Blog do escritor Ferréz

Pão Doce (Conto Inédito) Ferréz

Pão Doce

Acordo sempre as seis.
Hoje não sei porque dormi até as seis e vinte.
Cuspi na pia a pasta de dente que esfreguei rapidamente com o dedo.
Faço isso todos os dias.
Peguei o ônibus lotado, passei por uma dona e meu pau deu uma fisgada.
Lembrei da notícia do Cidade Alerta:
tarado leva 50 estocadas com estiletes no cadeião.
Passei para a parte de trás.
Me apoiei na barra de alumínio que estava antes do último banco.
Olho para os peitos de uma gordinha sentada logo a minha frente.
Imaginei uma espanhola.
Adoro espanholas, ainda mais quando os seios são fartos.
Logo lembro de minha mulher, ela tem os peitos pequenos, nem nisso dou sorte.
Ontem durante a discussão que já é rotina, percebi que não basta elas terem nosso tempo, nosso corpo, elas querem mais, elas querem nossa alma.
o que você está pensando ai? É noutra vadia né?
Eu estava pensando o que tinha ganho de seis anos naquele emprego.
Cheguei no trabalho e fui tomar café.
O gerente é baiano, eu sempre humilhava os meninos da escola que eram baianos.
Deus é muito sacana, hoje estou pagando.
O gerente me olha e no olhar diz:
eu sei que você chegou atrasado, eu sei que você humilhava meus irmãos da Bahia que estudavam com você, eu vou fuder a sua vida se você tomar café.
Eu não sou burro, fingi que ia beber um copo d’água e sai sem tomar café.
Começo a mexer nos paletes.
Os paletes são estruturas de madeiras, onde eles armazenam as mercadorias.
As vezes os caminhões encostam e neles há dezenas de paletes cheios de arroz, paletes com feijão.
Esses dias descarreguei dois caminhões sozinho, quando tentei parar um pouco, olhei para traz e lá estava o gerente.
Seus olhos me diziam:
cê você encostar eu vou fuder sua vida.
Trabalhei até onze horas, estava quase desmaiando de fome, o mercado cheio de comida, tudo que é tipo de alimentação, mas se nos virem comendo, é justa causa.
Pode ser um danone, ou pode ser um caroço de feijão.
Uma vez um menino foi mandado embora, ele devia Ter uns dezoito anos e tinha um filho recém nascido.
Pegaram ele comendo uma goiaba, ele foi mandado por justa causa.
Com dezoito anos e sujou a carteira, nunca mais arruma emprego na vida.
Já vi dezenas de bacanas roubando.
As vezes eles pegam queijos caros, as vezes roubam doces ou latinhas de patê.
Uma vez o segurança pegou um velhinho que estava roubando uns chocolates finos.
Levou ele no meio de todo mundo lá para o gerente.
O segurança foi mandado embora no outro dia, o velhinho era gente bacana, cheio da grana.
Eu mesmo preparei uma sexta cheia de coisas caras para o entregador levar a casa do velho.
Era um presente do mercado, e um pedido de desculpas pelo "engano".
Só não tem o mesmo tratamento os pobres.
Uma vez pegaram uns meninos roubando chocolates, um tava com uma barra dentro da cintura e o outro com uma caixa.
O gerente chamou todos os funcionários para presenciar, e depois o segurança começou a humilhar os meninos, fez eles comerem o chocolate de uma vez, e depois vomitar.
Agente num queria ver, mas o gerente mandava olhar.
Os menino vomitaram tudo, e o mercado perdeu os chocolates de todo jeito.
Eu estava na minha sessão e não conseguia dar conta, quanto mais eu repunha a mercadoria, mais as pessoas compravam.
Acabava o macarrão, eu buscava o palete e quando chegava o arroz estava no fim.
Logo que repus o arroz, o feijão e o óleo estavam no fim também, toda vez que eu tentava passar com o carrinho as pessoas reclamavam, eu estava incomodando todo mundo.
Eu estava todo suando, quando o dono da rede de mercados parou na minha frente junto com o gerente.
Eu li nos olhos do gerente:
agora eu vou fuder sua vida.
O dono da rede ia de surpresa fazer uma fiscalização, sabe né, por os pingos nos is.
Ele me olhou dos pés a cabeça.
Em seguida comentou algo com o gerente.
O gerente disse:
é doutor, infelizmente agente avisa para eles manterem a higiene pessoal, mas esse povo é meio burro.
O dono da rede disse:
certo, mas tudo tem limite, esse homem está fedendo.
Foi então que o gerente me mandou para o banheiro, e pediu para que eu tomasse um banho e coloca-se um perfume, eu fui.
Me lavei por uns dez minutos, peguei um perfume do açougueiro emprestado e usei nas axilas e tive que colocar as mesmas roupas suadas e fedidas.
Caminhei pelo corredor, era final de mês, as pessoas se amontoavam, eu já não conseguia conter minhas lágrimas, se eu visse o gerente acho que lhe daria um soco.
Foi então que comecei a andar pelo corredor cada vez mais rápido, e cheguei na porta do mercado, olhei para a claridade lá fora e continuei caminhando, fui andando até o final da rua, eu estava livre, livre de verdade.
Não voltei para buscar meus direitos, mas minha mulher estava enchendo o saco, começou a insistir para que eu fosse buscar ao menos a sexta básica.
Cheguei na recepção, perguntei da sexta básica, a atendente me olhou como se eu tivesse roubado algo seu e me disse:
você não tem direito.
Eu insisti e disse que havia trabalhado quase o mês todo.
Ela repetiu.
você não tem direito.
Sai, resolvi pegar um ônibus e ir ao parque Ibirapuera, lá vi uma fonte muito bonita que jogava a água para o ar, ela era como eu, jogando as coisas para o ar.
Anos mais tarde soube através de um amigo que aquela fonte foi muito cara e que havia sido paga pelo dono da rede de mercados.

3 comentários:

Raquel Donegá disse...

Ferrez

me falaram de seus escritos (sou professora), então hoje, sem muitos alunos, resolvi pegar algo seu e ler...

É muito, muito bom... gosto de narrativas como a sua... pena a vida ser tão dura... pena? sei lá... é isso que te faz escrever... e talvez seja mesmo por isso que as coisas sejam boas...

A gente aprende sofrendo também...

Gostei do texto, muito, me fez pensar sobre preconceito, assédio moral, tudo o que o negro, especialmente o pobre sofre no Brasil. E não só ele, o nordestino, quem não tem dinheiro em geral e vive na marginalidade...

muito muito bom...

vou ler mais...

Raquel Donegá disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raquel Donegá disse...
Este comentário foi removido pelo autor.