém esperava os minutos passarem, a comida descer na barriga para terminar com uma farsa que um dia foi chamada de amor.
As gotas secaram, os pratos esvaziaram, a barriga foi enchi- da, a criança acordou, uma garoa fina começou, alguém para alguém jamais voltou.
A pequena beijava o pai e enchia os olhos da mãe, que só segurava toda aquela mentira por momentos como aquele, mas no fundo sabia que pra menina também ia fazer mal viver assim.
Deus Foi almoçar
Dez minutos depois, o homem magro deixou a menina em frente à televisão, ela que brincasse, conversasse e orientasse a pequena.
Ela serviu um rum, ele perguntou onde achou. Saint Ja- mes, da Martinica, comprou no empório, tanto tempo que queria que ele bebesse.
Olhou para ela, sentiu-se perturbado, não era todo dia que bebia algo que Hemingway bebeu, e sabia que aquela mesa não estava como Paris, não era uma festa.
Pegou nos cabelos, jogou-os para trás dos ombros, passou as mãos pelas ancas como quem limpa algo, sentou e antes de falar para aquele homem que não o queria mais como marido, lembrou-se do pequeno livro vermelho que havia lido quando começou a frequentar uma igreja a convite de sua prima.
Calixto olhou e viu toda aquela gente, nunca tinha sido cercado de pessoas antes, nunca havia sido tão notado.
Sua juventude, o melhor modo de usufruí-la, talvez pelo primei- ro desenho do livro, um jovem vestido com uma blusa de lã que segurava uma bola e caminhava num bosque ao lado de outro rapaz e uma moça, os dois também com blusa de lã, a moça usava uma saia azul, meias brancas, e segurava um vio- lão, logo abaixo deles estava outra moça com traços orientais, segurando um pincel e apontando para um quadro cheio de flores, e do seu lado estava outro rapaz, encostado numa pe- dra, com um livro aberto e sorrindo.
Para ela, sentada naquela mesa, com as mãos em forma de oração e querendo de vez acabar com tudo aquilo, Calixto não era mais aquele jovem.
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Capítulo 53
finAl de temporAdA
Uma música não tocava porque alguém não a escrevera, um motorista não dirigia porque não passara na entrevista para o emprego, uma padaria não estava aberta, pois alguém colocara uma placa sobre o dia de luto na porta, um jovem não voltaria para casa nunca mais, uma pedra era chutada, uma cerveja aber- ta, uma moto batia, uma vidraça era limpa, uma situação não se repetiria nunca mais, um novo erro era cometido, um musical seria montado, um novo filme era visto, uma nova prensagem programada e uma menina perguntava para sua mãe:
E essa foto, mamãe?
Foi quando fomos ao zoológico, essa é você bem pequeni- ninha, e seu pai.
É o papai? Ele tá tão diferente.
Ele tinha mania de deixar o cabelo grande, embora fosse óbvio que estava ficando careca.
A mãe foi passando as fotos, mostrando o que queria e es- condendo rapidamente as que o mostrasse transtornado, tam- bém não falou nada quando a menina perguntou se não tinha nenhuma foto de todos eles juntos.
Quando a pequena perguntou isso, a mãe lembrou na hora que num final de semana, sem mais explicações, o pai come- çou a pegar as fotos e pôr fogo, quando ela percebeu já havia
Deus Foi almoçar
queimado centenas, as poucas que sobraram eram aquelas que ela conseguiu esconder.
Colocou a pequena no colo e se lembrou dela no enterro falando:
Papai, acorda, acorda, papai!
A pequena menina de vestido, falava que a máscara... Enquanto olhava o pai ali, deitado, todo rodeado de flores,

um profissional fazia cimento.
A pequena segurava algo nas mãos, um livro de histórias

infantis, os personagens na capa, um piloto de avião com um chapéu azul da esquadrilha da fumaça, um outro homem com um monte de discos e revistas em quadrinhos nas mãos e uma mulher ao fundo lavando um quintal e sorrindo.
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Capítulo 54
o seletor sempre girA
A pequena chega, corre ao quarto e mexe no seletor da televisão, o desenho começa a aparecer lentamente na tela.
Calixto vai à geladeira e busca um iogurte, pega a pequena colher e começa a alimentar a menina, que, enquanto come, pula, dá a volta no sofá e só para de correr quando liga tam- bém a televisão da sala.
Para que as duas ligadas, minha pequena?
Gostoso, papai, bastante gente.
Ele sorri, sabe que as vozes das caixas enchem a casa.
Vai ao quarto e veste a blusa.
Eu vou ao quarto, olho no espelho da penteadeira, embaixo

suas escovas, seus cremes, suas maquiagens, algumas lágrimas caem quando vejo meu próprio rosto e não vejo nada além dele, tudo para ali, na aparência, sem passar um milímetro disso.
Quando vai trabalhar ela o abraça.
Quem é o nenezinho do papai?
Sou eu seu nenezinho.
Na garagem quando vai procurar a chave do carro, ele sen-

te a colher no bolso, decide voltar e mostrando a colher para ela pergunta por que estava no seu bolso.
Eu sorrio para ela, queria ver ela crescendo, queria poder opinar nas horas que ela precisasse, queria poder orientar ela
Deus Foi almoçar
durante mais alguns anos, mas sei que são ruas que não vou chegar a percorrer, o tempo passa, as cobranças aumentam, não posso mais segurar essa relação assim.
As bolsas estão ali, Calixto fecha o livro depois de ler a última página, sabe que não vai mais a nenhum lugar, não vê ninguém conhecido passando, põe a mão no bolso, retira a colher, beija várias vezes, coloca contra o peito e cai.
Por que colocou essa colher no meu bolso, minha linda?
É pra você sempre me dar Danone papai, pra não esque- cer de mim.
Pra não esquecer de mim.
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Capítulo 55
o portAl
O sol sangrava silenciosamente, assim como o andarilho que, apesar de levantar poeira com seu andar apressado, não promovia barulho algum.
Despertou, notou a colher na mão, enfiou no bolso e tentou esti- car os braços, mas não conseguiu, tentou mexer as pernas, mas nada aconteceu, então tentou se levantar, mas o corpo não obedecia.
Estava acordado, tinha certeza, mas era como se estivesse dormindo, o lugar todo estava nublado, era como se estivesse dentro do flashback de um filme.
Fechou os olhos novamente, concentrou-se e, dessa vez, ao abrir os olhos já estava de pé.
Caminhou pelos ladrilhos da rua, eles estavam molhados com algo que mais parecia sereno do que chuva.
Avistou um grande batente de madeira, e só quando se apro- ximou viu que havia uma porta, uma porta com uma fechadura onde o buraco da chave parecia ser de um formato familiar.
Sentiu algo ficar quente em seu bolso, tirou a colher e instin- tivamente colocou na fechadura da grande porta, ela se abriu, o portal estava à sua frente.
Passou por ela, e não havia paredes, nem teto nem nada den- tro que lembrasse uma casa, somente gavetas, centenas, milhares. Gavetas de baixo até o alto, gavetas onde deveria ter um teto, gavetas por todos os lados que olhasse. Foi até a primeira, puxou o simples puxador e ela se abriu, dentro havia um pequeno cisne bran- co, feito de bolinhas de gude e Durepox, as lembranças invadiram
Deus Foi almoçar
sua mente, fechou os olhos por alguns segundos, não ouvia mais os chiados, não estava mais ali, não se importava mais com nada, não tinha problemas, muito menos soluções, não acordava cedo, nem passava a noite em claro, naquele instante ele soube, olhando no- vamente para o cisne branco, que havia visto isso dezenas de anos atrás, quando era pequeno, numa casa aonde sua mãe o levara.
Foi mais a frente, abriu outra gaveta, dessa vez mais no alto, onde teve que empinar o corpo e se esticar para alcançar, dentro tinha uma fatia de queijo branco. Fechou os olhos novamente e viu, na infância, sua mãe, ela trabalhava na casa de um homem chamado Paulo Sérgio, embora trabalhasse há anos, nunca o tinham visto na- quela casa, lá só tinha outras pessoas, talvez parentes distantes, todos os dias eles tomavam café juntos, ele no quintal olhava o enorme queijo branco da mesa, tinha vontade de ser um deles, de estar com a família, de comerem juntos, falarem de coisas de família.
Caminhou lentamente enquanto olhava todas as gavetas uma por uma, como quem passeia por um memorial procurando um nome.
Parou depois de alguns metros, abaixou e abriu uma das pe- quenas, dentro tinha um boletim escolar, com notas boas em por- tuguês e ruins em matemática, tinha seu nome no boletim, e a assinatura do seu pai.
Seus olhos se encheram de água, guardou o boletim dentro da mesma gaveta, foi mais a frente, abriu outra, viu uma más- cara, fechou. Abriu outra, fotos com sua pequena menina no zoológico, ele havia queimado todas elas, ele havia se arrepen- dido tanto, tudo junto naquele momento, ele infeliz dentro de casa, a cabeça cheia de problemas, não conseguia brincar com ela, não tinha tempo para nada, queimou as fotos.
Fechou, abriu outra, uma revista em quadrinhos, fechou, abriu outra, uma lata com linha de soltar pipa, fechou, abriu outra e era uma foto de Carol, olhou por alguns segundos, abriu outra, a camisa que seu pai sempre usava, fechou. Abriu outra, um volan- te quebrado, fechou, abriu outra. Um seletor de televisão.
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Este livro foi composto em
Berthold Baskerville,Courier New e Trajan Pro, para a
Editora PlanEta do Brasil
em junho de 2012.

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