Vida em manutenção.
Um dia desses fui junto com um amigo no bom prato, projeto tão lembrado durante a campanha política. Cada um faz seu paternalismo de um jeito.
Lá a realidade é só uma, saquinho de farinha no bolso pra misturar com a comida, gente que chega as 10 da manhã com medo de perder a fila. Um senhor logo começa a falar comigo. – Fio, porque eles num faz janta também? Porque eles num dá um café da manhã?
Eu balanço a cabeça e finjo não saber a resposta enquanto não tiro os olhos daquele senhor, que na pele mostra o tanto que já sofreu.
E não é só isso, e o que será que eles comem no sábado e domingo? Então antes de sair eu pergunto, ele reponde com uma palavra. - Pão.
Por um momento penso que a sobremesa do bom prato bem que podia ser um livro.
Paro a viagem, vou pegar a real sobremesa, uma mexerica, que estava com uma casca difícil de tirar, fui saindo de boa e trombei outro amigo e logo perguntei.
- mas você num ta trabalhando?
- to sim, naquela loja ali na frente.
- e porque come aqui?
- você sabe né, economizar os tickets pra mistura e pra feira.
- e você?
- bom, eu sou escritor, num preciso falar mais nada né?
Dou um abraço no amigo e saio pensando na cena que vi ontem, os camelôs apanhando no centro da cidade, sempre a mesma coisa, vai chegando fim de ano o bicho pega, lembro do chefe das subprefeituras falando que aquilo não era vendedor ambulante, que eles só vendem coisas contrabandeadas, boa conversa, discurso de quem nunca passou uma dificuldade é sempre comovente.
Ele é daqueles que nunca pagou pra tirar a carta de motorista, nunca tenha dado um qualquer pra um policial evitar a multa, nunca prejudicou alguém no escritório, nunca falou mal de alguém e fez uma conversa virar problema, nunca tenha ficado calado quando soube de um esquema maior. Não ele não. Ele é o onipresente nesse momento, o senhor da verdade absoluta, assim como vários homens entupidos de retórica.
A vida aqui fora é outra, se você não a vive, não sabe do que se trata.
Dizem que sou revoltado, quando falo em algumas questões ficam abalados, mas tantos olham e não enxergam.
Senhor, formigueiro humano, compra de natal, eles usam seu nome em vão, constroem templos gigantescos, massacram os mais humildes mentalmente com histórias distorcidas, quem for inocente jogue a primeira cruz na rua.
Tudo virou comércio, seu sonho não é mais ser, é ter, iates, cavalos, gados com chips enquanto crianças perdidas não valem uma casa de abrigo. Sinto muito, mas a modelo sem calcinha é a notícia da semana.
Genival veio me dizer um dia, que não tem espaço para coisas positivas na mídia, eu aprendi com você Genival, vende tanta Caras, vende tanta Tititi, vende tanto porque eles são os ricos que meu povo adora.
O tema se tornou recorrente, favela, violência, seqüestro, roubo.
Mas na propaganda do disque denúncia é só seqüestro, crime contra pobre num conta, num adianta denunciar, agente quer é seqüestrador.
Eu sei que todos falam da guerra, mas se isso é uma guerra, porque não vejo vencedores nem ontem nem agora?
Consumismo desenfreado, pra não ficar chateado toma o meu cartão, compra algo.
Qual o tamanho do seu sonho? Ele tem 2 ou 4 rodas, tem estilo? Ou você tem ou não tem. Ele é azul, metálico? Ele é slim? talvez seja digital, prata? Veloz? Talvez seja leve, fácil de transportar e de teclar, pode ser de esquentar, também pode ser que ele frite coisas, ou só as cozinhe, mantendo assim as proteínas. Talvez você leve ele no pulso.
Talvez você coma ele. Seu sonho dá para enrabar? Talvez você monte nele, seu sonho seria um par de olhos? Belos e fixos dentro da sua alma?
Más notícias pra você, felicidade não vem com nota fiscal.
O problema do Brasil minha pequena Lisístrata é esse. Que trabalho vão me dar? Onde vou me encaixar no mercado? Tem vaga mais pra ninguém não, ta difícil pra você ta difícil pra todo mundo, você tem que ser criativo se quiser comer.
Estou falando do que vejo, um monte de gente que nem você indo pro mesmo caminho, fila pra emprego, trafico, roubo de gravata ou sem, é tudo a mesma coisa, só diminui ou aumenta o grau de humilhação, no final uma coisa sustenta a outra, ou do que viveriam tantos advogados, promotores, delegados, juízes?
Falam em matar, falam em palavras que não fazem curva, mas só atiram em iguais a vocês, somente um motivo, banal, qualquer coisa e bum! Acabam com uma vida, mas nos muros de todo o morro, nomes de políticos, uma esmola sequer, e lá estão vocês envolvidos, não vêem que eles são os reais inimigos? Com seus ternos caros, suas caras de porcos, suas mentes mais sujas que os córregos que nos cercam? Eles são os inimigos, são os mentores por traz de toda essa miséria, toda essa violência, e pior meu filho, quem elege eles é você, é como se alguém te desse a incrível oportunidade de você mesmo se prejudicar.
Vamos fazer um acordo? parar de matar a esperança, distribuir o falso troféu de uma vida curta, alimentando essa cadeia de parasitas, que só vêem agente traficando, que só vêem agente se prostituindo, quando na verdade não tem mais gente honesta do que aqui.
honesta sim, todos como meu amigo Paulo, trabalhador que sonha com seu carro ano após ano, tem muitos. Venha na favela de madrugada e veja quantos ônibus saem lotados pela manhã? Ou vocês vão me falar que é tudo ladrão, ladrão meu querido não enche ônibus.
Mas criminalizar o gueto é necessário, ah! Isso não pode parar, se não o povo vai se revoltar com o que heim? Temos que linchar o pé de chinelo, para o colarinho branco se candidatar de novo.
Temos que começar de novo, reformular tudo, se fala tanto do tráfico, e os barbitúricos, e os tarjas pretas?
Agente só vê o que quer meus amigos, mas ninguém aqui está com a razão, ela já fugiu desse país a muito tempo.
Uma coisa não legitima a outra, mas opressão demais num cheira bem. Num sei muita coisa não, mas tenho certeza que se tem que escorrer tanto sangue por isso, se vamos morrer, que seja por rasgar a constituição, afinal ela só serve pra quem tem dinheiro.
A nossa vida não tem que ser uma filial do Afeganistão, se tiver que ter uma guerra que seja contra quem oprime e não contra outros oprimidos.
Um dia agente vai entender porque não tem ensino, porque é mais barato sermos treinados segurando uma pistola e matando outro periférico.
Caixinhas, todos somos separados em caixinhas, mas a pergunta é. Quem embala tudo isso?
Mudar daqui é mó mamão, mudar a favela é difícil, mas agente tem que tentar, tem que continuar nossa pequena parte nisso tudo, eu fiquei aqui, minha filha vai nascer aqui, eu quero que esse seja o melhor lugar do mundo pra ela e pra todos os que vão continuar aqui, quem é não comenta, essa é a pegada, eu continuo acreditando que a revolução será silenciosa e determinada como ler um livro a luz de velas em plena madrugada.
Ferréz (direto do campo de extermínio)
.
Um dia desses fui junto com um amigo no bom prato, projeto tão lembrado durante a campanha política. Cada um faz seu paternalismo de um jeito.
Lá a realidade é só uma, saquinho de farinha no bolso pra misturar com a comida, gente que chega as 10 da manhã com medo de perder a fila. Um senhor logo começa a falar comigo. – Fio, porque eles num faz janta também? Porque eles num dá um café da manhã?
Eu balanço a cabeça e finjo não saber a resposta enquanto não tiro os olhos daquele senhor, que na pele mostra o tanto que já sofreu.
E não é só isso, e o que será que eles comem no sábado e domingo? Então antes de sair eu pergunto, ele reponde com uma palavra. - Pão.
Por um momento penso que a sobremesa do bom prato bem que podia ser um livro.
Paro a viagem, vou pegar a real sobremesa, uma mexerica, que estava com uma casca difícil de tirar, fui saindo de boa e trombei outro amigo e logo perguntei.
- mas você num ta trabalhando?
- to sim, naquela loja ali na frente.
- e porque come aqui?
- você sabe né, economizar os tickets pra mistura e pra feira.
- e você?
- bom, eu sou escritor, num preciso falar mais nada né?
Dou um abraço no amigo e saio pensando na cena que vi ontem, os camelôs apanhando no centro da cidade, sempre a mesma coisa, vai chegando fim de ano o bicho pega, lembro do chefe das subprefeituras falando que aquilo não era vendedor ambulante, que eles só vendem coisas contrabandeadas, boa conversa, discurso de quem nunca passou uma dificuldade é sempre comovente.
Ele é daqueles que nunca pagou pra tirar a carta de motorista, nunca tenha dado um qualquer pra um policial evitar a multa, nunca prejudicou alguém no escritório, nunca falou mal de alguém e fez uma conversa virar problema, nunca tenha ficado calado quando soube de um esquema maior. Não ele não. Ele é o onipresente nesse momento, o senhor da verdade absoluta, assim como vários homens entupidos de retórica.
A vida aqui fora é outra, se você não a vive, não sabe do que se trata.
Dizem que sou revoltado, quando falo em algumas questões ficam abalados, mas tantos olham e não enxergam.
Senhor, formigueiro humano, compra de natal, eles usam seu nome em vão, constroem templos gigantescos, massacram os mais humildes mentalmente com histórias distorcidas, quem for inocente jogue a primeira cruz na rua.
Tudo virou comércio, seu sonho não é mais ser, é ter, iates, cavalos, gados com chips enquanto crianças perdidas não valem uma casa de abrigo. Sinto muito, mas a modelo sem calcinha é a notícia da semana.
Genival veio me dizer um dia, que não tem espaço para coisas positivas na mídia, eu aprendi com você Genival, vende tanta Caras, vende tanta Tititi, vende tanto porque eles são os ricos que meu povo adora.
O tema se tornou recorrente, favela, violência, seqüestro, roubo.
Mas na propaganda do disque denúncia é só seqüestro, crime contra pobre num conta, num adianta denunciar, agente quer é seqüestrador.
Eu sei que todos falam da guerra, mas se isso é uma guerra, porque não vejo vencedores nem ontem nem agora?
Consumismo desenfreado, pra não ficar chateado toma o meu cartão, compra algo.
Qual o tamanho do seu sonho? Ele tem 2 ou 4 rodas, tem estilo? Ou você tem ou não tem. Ele é azul, metálico? Ele é slim? talvez seja digital, prata? Veloz? Talvez seja leve, fácil de transportar e de teclar, pode ser de esquentar, também pode ser que ele frite coisas, ou só as cozinhe, mantendo assim as proteínas. Talvez você leve ele no pulso.
Talvez você coma ele. Seu sonho dá para enrabar? Talvez você monte nele, seu sonho seria um par de olhos? Belos e fixos dentro da sua alma?
Más notícias pra você, felicidade não vem com nota fiscal.
O problema do Brasil minha pequena Lisístrata é esse. Que trabalho vão me dar? Onde vou me encaixar no mercado? Tem vaga mais pra ninguém não, ta difícil pra você ta difícil pra todo mundo, você tem que ser criativo se quiser comer.
Estou falando do que vejo, um monte de gente que nem você indo pro mesmo caminho, fila pra emprego, trafico, roubo de gravata ou sem, é tudo a mesma coisa, só diminui ou aumenta o grau de humilhação, no final uma coisa sustenta a outra, ou do que viveriam tantos advogados, promotores, delegados, juízes?
Falam em matar, falam em palavras que não fazem curva, mas só atiram em iguais a vocês, somente um motivo, banal, qualquer coisa e bum! Acabam com uma vida, mas nos muros de todo o morro, nomes de políticos, uma esmola sequer, e lá estão vocês envolvidos, não vêem que eles são os reais inimigos? Com seus ternos caros, suas caras de porcos, suas mentes mais sujas que os córregos que nos cercam? Eles são os inimigos, são os mentores por traz de toda essa miséria, toda essa violência, e pior meu filho, quem elege eles é você, é como se alguém te desse a incrível oportunidade de você mesmo se prejudicar.
Vamos fazer um acordo? parar de matar a esperança, distribuir o falso troféu de uma vida curta, alimentando essa cadeia de parasitas, que só vêem agente traficando, que só vêem agente se prostituindo, quando na verdade não tem mais gente honesta do que aqui.
honesta sim, todos como meu amigo Paulo, trabalhador que sonha com seu carro ano após ano, tem muitos. Venha na favela de madrugada e veja quantos ônibus saem lotados pela manhã? Ou vocês vão me falar que é tudo ladrão, ladrão meu querido não enche ônibus.
Mas criminalizar o gueto é necessário, ah! Isso não pode parar, se não o povo vai se revoltar com o que heim? Temos que linchar o pé de chinelo, para o colarinho branco se candidatar de novo.
Temos que começar de novo, reformular tudo, se fala tanto do tráfico, e os barbitúricos, e os tarjas pretas?
Agente só vê o que quer meus amigos, mas ninguém aqui está com a razão, ela já fugiu desse país a muito tempo.
Uma coisa não legitima a outra, mas opressão demais num cheira bem. Num sei muita coisa não, mas tenho certeza que se tem que escorrer tanto sangue por isso, se vamos morrer, que seja por rasgar a constituição, afinal ela só serve pra quem tem dinheiro.
A nossa vida não tem que ser uma filial do Afeganistão, se tiver que ter uma guerra que seja contra quem oprime e não contra outros oprimidos.
Um dia agente vai entender porque não tem ensino, porque é mais barato sermos treinados segurando uma pistola e matando outro periférico.
Caixinhas, todos somos separados em caixinhas, mas a pergunta é. Quem embala tudo isso?
Mudar daqui é mó mamão, mudar a favela é difícil, mas agente tem que tentar, tem que continuar nossa pequena parte nisso tudo, eu fiquei aqui, minha filha vai nascer aqui, eu quero que esse seja o melhor lugar do mundo pra ela e pra todos os que vão continuar aqui, quem é não comenta, essa é a pegada, eu continuo acreditando que a revolução será silenciosa e determinada como ler um livro a luz de velas em plena madrugada.
Ferréz (direto do campo de extermínio)
.
5 comentários:
Sem palavras. Mas vou, vou tentar espalhar suas idéias por onde eu andar. Seja no Arariba ou em Higianópolis, Guaianazes ou Cocaia, pode-se tocar alguém de alguma forma.
A cada texto que leio do Ferréz, sinto que aumenta mais a nossa responsabilidade com a literatura, tamanho engajamento dos seus textos. Nas linhas que se seguem, as lâminas não estão expostas a olho nu, mas é impossível ler os seus textos sem sair com ferimentos na alma.
na luta e no respeito,
sérgio vaz
Satisfação meu querido, mais uma vez mandando bem adorei o texto,
fico contente lendo gente da gente, saber que tem vários parceiros na mesma sintonia, isso é maravilhoso continue com essa garra.
um forte abraço de Fuzzil.
Hoje me sinto mais humano, conheci Ferréz através de uma reportagem em uma revista de educação.
Pesquisei e cheguei neste texto que me fez mais humano ou talvez tenha tirado a faixa negra que cobria meus olhos.
Gostaria de lhe dizer que foi um prazer ter conhecido as epigrafias de sua mente, como você mesmo diz eu queria ter mais pessoas como você na educação deste país. Sou professor de Língua Portuguesa e agora sei meu objetivo.
Hoje sou mais humano.
Conheci Ferréz através de uma revista de educação, pesquisei e cheguei neste texto, que me fez mais humano ou tirou a venda preta que cobria meus olhos.
Obrigado! Sou professor e hoje sei qual o meu objetivo na educação, graças as epigrafias de sua mente.
Postar um comentário