Blog do escritor Ferréz

Dona Alexandrina (texto inédito especial para o Blog)

Dona Alexandrina.

Num consigo mais fazer isso, por a lata di água na cabeça é mais difícil que caminhar.
Filha minha num estuda, pra que? Pra mandar carta para namorado? Tem que fazer coisa de casa, tem que aprender a ser mulher.
Mas pai.
Pai o que? Qué apronta, ficá cum menino? Vai não.
Foi quando o vizinho interferiu.
Ce vai me disculpá, cada um cria sua filha como qué, mas pra mim cê ta sendo ignorante, essa coisa de mulher ficar em casa já é coisa antiga.
Era nada, tem que casar com alguém de bem.
E se o homem vacilar? Ela fica amarrada num pé de boi? Ela tem que estuda mesmo, pra aprender a fazer as coisas, se virar se um dia o marido faltar.
Num tem condição não, nóis num tem o que gastar, num vai estuda.
Bom, eu vejo essa menina se matando o dia todo ai, dando água e comida pros animal, cuidando da horta, até uma hortinha lá atraz ela tem em particular, então menina o que você tem aqui?
Tem um monte de coisa, umas 3 galinha, um pato, um peru.
O peru nóis vai come no final do ano.
Vai não, é dela, se ela vende então tem dinheiro pra estudar.
Duvido vendê.
Então fui lá no outro dia, comprei tudo que ela tinha, levei uma gaiola e só deixei uma galinha.
No outro dia tava linda, sandalinha, vistidinho novo, cabelo penteado, foi minha mulher que fez as tranças.
Ce num vai estuda não, tem que colher hoje, seu irmão num sabe colher, e tem que fazer farinha.
Eu corri o dia inteiro, colhi, fiz farinha, dei água aos bicho, e depois sai correndo pra escola, minha mãe tentou me pegar, jogou o cipó nas minhas costas varias vezes, mas no final desistiu, ninguém pega moça trabalhadeira assim não, ainda mais minha mãe, que com todo respeito, fica sentada mascando fumo o dia inteiro.
Mas ela num é ruim não, fez isso por meu pai, pedido dele.
Num deixa estuda não. Coisa ruim fica em casa.
Peguei aula, os menino mangou deu no começo, a professora num deixava, brigava logo com eles.
Todo dia era assim.
Hoje cê num vai, vai colher, vai plantar, vai fazer isso, vai fazer aquilo, mas na hora certa eu saia correndo, pegava o vestido a sandalinha e o material da lição e corria pra estudar.
É verdade, teve isso mesmo, bem lembrado, uma vez os meninos me esperavam na saída da aula, queria fazer coisa comigo, sabe né? Eles diz aqui que é currar, lá é outra coisa.
Mas eu sempre na estrada deixava um pé de pau, pra quando eu voltar eu ir tocando já o gado no começo do caminho, e quando eles vieram eu corri pouco, até chegar no pé de pau, peguei e depois de duas giradas tava sozinha de novo.
Isso durou dois anos, fui feliz na sala de aula, a professora me via chegar atrasada, mais obrigações, meu irmão sabia fazer nada, então era tudo comigo.
Sô testemunha mesmo, essa menina gostava de estudar, mas o pai vivia impondo mais coisa, ela trabalhava por três, e depois começou a ir muito tarde pra escola, até num ir mais.
Aprendi depois a bordar, aprendi a fazer bolo, aprendi a costurar, aprendi as coisas de mulher, mas estudar eu não podia mais.
Conheci ele ainda nova, gosto de falar dele não.
Então foi na cozinha em São Paulo que eu me achei, fazia café, bolo, essas coisas, a firma era boa, tem que reclamar de nada não, na verdade eram tudo gente boa, me deram até chance de virar encarregada, porque a outra foi subida de cargo.
Ah! Num fala subida não? ai que vergonha moço, é pouco estudo né, maldito do meu pai.
Bom, e eu falei logo de cara, era boa naquilo, nos lanches e almoço, sabia fazer até conta de cabeça, mas num tia escrita não, num sabia por as palavra em ordem, num podia pegar esse cargo, então fiquei assim mesmo, até que fui mandada embora, a firma tava com dificuldade, e a outra menina era mais nova, eu já tava velha, deram até conselho pra estudar, mas cê sabe né? Chegava em casa cansada, já com duas meninas e um menino, tinha mais coragem não, agora era a vez deles, era a hora deles tenta estuda.
Minha pequena engravidou logo cedo né. To falando da minha mais nova, arrumou um rapaz ai, que só pra nois num é boa pessoa não, e ela acabou ai sozinha, hoje eu crio a menina com ela.
Já o menino deu a estudar, diz que quer ser doutor, mas pode ser doutor sem trabalhar? Fica o dia com os amigos ai de moto, já falei pra ele se aprontar fica sozinho, vai sofrer, porque eu fiz de tudo por esses menino, e só não fiz mais porque tinha pouco estudo.
Ah! Agora dela tenho orgulho sim, a menina se pegou a estudar, assim mesmo do nada, e esse ano ah! Que alegria, fazendo bico ali, vendendo coisa na rua, essa menina ta trabalhando no açougue aqui do lado, o do Pedro, e agora ta querendo fazer faculdade, pode isso? Eu falei que num tenho muito o que fazer, mas uma coisa eu digo, se ela entrar vai ser um orgulho pra mim, porque o estudo fez falta, num vo mentir pro senhor.
Num entendi?
Ah! Essas lágrimas aqui? É de felicidade, os menino tudo grande aí, maior que eu, se ela entrar menino, vou te falar, vai ser um grande orgulho.
O que é isso? Ah! Né nada não, é só uma coisinha, um caderno que comprei ali no bazar, vou dar pra ela, pra ela começar a estudar né?

2 comentários:

Robson Canto disse...

E ai tio!
Gostei do texto!
Oh! Escreve aquele barato sobre o que cê tava me dizendo no Cooperifa sobre estudar! Porque eu lendo entendo melhor!

Anderson Fernandes disse...

Opa, salve ferrez..

Muito bom o texto, parabéns!

Estou postando justamente por me ver um pouco nesta história, não venho aqui com demagogia, apenas comentar um pouco da forma na qual me identifiquei com a história.

Tbm nunca tive vida fácil e sempre trampei, desde moleque, sempre morei no gueto e consegui realizar um sonho entrar como bolsista na universidade (curso de Letras) enquanto muitos conhecidos meus estavam sempre indo para o caminho errado( e continuam, se for para pra ver) enquanto isso todos sempre achabam que nunca ia conseguir isso (até no meu trampo sempre me humilharam). Já estou no segundo ano e firme com isso.

Mas é isso aê, o mundo da voltas... E as palavras são nossas armas e temos que fazer por onde mudar tudo isso.

Falow, firme e forte na luta

Abraço