Blog do escritor Ferréz

Ferréz na Alemanha

Salve rapa, tem uma coisa muito chapada, a Revista Literatur que é publicada na Alemanha, na Afrika, asia e toda a europa no seu número 83 traz na capa o representante da escrita brasileira, e adivinha quem é...há, nóis mesmo, tem uma matéria falando de todos os meus livros, e do 1dasul, e ainda publicaram uma crônica que eu fiz para a Folha de S.P.
foi uma surpresa ver o tamanho do respeito que o meu trabalho tá conquistando lá fora, inclusive as traduções que estão sendo feitas dos livros.
bom. tudo faz parte da dedicação né... pra vocês no texto de hoje eu recomendo "O senhor das Moscas"de William golding, é um puta livro divertido de dois meninos que caem numa ilha deserta, vale a pena ler até pro seu filho se você quiser incita-lo no mundo das palavras.

bom por enquanto fica assim, um grande salve que hoje eu vou pro Museu da Imagem e do Som fazer uma palestra.

Salve.
quem quiser mais novidade tem o 1dasul.blogspot.com e o 1dasul.fotogold.com.br

Ferréz

é nóis nos livros

rapa, acabei de ler um livro muito bom, chama Numa Fria do Bukowiski, vai se foder, como pode escrever sobre o cotidiano bem assim né? o maluco é mil grau, pra quem gosta de ler sobre rolês sem limite e vida boêmia é só embarcar.
mas procure no sebo mais próximo, pois os livros são difíceis e caros.
bom, em dezembro estou preparando um texto bem chapado para publicar aqui, o nome é Amanhecer Esmeralda e talvez saia na Caros Amigos antes, pois o público lá já tá comigo a 5 anos né, então merecem um presente.
quero mandar um salve para o Buzo, fala vagabundo....e para o Sacolinha que tão nus corre ai, e sempre me acompanhado na caminhada.
porra fez cinco anos da morte do Plinio, tu faz falta vagabundo, tamos contigo na mesma viagem, literatura de rua....litera-rua.
salve salve os verdadeiros.
rapa da godoy, da rua Grisson, do Jardim Comercial, do vale das virtudes, imbé, valo Velho, Campo LImpo e toda favela do lado sul do mapa.

firme e forte.

Ferréz

Pão Doce (Conto Inédito) Ferréz

Pão Doce

Acordo sempre as seis.
Hoje não sei porque dormi até as seis e vinte.
Cuspi na pia a pasta de dente que esfreguei rapidamente com o dedo.
Faço isso todos os dias.
Peguei o ônibus lotado, passei por uma dona e meu pau deu uma fisgada.
Lembrei da notícia do Cidade Alerta:
tarado leva 50 estocadas com estiletes no cadeião.
Passei para a parte de trás.
Me apoiei na barra de alumínio que estava antes do último banco.
Olho para os peitos de uma gordinha sentada logo a minha frente.
Imaginei uma espanhola.
Adoro espanholas, ainda mais quando os seios são fartos.
Logo lembro de minha mulher, ela tem os peitos pequenos, nem nisso dou sorte.
Ontem durante a discussão que já é rotina, percebi que não basta elas terem nosso tempo, nosso corpo, elas querem mais, elas querem nossa alma.
o que você está pensando ai? É noutra vadia né?
Eu estava pensando o que tinha ganho de seis anos naquele emprego.
Cheguei no trabalho e fui tomar café.
O gerente é baiano, eu sempre humilhava os meninos da escola que eram baianos.
Deus é muito sacana, hoje estou pagando.
O gerente me olha e no olhar diz:
eu sei que você chegou atrasado, eu sei que você humilhava meus irmãos da Bahia que estudavam com você, eu vou fuder a sua vida se você tomar café.
Eu não sou burro, fingi que ia beber um copo d’água e sai sem tomar café.
Começo a mexer nos paletes.
Os paletes são estruturas de madeiras, onde eles armazenam as mercadorias.
As vezes os caminhões encostam e neles há dezenas de paletes cheios de arroz, paletes com feijão.
Esses dias descarreguei dois caminhões sozinho, quando tentei parar um pouco, olhei para traz e lá estava o gerente.
Seus olhos me diziam:
cê você encostar eu vou fuder sua vida.
Trabalhei até onze horas, estava quase desmaiando de fome, o mercado cheio de comida, tudo que é tipo de alimentação, mas se nos virem comendo, é justa causa.
Pode ser um danone, ou pode ser um caroço de feijão.
Uma vez um menino foi mandado embora, ele devia Ter uns dezoito anos e tinha um filho recém nascido.
Pegaram ele comendo uma goiaba, ele foi mandado por justa causa.
Com dezoito anos e sujou a carteira, nunca mais arruma emprego na vida.
Já vi dezenas de bacanas roubando.
As vezes eles pegam queijos caros, as vezes roubam doces ou latinhas de patê.
Uma vez o segurança pegou um velhinho que estava roubando uns chocolates finos.
Levou ele no meio de todo mundo lá para o gerente.
O segurança foi mandado embora no outro dia, o velhinho era gente bacana, cheio da grana.
Eu mesmo preparei uma sexta cheia de coisas caras para o entregador levar a casa do velho.
Era um presente do mercado, e um pedido de desculpas pelo "engano".
Só não tem o mesmo tratamento os pobres.
Uma vez pegaram uns meninos roubando chocolates, um tava com uma barra dentro da cintura e o outro com uma caixa.
O gerente chamou todos os funcionários para presenciar, e depois o segurança começou a humilhar os meninos, fez eles comerem o chocolate de uma vez, e depois vomitar.
Agente num queria ver, mas o gerente mandava olhar.
Os menino vomitaram tudo, e o mercado perdeu os chocolates de todo jeito.
Eu estava na minha sessão e não conseguia dar conta, quanto mais eu repunha a mercadoria, mais as pessoas compravam.
Acabava o macarrão, eu buscava o palete e quando chegava o arroz estava no fim.
Logo que repus o arroz, o feijão e o óleo estavam no fim também, toda vez que eu tentava passar com o carrinho as pessoas reclamavam, eu estava incomodando todo mundo.
Eu estava todo suando, quando o dono da rede de mercados parou na minha frente junto com o gerente.
Eu li nos olhos do gerente:
agora eu vou fuder sua vida.
O dono da rede ia de surpresa fazer uma fiscalização, sabe né, por os pingos nos is.
Ele me olhou dos pés a cabeça.
Em seguida comentou algo com o gerente.
O gerente disse:
é doutor, infelizmente agente avisa para eles manterem a higiene pessoal, mas esse povo é meio burro.
O dono da rede disse:
certo, mas tudo tem limite, esse homem está fedendo.
Foi então que o gerente me mandou para o banheiro, e pediu para que eu tomasse um banho e coloca-se um perfume, eu fui.
Me lavei por uns dez minutos, peguei um perfume do açougueiro emprestado e usei nas axilas e tive que colocar as mesmas roupas suadas e fedidas.
Caminhei pelo corredor, era final de mês, as pessoas se amontoavam, eu já não conseguia conter minhas lágrimas, se eu visse o gerente acho que lhe daria um soco.
Foi então que comecei a andar pelo corredor cada vez mais rápido, e cheguei na porta do mercado, olhei para a claridade lá fora e continuei caminhando, fui andando até o final da rua, eu estava livre, livre de verdade.
Não voltei para buscar meus direitos, mas minha mulher estava enchendo o saco, começou a insistir para que eu fosse buscar ao menos a sexta básica.
Cheguei na recepção, perguntei da sexta básica, a atendente me olhou como se eu tivesse roubado algo seu e me disse:
você não tem direito.
Eu insisti e disse que havia trabalhado quase o mês todo.
Ela repetiu.
você não tem direito.
Sai, resolvi pegar um ônibus e ir ao parque Ibirapuera, lá vi uma fonte muito bonita que jogava a água para o ar, ela era como eu, jogando as coisas para o ar.
Anos mais tarde soube através de um amigo que aquela fonte foi muito cara e que havia sido paga pelo dono da rede de mercados.

Sobreviver em São Paulo (texto publicado na Folha)


Sobreviver em São Paulo

Parece até um título fácil, mas na realidade não, bom...é sim, para quem mora em determinado lugar de São Paulo, pode-se dizer que a cidade é subdividida em duas, e isso é claro, central e periférica, a parte difícil é dizer quem cerca quem.
Que os moradores da periferia (como eu tá ligado?) vão no centro para prestar serviço não é nenhuma novidade, mas e a diversão? E desfrutar a cidade? Aí são outros quinhentos, ou melhor são outros 450.
Poderia citar milhões de motivos para não gostar da cidade, poderia divagar por mil fitas, mas a cidade é mãe, terra de arranha céus, pátria dos desabrigados, lar de Germano Mathias e sempre será assim. São Paulo continuará iludindo com sua leve manta, e se andarmos a noite por ela, não veremos somente boates, bares, casas de relaxamento, ruas nobres que parecem as de londres, comércios luxuosos que nos fazem ir para Tóquio, lojas que nos levam para o passado e por um pé no futuro. Mas se olharmos com detalhe veremos crianças, filhos de seus não tão ilustres moradores acompanhados da famosa "senhora do chapelão" (fome) em quase toda esquina.
"Mas passa fome quem quer em São Paulo"! Já diria o sábio professor a sua turma de alunos escolhidos pelo sistema financeiro de algum colégio tipo o Salesiano.
É quente, quem não quiser que venda chiclete, balinha, Bob esponja, afinal num é igual para todos a entrega do troféu de cidadão honorário.
Vem maranhense, vem pernanbucano, vem bahiano, mas daqui direto pro albergue, ou quem sabe para a periferia.(São Paulo é a segunda Bahia e o segundo Rio em termos de baianos e cariocas.)
Não há vagas, mas há espaço para todos, desde que cada um esteja no seu devido lugar, certo manos?
Esse é só um lado da cidade? Pode ser sangue bom, mas é o lado que conheço, que convivo, de onde vejo somente as costas do Borba gato, segurando seu fuzil, deixando claro que estamos sendo vigiados, o lado que me dá a lágrima, que reparti a dor da perca, o lado de quem não tem lado, de quem nunca é retratado, dá até rima, seu carro tem ar condicionado, aqui na perifa só muleque descalço.
Venham todos ver nesse aniversário, O rapa da prefeitura tomar a barraca daquela dona Maria que era empregada e perdeu o emprego porque o filho saiu no Cidade Alerta.
Venham festejar com o vizinho que saiu da cadeia a dois dias e ainda não sabe como irá fazer para comer e se vestir, vem que tem vaga prá você aqui é SP.
A terra onde matar periférico causa silêncio e frustração e matar do outro lado da ponte causa indignação, passeatas, mudança na legislação.
E todos falam prá caramba, montam tese, mas passa um dia aqui prá vê se sobra orgulho dos textos mentirosos, dos verbos bem colocados, das frases bem montadas, que emocionam, que chocam e que no final são tudo um monte de mentira, porque a São Paulo que te cerca é de concreto e a nossa é de lama, a sua é; Moema, Morumbi, Jardim Paulista, Pinheiros, Itaim Bibi e Alto de pinheiros, a nossa é; Jardim Ângela, Iguatemi, Lajeado, São Rafael, Parelheiros, Marsilac. Cidade Tiradentes, Capão Redondo.
Palavrão aqui na comunidade é DESEMPREGO, aqui é sampa também, mas do markentig estamos além, fora da festa, fora da comemoração.
Na Área da Barragem, onde vivem índios tupi-guarani ninguém tá sabendo da festa, em Campo Limpo, Grajaú e Brasilândia não ví ninguém encher de rosas, nem ninguém restaurar, não vieram ao menos canalizar o córrego, no fim do dia não teve show, não teve visita de ninguém do poder público, mas ví um menino de 7 anos na ponte esperando a esperança, só não sei por quanto tempo. A única coisa que representa o governo por aqui é a polícia, então todos já imaginam como ele é representando.
Tá certo! São Paulo é nossa também, afinal, cuidados do dinheiro, lavamos, vigiamos, passamos, limpamos, digitamos, afogamos mágoas em pequenos bares, vivemos em pequenos casulos, comemos o pouco de ração que sobrou do outro dia, e ainda dizemos amém, Sampa city você é meu berço, pois não nascemos com nenhum de verdade.
Construímos e não moramos, fritamos e não comemos, assistimos mas não vivemos, passamos vontade, mas passamos adiante.
O que? Ah! a parti boa da cidade? Bom, acho que vou passar essa, vou deixar para alguém que viva nela, pois o termo aqui para nós é sobrevivência, mas com certeza deve ter muita coisa boa nela, Sampa é bem grande né? E tem muita diversidade cultural, assim como social.
Somos somente um reflexo de tudo isso, os catadores de materiais recicláveis, os balconistas, os motoristas, os flanelinhas, as empregadas domésticas, os vendedores ambulantes, os vigilantes, os meninos da Febem, os 118 mil presos de todo o estado, e mais uma porrada de gente te saúda e deseja mais consciência e consideração nesse aniversário São Paulo.

Ferréz
Ferréz é autor de Capão Pecado (labortexto 2000) e de Manual Prático do ódio (objetiva 2003) alem de ser colunista da revista Caros Amigos

Vizinho (conto) INÉDITO


Vizinhos
Demorou para juntar todo o dinheiro, fiquei com um par de tênis e dois shorts. Foi muito duro comprar a casa, tive que usar camisas de atacado na Bresser, todas brancas, me custavam três reais e noventa centavos, e o mínimo que se podia comprar era de dez peças, só assim para economizar.
Não importava, eu queria mudar, a vizinhança tinha chegado no limite, depois que passei um mês inteiro seduzindo aquela morena, ela havia se deitado comigo, transamos gostoso, embora os ônibus que passavam a toda velocidade fizessem meu quarto tremer.
Mas voltando ao assunto, depois que chegamos aos finalmente, veio a decepção: assim que saí com ela do meu quarto, um vizinho barbudo (que seja amaldiçoado seu nome) nos viu e disparou:
– Hã! Tá até suado né?
Ela nunca mais olhou para minha cara.
Outra coisa que não suporto mais é que a janela do meu quarto dá de frente para quatro janelas e nessas quatro estão as piores famílias. Numa delas, uma mulher com o cabelo seco ficava apoiada o dia todo. Quando o marido chegava, ela saía por uma hora e então voltava, ficava olhando fixamente para meu quarto durante todo o entardecer.
Uma vez levantei de madrugada e resolvi mijar nas escadas mesmo, preguiça de descer para o banheiro. Assim que comecei a me aliviar, notei uma pessoa abrindo uma janela, mas eu não queria acreditar, ela estava olhando, eu não consegui parar de mijar, estava tão gostoso. Então, assim que terminei, segurei meu pênis com a mão esquerda e inclinei em sua direção e comecei a movimentar a mão. Apesar de estar com muito sono, podia jurar que notei seu rosto se transformando e logo ela saiu da varanda.
De noite sempre tinha algum amigo me gritando, era aquele tipo de amizade que fica na sua casa de madrugada tomando café. Mas sempre foi assim, antes de eu chegar a abrir a minha janela, eu escutava outras se abrindo, eram eles olhando, talvez pensassem que iríamos fumar um baseado, sei lá, eu tinha medo de pensarem que eu era bicha. então não abria mais a minha janela, e meus amigos foram desistindo.
Bati dezena de vezes o portão na cara dos meus vizinhos. Era só estar chegando com uma sacola e eles não paravam de olhar um segundo, tentavam ver o que tinha dentro. Quando alugava fitas pornográficas, pedia para o rapaz da locadora pôr duas sacolas, mas eu sabia que eles enxergavam, pois as capas eram vermelhas para os filmes pornôs e as sacolas eram muito finas.
A vizinha da esquerda tinha um cachorro que não parava de latir um segundo, eu já não conseguia mais dormir, o latido dele ecoava dentro da minha cabeça. Decidi comprar veneno, mas quando cheguei em casa me dei conta da mancada: o cara do bar que havia me vendido era conhecido dela, se o cachorro morresse envenenado eu podia ser acusado.
Tinha medo, muito medo, eles não podiam ser provocados, cansei de ver baixarias por muito menos, esse povo quando fica bravo fala cada coisa, já acordei com gritos do tipo – Seu pica murcha, cê num me come há mais de meis – ou então com frases tipo assim – Minha filha, foi ele que veio aqui me comer viu, eu não fui lá dar pra ele não.
Então eu tolerava o som alto da vizinha que morava a minha direita, decorei todas as músicas da dupla Zezé di Camargo e Luciano, e quando comprei uma estante na Marabraz levei o relógio de presente para eles, nunca ví um sorriso tão meigo.
Mas dois dias depois disso, eu tive certeza que estava enlouquecendo, aquela mulher havia feito fofocas sobre minha família a vida toda, além disso ano passado tinha dito a todos que eu com certeza era uma bicha, coisa que mais me deixa louco. Segundo os rumores dela, ninguém que era homem ficava tanto tempo estudando trancado dentro do quarto como eu.
O dinheiro estava completo, procurei as imobiliárias, não podia mudar do bairro, gostava dele, só odiava a minha vizinhança. Vagabundos e vadias, com cada um eu tinha um problema. Encontrei muitas casas legais, mas eram todas caras, procurei por mais três meses. E, durante esse tempo, ameacei de morte o vizinho da frente: ele ficava olhando para minha boca enquanto eu conversava com meus amigos, sabia que estava lendo meus lábios.
Eu tinha certeza que ele queria saber o que eu falava, não resisti mostrei o dedo para ele naquela tarde de quarta-feira. Pensei em pôr ele no meu novo romance, desisti: não ia torná-lo imortal.
Finalmente encontrei, tinha muitas espécies de plantas no vasto quintal, e era somente duas ruas abaixo da casa da minha mãe, o preço era bom, pois era desvalorizada devido ao córrego em frente. Não liguei para o detalhe, eu limparia o barro quando o rio transbordasse, eu limparia tudo todos os dias desde que ninguém estivesse tentando ler meus lábios nem ficar reparando nas minhas sacolas de fitas
Fui lá ver a casa mais uma vez para ter certeza, era sexta-feira, os pássaros entravam e saíam a todo momento. Entrei no quintal.
De dentro não se via a rua, ótimo. O vizinho do lado tinha um terreno vazio, morava longe. Já do outro lado, morava uma prima da minha mãe, era separada e tinha duas filhas, mas sempre ouviam som baixo.
Agradeci a Deus também pelo vizinho de trás: era um galpão, onde havia se instalado uma igreja evangélica. Cultos somente aos sábados – isso eu agüento, nada é perfeito mesmo.
Sequei as lágrimas de minha mãe, peguei meus livros e me mudei.
Meses depois, o terreno vazio ao lado foi alugado para uma espécie de ferro-velho, mas me acostumei com o barulho da máquina de prensar garrafas pet, e só me assusto ainda com o barulho deles desamassando latas.
Tive um discussão com a vizinha do lado, que é a prima da minha mãe: ela fez um fogão de lenha na divisa do muro que enche minha casa de fumaça todos os dias. Tentei dizer que isso era errado, ela ameaçou chamar a polícia e disse para todos da rua que sou ladrão, que esse papo de escrever é conversa.
A igreja que fica aqui atrás da casa aumentou a sessão dos cultos, e eu sei agora quem foi Moisés, quem era Paulo e a importância dos Salmos.
Esses dias, pela manhã, fui buscar pão e, quando abri o portão, notei pela primeira vez o monte de lixo que estavam jogando em frente ao córrego. Tentei não pensar mais, caminhei lentamente até a padaria e no meio do caminho vi um cachorro mancando. Parei pra fazer um carinho em sua cabeça e ele tentou me morder. grande filho da puta.
Voltei para casa, pensando em fazer café mas o gás havia acabado, então resolvi fazer uma caminhada: saí pelo parque mais próximo (e único) e corri durante quarenta minutos. Depois, fiquei sentado no banco do parque por mais uns trinta, procurando esquecer a imagem de um frango assado que estava na minha cabeça desde que comecei a correr.
Voltei para casa e notei um Uno azul estacionado em frente ao meu portão – cara abusado com certeza. Pelo menos o ferro-velho havia parado de prensar as garrafas pets (amanhã seria dia de quebrar as garrafas de vidro, eles arremessavam todas elas contra o muro, um dia voou um caco e quase atingiu minha cabeça, meu quintal sempre amanhecia com alguns cacos, mas isso é detalhe, não vou esquentar).
A igreja começou o culto, logo agora que estava pensando em me masturbar, deixa quieto.
Eles aumentaram a programação e agora além de ensaiarem todos os dias, eles também fazem o culto todos os dias, eu já sei todas os louvores, acho que vou dar uma cochilada.
No outro dia levantei cedo, o carro ainda estava lá só que com os vidros laterais quebrados, só ai me dei conta de que devia ser roubado. Liguei para a polícia várias vezes, o dia passou e ninguém apareceu. À noite só tive alguns incômodos com os ratos cavoucando o forro do quarto, as unhas deles davam arrepio, mas consegui dormir lá pelas 4 da manhã – o ferro-velho começou a quebrar as garrafas às sete em ponto.
Saí para comprar pão e, quando abri o portão, notei uma variante branca encostada no outro lado do meu muro. Pronto, era o que faltava, a frente da minha casa agora era um cemitério de automóveis. Deixei os pães em casa, resolvi visitar minha velha residência, e quando passei pela velha rua e olhei para meus antigos vizinhos, tive vontade de cumprimentá-los, já não pareciam tão ruins assim. A rua tinha uma leve caída e me veio água nos olhos quando percebi pela primeira vez que minha antiga casa não era vizinha de um ferro- velho, nem dava para os fundos de uma igreja, e nunca havia entrado ratos.
Mas não dava para voltar atrás: a casa era minha e esse era meu destino. Então, quando cheguei no portão, olhei para o Uno azul e vi que ele tinha lindos bancos pretos e notei que o volante era modelo esportivo. Nunca me apeguei muito a carros, mas decidi que queria aquele volante se eu fosse ter um carro um dia. Entrei no Uno e comecei a mexer, vi que ia ser difícil. Então fui até minha casa buscar a chave de fenda e um martelo.
Passados alguns minutos, eu já tinha tirado o volante, comecei a olhar para a bolinha do câmbio: tinha um lindo caranguejo desenhado. Quando toquei nela, escutei a sirene. Eu ainda tentei explicar, mas o volante estava no meu colo. A policia que eu havia chamado finalmente apareceu.
No tribunal, alguns vizinhos testemunharam, mas todos disseram que eu era novo na rua e que antes de eu me mudar nunca havia nenhum carro roubado por ali.
O dono do ferro-velho estava lá assistindo ao julgamento, algumas pessoas da igreja também, e eu até hoje não entendi quando fui condenado.
Agora me encontro num lugar sossegado. O problema é só dividir o banheiro e às vezes ter que dormir no chão, quando perco na aposta e tenho que dar minha cama para algum companheiro de cela.

Literatura Marginal-mente (participação) Rap

Literatura Marginal-mente

Ferréz 1dasul
Criado no gueto
Meu respeito vem de berço
Sem chapéu atolado
Consta revoltado
Pau no gato
Festival de finados
Não nasci pra fardado
Escritor nato
Normal, mata rápido
Mó aglutinação não tem o que fazê
Samba do capão vai pensando que tá bom
Aqui não costa estudado
Na há na terra falça salvação pra otário
Maloqueiro 1dasul 100%
Da maldade e recentimento
Ferréz cm, Capão o nosso berço
na caneta respeito e dedicação
guerrilheiros da escrita até o fim da missão


participação de Ferréz no cd, O início da guerra do grupo Conceito Moral