Blog do escritor Ferréz

Conto do livro Ninguém é inocente em São Paulo (Selo Povo)

Buba e o muro Social                                                                                         


Eu até tinha muitas coisas legais para brincar, um ursinho de pelúcia que eu sempre mordia logo pela manhã, e durante o resto do dia.
Também corria para comer a ração que vinha sempre macia, pois meu dono a mergulhava em água morna, eu também ficava fingindo que estava guardando o portão.
Foi meu pai que me ensinou, ele disse assim:
-          filho! A nossa raça é muito conhecida por ser tranqüila, mas precisamos ser mais do que somente cães bonitinhos e engraçadinhos, o mundo moderno exige que tenhamos mais serventia, do que somente nossos olhos caídos e babas escorrendo.
-          A realidade filho é que os Pitt Bulls estão na moda, e nós estamos ficando pra escanteio, certo, certo que
agente já sabe onde isso vai dar, que quando eles querem um carinho eles veem para nós os Basset que são os melhores, os Hound.
Bom, meu pai era um cara muito inteligente, mas perdi o contato com ele assim que seu dono me vendeu, então eu vim morar com o Moza, que é um cara super 10. Vive saindo a note pras baladas e eu tenho um puta medo de ficar sozinho, mas seguro as pontas, pego meu ursinho e sem ninguém ver eu o agarro com todas minhas forças.
É pessoal, minha vida até que estaria sendo boa, se não tivesse acontecido do Moza precisar de dinheiro e ter me vendido.
Cara, cês num vão acreditar, eu tinha saído de um pet shop chiquérrimo a poucos minutos, tinha tomado um banho chapado e até uma gravatinha tinha ganhado, confesso que uma cadelinha ficou pagando um pau, mas eu fingi que não vi, se sabe né, agente tem que dar uma de difícil, e também confesso uma coisa, eu fui operado quando era bem pequenininho e não posso cruzar, mas faz favor heim! comenta com ninguém não.
Bom, mas continuando o assunto, veio um fusca, um cara muito mal encarado e me pegou nos braços, depois deu um papel para meu ex dono e saiu comigo no carro, o cara dirigia mal pra cassete, e eu fiquei com uma vontade de fazer pipi mas me segurei.
Cara cês num imagina o medo que me deu, eu fui saindo de perto daqueles prédios bonitos e umas casas grandes de cachorro foi aparecendo, nossa parecia que eu tava indo para uma terra de gigantes, fiquei imaginando o tamanho que eles mediam, mas depois me espantei quando vi gente saindo daquelas casas, depois os cachorros que conheci na rua me explicaram que eu estava entrando numa favela.
Sabe aqueles banhos no veterinário? Nem pensar, e a ração gostosa e úmida, nunca mais, depois desse dia estou vivendo somente com ração de combate, e algo louco aconteceu, eu posso ficar dentro de casa, e até dentro do lugar que meu novo dono trabalha, ele fica o dia todo em frente a uma espécie de televisão e fica mexendo os dedos, já ouvi alguém dizer que ele é escritor, mas nunca consegui ler o que ele escreve. Toda vez que chego perto ele logo me dá um carinho e para o que está fazendo, para ficar me olhando com ternura.
Sabe, a primeira vez que choveu, eu tomei um puta susto, pois começou  a encher o quintal de barro, e depois também fiquei sabendo que aquilo era uma enchente, segundo alguns cachorros, uns bichinhos que eu vi e queria brincar na verdade eram ratos, e me orientaram a não chegar perto.
Bom, minha vida mudou muito, as vezes tenho saudade do meu ursinho, mas aprendi a sobreviver aqui, e tenho exemplos de muita vitória, como são os vira-latas, nossa! eles passam cada situação.
Eu quase não faço barulho, também não olho o portão, porque não precisa, é todo mundo conhecido e fica entrando gente o dia inteiro, eles bebem café e conversam durante horas, eu fico esperando a noite chegar, pois no prédio que eu morava eu não via umas luizinhas no céu, e aqui eu consigo ver, e de vez em quando aparece uma bola prateada muito bonita, eu adoro viver aqui, o céu é azul e não cinza como lá.

Bom! É isso, vou sair daqui agora, se meu dono me pega escrevendo eu tô perdido.

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