Blog do escritor Ferréz

Vizinho (conto) INÉDITO


Vizinhos
Demorou para juntar todo o dinheiro, fiquei com um par de tênis e dois shorts. Foi muito duro comprar a casa, tive que usar camisas de atacado na Bresser, todas brancas, me custavam três reais e noventa centavos, e o mínimo que se podia comprar era de dez peças, só assim para economizar.
Não importava, eu queria mudar, a vizinhança tinha chegado no limite, depois que passei um mês inteiro seduzindo aquela morena, ela havia se deitado comigo, transamos gostoso, embora os ônibus que passavam a toda velocidade fizessem meu quarto tremer.
Mas voltando ao assunto, depois que chegamos aos finalmente, veio a decepção: assim que saí com ela do meu quarto, um vizinho barbudo (que seja amaldiçoado seu nome) nos viu e disparou:
– Hã! Tá até suado né?
Ela nunca mais olhou para minha cara.
Outra coisa que não suporto mais é que a janela do meu quarto dá de frente para quatro janelas e nessas quatro estão as piores famílias. Numa delas, uma mulher com o cabelo seco ficava apoiada o dia todo. Quando o marido chegava, ela saía por uma hora e então voltava, ficava olhando fixamente para meu quarto durante todo o entardecer.
Uma vez levantei de madrugada e resolvi mijar nas escadas mesmo, preguiça de descer para o banheiro. Assim que comecei a me aliviar, notei uma pessoa abrindo uma janela, mas eu não queria acreditar, ela estava olhando, eu não consegui parar de mijar, estava tão gostoso. Então, assim que terminei, segurei meu pênis com a mão esquerda e inclinei em sua direção e comecei a movimentar a mão. Apesar de estar com muito sono, podia jurar que notei seu rosto se transformando e logo ela saiu da varanda.
De noite sempre tinha algum amigo me gritando, era aquele tipo de amizade que fica na sua casa de madrugada tomando café. Mas sempre foi assim, antes de eu chegar a abrir a minha janela, eu escutava outras se abrindo, eram eles olhando, talvez pensassem que iríamos fumar um baseado, sei lá, eu tinha medo de pensarem que eu era bicha. então não abria mais a minha janela, e meus amigos foram desistindo.
Bati dezena de vezes o portão na cara dos meus vizinhos. Era só estar chegando com uma sacola e eles não paravam de olhar um segundo, tentavam ver o que tinha dentro. Quando alugava fitas pornográficas, pedia para o rapaz da locadora pôr duas sacolas, mas eu sabia que eles enxergavam, pois as capas eram vermelhas para os filmes pornôs e as sacolas eram muito finas.
A vizinha da esquerda tinha um cachorro que não parava de latir um segundo, eu já não conseguia mais dormir, o latido dele ecoava dentro da minha cabeça. Decidi comprar veneno, mas quando cheguei em casa me dei conta da mancada: o cara do bar que havia me vendido era conhecido dela, se o cachorro morresse envenenado eu podia ser acusado.
Tinha medo, muito medo, eles não podiam ser provocados, cansei de ver baixarias por muito menos, esse povo quando fica bravo fala cada coisa, já acordei com gritos do tipo – Seu pica murcha, cê num me come há mais de meis – ou então com frases tipo assim – Minha filha, foi ele que veio aqui me comer viu, eu não fui lá dar pra ele não.
Então eu tolerava o som alto da vizinha que morava a minha direita, decorei todas as músicas da dupla Zezé di Camargo e Luciano, e quando comprei uma estante na Marabraz levei o relógio de presente para eles, nunca ví um sorriso tão meigo.
Mas dois dias depois disso, eu tive certeza que estava enlouquecendo, aquela mulher havia feito fofocas sobre minha família a vida toda, além disso ano passado tinha dito a todos que eu com certeza era uma bicha, coisa que mais me deixa louco. Segundo os rumores dela, ninguém que era homem ficava tanto tempo estudando trancado dentro do quarto como eu.
O dinheiro estava completo, procurei as imobiliárias, não podia mudar do bairro, gostava dele, só odiava a minha vizinhança. Vagabundos e vadias, com cada um eu tinha um problema. Encontrei muitas casas legais, mas eram todas caras, procurei por mais três meses. E, durante esse tempo, ameacei de morte o vizinho da frente: ele ficava olhando para minha boca enquanto eu conversava com meus amigos, sabia que estava lendo meus lábios.
Eu tinha certeza que ele queria saber o que eu falava, não resisti mostrei o dedo para ele naquela tarde de quarta-feira. Pensei em pôr ele no meu novo romance, desisti: não ia torná-lo imortal.
Finalmente encontrei, tinha muitas espécies de plantas no vasto quintal, e era somente duas ruas abaixo da casa da minha mãe, o preço era bom, pois era desvalorizada devido ao córrego em frente. Não liguei para o detalhe, eu limparia o barro quando o rio transbordasse, eu limparia tudo todos os dias desde que ninguém estivesse tentando ler meus lábios nem ficar reparando nas minhas sacolas de fitas
Fui lá ver a casa mais uma vez para ter certeza, era sexta-feira, os pássaros entravam e saíam a todo momento. Entrei no quintal.
De dentro não se via a rua, ótimo. O vizinho do lado tinha um terreno vazio, morava longe. Já do outro lado, morava uma prima da minha mãe, era separada e tinha duas filhas, mas sempre ouviam som baixo.
Agradeci a Deus também pelo vizinho de trás: era um galpão, onde havia se instalado uma igreja evangélica. Cultos somente aos sábados – isso eu agüento, nada é perfeito mesmo.
Sequei as lágrimas de minha mãe, peguei meus livros e me mudei.
Meses depois, o terreno vazio ao lado foi alugado para uma espécie de ferro-velho, mas me acostumei com o barulho da máquina de prensar garrafas pet, e só me assusto ainda com o barulho deles desamassando latas.
Tive um discussão com a vizinha do lado, que é a prima da minha mãe: ela fez um fogão de lenha na divisa do muro que enche minha casa de fumaça todos os dias. Tentei dizer que isso era errado, ela ameaçou chamar a polícia e disse para todos da rua que sou ladrão, que esse papo de escrever é conversa.
A igreja que fica aqui atrás da casa aumentou a sessão dos cultos, e eu sei agora quem foi Moisés, quem era Paulo e a importância dos Salmos.
Esses dias, pela manhã, fui buscar pão e, quando abri o portão, notei pela primeira vez o monte de lixo que estavam jogando em frente ao córrego. Tentei não pensar mais, caminhei lentamente até a padaria e no meio do caminho vi um cachorro mancando. Parei pra fazer um carinho em sua cabeça e ele tentou me morder. grande filho da puta.
Voltei para casa, pensando em fazer café mas o gás havia acabado, então resolvi fazer uma caminhada: saí pelo parque mais próximo (e único) e corri durante quarenta minutos. Depois, fiquei sentado no banco do parque por mais uns trinta, procurando esquecer a imagem de um frango assado que estava na minha cabeça desde que comecei a correr.
Voltei para casa e notei um Uno azul estacionado em frente ao meu portão – cara abusado com certeza. Pelo menos o ferro-velho havia parado de prensar as garrafas pets (amanhã seria dia de quebrar as garrafas de vidro, eles arremessavam todas elas contra o muro, um dia voou um caco e quase atingiu minha cabeça, meu quintal sempre amanhecia com alguns cacos, mas isso é detalhe, não vou esquentar).
A igreja começou o culto, logo agora que estava pensando em me masturbar, deixa quieto.
Eles aumentaram a programação e agora além de ensaiarem todos os dias, eles também fazem o culto todos os dias, eu já sei todas os louvores, acho que vou dar uma cochilada.
No outro dia levantei cedo, o carro ainda estava lá só que com os vidros laterais quebrados, só ai me dei conta de que devia ser roubado. Liguei para a polícia várias vezes, o dia passou e ninguém apareceu. À noite só tive alguns incômodos com os ratos cavoucando o forro do quarto, as unhas deles davam arrepio, mas consegui dormir lá pelas 4 da manhã – o ferro-velho começou a quebrar as garrafas às sete em ponto.
Saí para comprar pão e, quando abri o portão, notei uma variante branca encostada no outro lado do meu muro. Pronto, era o que faltava, a frente da minha casa agora era um cemitério de automóveis. Deixei os pães em casa, resolvi visitar minha velha residência, e quando passei pela velha rua e olhei para meus antigos vizinhos, tive vontade de cumprimentá-los, já não pareciam tão ruins assim. A rua tinha uma leve caída e me veio água nos olhos quando percebi pela primeira vez que minha antiga casa não era vizinha de um ferro- velho, nem dava para os fundos de uma igreja, e nunca havia entrado ratos.
Mas não dava para voltar atrás: a casa era minha e esse era meu destino. Então, quando cheguei no portão, olhei para o Uno azul e vi que ele tinha lindos bancos pretos e notei que o volante era modelo esportivo. Nunca me apeguei muito a carros, mas decidi que queria aquele volante se eu fosse ter um carro um dia. Entrei no Uno e comecei a mexer, vi que ia ser difícil. Então fui até minha casa buscar a chave de fenda e um martelo.
Passados alguns minutos, eu já tinha tirado o volante, comecei a olhar para a bolinha do câmbio: tinha um lindo caranguejo desenhado. Quando toquei nela, escutei a sirene. Eu ainda tentei explicar, mas o volante estava no meu colo. A policia que eu havia chamado finalmente apareceu.
No tribunal, alguns vizinhos testemunharam, mas todos disseram que eu era novo na rua e que antes de eu me mudar nunca havia nenhum carro roubado por ali.
O dono do ferro-velho estava lá assistindo ao julgamento, algumas pessoas da igreja também, e eu até hoje não entendi quando fui condenado.
Agora me encontro num lugar sossegado. O problema é só dividir o banheiro e às vezes ter que dormir no chão, quando perco na aposta e tenho que dar minha cama para algum companheiro de cela.

Um comentário:

Damásio Marques disse...

Muito bom!

Sou prof. de L. Portuguesa e Espanhol. No momento estou trabalhando com literatura marginal para uma monografia da pós - sempre me interessei pelo assunto, antes mesmo da graduação, lia muito Bukowski, Glauco Mattoso, Mutarelli... - e a idéia é aproximar a literatura marginal cubana de PEDRO JUAN GUTIÉRREZ a um autor brasileiro. Acho que acabei de encontrar esse autor.
É isso aí Ferréz...