Blog do escritor Ferréz

A maioria

Uma pena, pois a maioria aqui foi pra praia e pronto, tá feito o feriado, poucos conhecem a maravilhosa data, a luta para conquista-la e assim vamos brincando de país, brincando de um povo evoluído, onde cada vez mais se abre franquia de bebidas e menos livrarias. Conhecimento é a cura, e o sistema é a doença. Pena que no dia-a-dia a cultura não seja prioridade, por isso o trânsito está assim, mostrando a cara mal educada de um povo, que pode ser até universitário mas não compartilha de bondade nem exerce a educação.

A natureza de Nêgo J. (conto do livro Os ricos também morrem)


A natureza de Nêgo J.

Pediu para agente ir com ele, ninguém botava muita fé no que falava.
Não era nada sério, tipo o cara não tem palavra na quebrada, era mais uma coisa assim, como ele brincava muito, pouca coisa era tida como verdade.
Não sabia bem o que queria da vida, não que isso também importasse, afinal não faria diferença se ele quisesse ter outros planos, sua vida era mais ou menos como a dos outros moradores, parecida assim como uma folha carregada pelo vento.
Já tinha três filhos, o nego na frente do nome não era bem o efeito da sua cor, era um apelido mais por falta de criatividade, afinal tantos, pernambucos, cearás, que não tinha mais vaga pra ninguém. 
Era estranho sim o jeito que se vestia, chapéu de couro, botas longas, sempre com a camisa aberta e de bermuda jeans, quem olhasse ao longe já veria que aquele homem não se olhava no espelho, muito menos escolhia roupa para usar.
A casa perto do córrego também tinha um ar de abandono, os filhos viviam brincando no escadão  que dava acesso a Cohab. Subiam e desciam correndo, com um risco tremendo de caírem dentro do córrego.
De uns tempos pra cá começou a aplicar nesse carro véio, um Corcel cortado na traseira, adaptado tipo caminhão, com um monte de madeira servindo de baú.
Dentro dele tinha tudo, quando fazia bico de pedreiro carregava, pá, enxada, andaime. Quando decidia catar papelão era outros quinhentos. Quem nunca viu Nêgo J. molhando a imensa pilha para pesar mais.
Como morava próximo a Cohab sempre olhava para o morro cheio de lixo, pensava que podia ser uma floresta, até o dia que pirou o cabeção e foi lá com uma enxada cavar e plantar,
Muita gente gozou desse homem nessa época, tava maluco, fazer plantação em beira de favela era coisa de desocupado, mas Nêgo J. nunca ligou pros zoutros, se não teria que mudar sua maneira de ver as coisas, e já se achava velho pra isso.
E num é que o barranco virou uma plantação bonita, chamada por ele de “meu sítio” e quando ficou pronta que ele parou de envolver agente nesses passeios onde sempre agente terminava em frente de um terreno cheio de mato, onde ele falava que um dia ia comprar.
Mas nóis é tudo da quebrada, e sabe que história bonita não dura, e o “sitio” de Nêgo J. virou ponto pra maconheiro, pra catar mulher e mais um monte de besteira, que o homem nunca aprovou. Acabou foi abandonando o lugar, cheio de mato que ta lá agora.
Foi mais legal a época da mobilete, o bicho fez uma obra grande, chapiscou parede até a mão engrossar e com esse dinheiro sacou uma mobilete, a bicha fazia um barulho monstro, parecia mais um trator, quem chegasse naquela hora, antes dele soltar a danada, diria que aquilo tudo iria pra os ares, mas em vez disso a arrancada da bicha jogava pedregulho pra traz.
E foi com ela que foi pra Campinas, Juquitiba, Itapecerica da serra, o homem varava tudo que é verde, quando podia lá ia ele, com a camisa aberta, uma mochila véia nas costas com duas garrafas de refrigerante cheias de gasolina e muita coragem, ou seja lá o que era aquilo.
Foi muito engraçado o dia que chegou todo rasgado, disse que um caminhão tentou matar o sonho dele de nadar na cachoeira da biqueira.
Aquele homem não podia só ficar nos bares como todo mundo? jogando seu bilhar? tomando sua pinguinha? não! Em vez disso tinha que tentar ser diferente, tinha que pensar tanto em planta.
E  porque se gostava da natureza tanto assim, trabalhava de pedreiro, jogando cimento em tudo que é lugar?
Acontece que Nêgo J.  começou a ficar doente.  Todo mundo vinha me falar que o homem tava em depressão, na favela pra quem não sabe, depressão é sinônimo de vagabundagem, ou até de frescura mesmo.
Eu como todo mundo, só ouvi. É tanto problema que agente acaba num se envolvendo em tudo, e além do mais ele me devia uma obra que nunca terminou, fato que depois perdoei, acabei falando com ele mais umas vezes, ainda mais quando estava mamado.
Também, quem me culparia? O homem já chegava contando piada, dizendo isso e aquilo de um jeito que contaminava todo mundo, a favela podia ta sinistra, que se iluminava quando ele chegava já fazendo graça.
Tem gente que é assim mesmo, vive de palhaçada que é pra esconder alguma tristeza embutida.
Tem um lugar aqui que chama parque Santo Dias, um monte de gente corre nele, outros levam as crianças pra dar um role. Foi posto esse nome dedicado a esse cara que lutou por algo de valor, pelo menos é o que todo mundo fala. 
Mas o fato é que todo mundo aqui chama o lugar de “mata”, foi no meio da mata, entre as árvores mais altas, que Nêgo J. se enforcou.
Diz o pessoal ai, que juntou tudo né? Desemprego, depressão, esses negócio tudo junto.
Pensando bem não era, frescura nem vagabundagem.
Com tanta vastidão de verde nesse pais, tudo aí parado, mas cheio de dono, até que não era querer muito,  ter assim um pedacinho de terra com verde, pra ele de repente plantar um pouco de esperança.

Dedicado a Nêgo Jaime.

Meu querido crime (conto do livro Os ricos também morrem)


Meu querido crime

Meu querido o que rapaz? Ele que começou, ele disse na frente de todo mundo, “acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar um banco”. Porra! você mesmo sabe, eu esperei 5 horas pro caminhão passar. 5 horas naquela porra daquele matagal, ai o cara passa, agente segue ele. Ele para num posto. Eu vou enquadra. Aquela adrenalina toda. Puta pressão. Eu com o ferro na cinta, ai o cara entra numa multidão, eu fico vendo aquela porra toda, e vejo as câmeras mermão, eu vejo as câmeras, televisão porra, sabe? televisão de verdade, era festa dos caminhoneiros Shell porra, eu sai no sapatinho, coração a milhão. 
Agora é fácil você gritar “acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar banco”. Sabe merda nenhuma não, aquele caminhão da Coca você lembra? Pegamos a porra, num tinha um filho de Deus pra ajudar a esconder a carga, ai fomos virar profissional, pagamos o chão pro mano, nada mais justo. O cara vive de alugar o chão. Todo mês 10% do chão. Agente saia todo dia pra correr atras e ninguém queria os bagulho. Uma porra de um dono de bar, só bastava isso. Adega. Padaria. Qualquer merda meu irmão, mas não, e cada dia tinha menos fardo, no último mês tinha menos da metade da mercadoria, porra! Eu robo pra ser robado? Agora prestenção então, antes de ficar de falação tem que entender. Aquele caminhão você mesmo sabe meu irmão, o corre que foi pra ficar de olho. O cara disse que tinha mais de 100 mil de nota, e tinha mesmo, mas 4 pneu de trator porra? Onde vou vender pneu de trator, ai tivemo que abandoná a porra num lugar neutro, se agente abandona numa biqueira, ai suja mesmo mermão, agente pode até ser chamado pras idéia, veja se é fácil porra?  Agora o cabra vem vomitar que, “acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar um banco”?
Pensa comigo, num dá pra roubar no bairro, nem bairro dos outros, tem rua com dono, dono de tudo que é lado. Crime organizado e o caralho, e agente no meio dessa porra e tem que ouvir essas conversa? “Que acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar um banco”. Eu num roubei aquele médico? Ele é pai de família? Médico é pobre? Porra! Ai vou vender a maleta aonde? As ferramenta dele tudo assinada, entendeu? O que vou fazer? Roubar maquininha de moeda pra morrer na mão da máfia dos maquineiro? Vou roubar banca de jogo do bicho? Sobrou o que mermão? Heim? Me diz? Sobrou o que? Ai tenho que ouvir isso ainda?
“Que acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar um banco”.
Eu num fui mermão? Um carro blindado filho da puta, eu de gari, limpando rua, num sol da porra, e ai imbico o revólver no filho da puta, ele faz o que? Bem nascido do caralho, berço de ouro, carro blindado, e faz o que? Me bateu com o malote, com o malote na cara. Nunca apanhei nem do meu pai. Ai apanhei com o malote. Todo mundo disse que o cora era sussegado, que ia entregar o dinheiro, que pegava o malote do mercado toda quarta-feira. Ai fiquei de limpeza da rua, o dia todo, e o cara atrasa, e quando chega num é ele, é um mais novo. O filho, ele mandou o filho, ai o filho é ousado, bem nascido, berço de ouro, carro blindado. Me bateu com o malote, todo mundo no mercado gritando, o tiozinho aposentado que embala as porras, o tiozinho cagueta do caralho gritava mais que todo mundo, revoltado, num era bem nascido, nunca teve nem berço imagina de ouro, nem carro blindado, mas parecia até que aquele malote cheio, cheio, que foi bem na minha cara, era o dinheiro dele porra! Ai sou obrigado a escutar um merda, um merda de um zé povinho “que acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar um banco”.
Mermão, acha safadeza roubar pai de família? que ladrão tinha que roubar banco? pra roubar banco tem que ter um fuzil porra! Um fuzil custa 30 mil, 30 mil caralho, eu com isso montava um comércio, ia ser autônomo. Mas onde vou levantar esse dinheiro desse jeito? 
Num sou bem nascido, nunca que tive berço de ouro, nem carro blindado.
Fui pego ai, você lembra, sai de Mizuno, relógio Tag, camisa Ambercrombie, todo boyzão, bem apessoado, pra parecer bem nascido, mesmo sem berço de ouro, nem carro blindado, ai voltei depois de dois anos você lembra mermão? Descalço, com uma sacolinha com 2 camisas, magro pra carai, até o chinelo na cadeia os mano pediu, porra! Isso é foda, diz ai? E ao filho da puta “acha safadeza roubar pai de família, que o certo era roubar um banco, achava safadeza roubar pai de família?
To devendo 6 parcela pros pulicia da ultima fita, e ainda 3 parcela pros advogado, num é mole não, um dia desses eles me pegam por causa da pensão, a pensão sim! Do Joaquim! Ai eu to fudido, com isso num tem acerto, é cadeia de ponta a ponta. Se eu fosse um bem nascido, berço de ouro, carro blindado.

Ferréz em Santo André

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